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2. A MODERNIDADE, CIDADE E MEMÓRIA

2.3 AS CIDADES

2.3.6 Cidade hipermoderna e patrimônio americano

Frente ao conjunto de práticas do homem ocidental do final do século XX, é possível identificar uma certa contrariedade: a velocidade com que ocorreram as transformações no meio técnico, cientifico, indústria e cultural pode estar relacionada aos comportamentos cada vez mais recorrentes de identificação com o passado ou da busca pelo novo. Dentre eles, o fetichismo se estabelece como um sintoma e avança sobre o campo do patrimônio edificado. Tentar explicá-lo conjuntamente ao acúmulo de bens patrimoniais ou contrariamente, nas propostas de superar este conjunto de objetos pode ser um ensaio sobre a persistência da afirmação da personalidade cultural do Ocidente, se é que um dia isso ocorreu. Algumas nações têm preocupações com seu capital cultural, advindo do processo de composição colonial, como é o caso de vários países na América. Entretanto, existem relativamente novas investidas, cujo capital arquitetônico e edificado ainda está em fase de apreensão, disputado entre seu valor de troca versus seu valor de uso, como no caso de cidades formadas no final do século XIX. Estas, nas últimas décadas, têm debatido intensamente a preservação de seus cascos históricos.

Diante disso, países como Brasil e Argentina contêm em suas narrativas alguns destes elementos passíveis de análises. Talvez isso se justifique devido à proximidade que os países tiveram diante de sua formação nacional: além de serem duas sociedades próximas no espaço, seus processos históricos também se desenvolveram no mesmo quadro temporal, o que as faz

cumprir perfeitamente dois requisitos exigidos por MARC BLOCH (In. BARROS, 2014, p.48). Além disso, apesar da disparidade de dimensões territoriais, este fator se reduz ao medir-se o espaço efetivamente ocupado durante o final do século XIX, em que as estruturas dos dois Estados, tem no seu modelo institucional, incrementos populacionais imigratórios, construção política populista, transições econômicas pós-guerra, transições democráticas e influência macroeconômica neoliberal. Contudo, suas respectivas economias possibilitaram uma proximidade no espaço e no tempo na medida em que passaram por processos de origens comuns o que sem dúvida pode ser discriminado em suas respectivas especificidades.

Certos fenômenos possuem determinada singularidade uma vez que se encontram interligados como no caso brasileiro e argentino e em especial algumas de suas cidades que tiveram sua evolução urbana em ascensão durante o século XX e que nas últimas décadas, frente às transformações globalizantes, tornam-se representações de resistência.

A velocidade e o fugidio tornaram-se poderosos adjetivos nos últimos dois séculos. O alcance das transformações cotidianas junto àquelas de escala capitalista-produtiva moldou a mentalidade do ser humano contemporâneo pois fez com que este mantivesse intacta sua concepção tradicional de progresso, exaltando um passado como período que prefigurava a extensa gama de modernizações nas mais diferentes áreas do conhecimento humanos.

Nesse sentido, o último século foi um acúmulo de experiências que acabam por produzir a realização completo em escala mundial da felicidade humana vista através da esfera da tecnologia e do acumulo financeiro. Nesse caso, o modelo da sociedade atual é a continuação, em escala relativamente maior, daquele progresso inicial; e a cidade, como construto, serve de testemunho dessa hipotética evolução, na qual o ser humano exibe-se em uma espécie de espelho refletor de toda produção material que derivou de amplas melhorias das técnicas e mecânicas durante o século XIX e XX.

Retorna-se à cidade como objeto de representação, onde um olhar acurado nota que muitas dessas asseverações tais como, tecnologia, capitais, velocidade, produtividade, se relacionam ao mundo dos últimos dois séculos, podem auxiliar em uma leitura distinta, sobretudo, no que pouco foi dito sobre a falibilidade deste projeto conhecido por modernidade. Os projetos das cidades nos continentes americanos fazem parte deste contexto sobre o qual é possível desvelar uma série de discursos, movimentos de resistências e interdições. Aqueles que se encontram na cidade transformam-na em uma fonte de onde podem ser lidas incompletudes, incoerências, contradições das ações humanas. Perpassam sobre a urbe os medos e a busca por descanso, afirmação de alteridade ou ainda a aceleração das transformações com vistas a aumentar ainda mais os efeitos da modernidade.

Em especial no final do século XX, foi possível medir um momento distinto da história, de onde o fugidio se manteve, paradoxalmente, com as turbulências do mundo hipermoderno que contavam com a soma de inúmeras tecnologias criando um novo tipo de sociedade: a da informação. A informação não foi o único tipo de modelo a ser alterado, pois as organizações sociais também tiveram avanços tecnológicos que impuseram uma escala de eventos que acabaram gerando, segundo Castells (2000, p. 25), um determinismo tecnológico, no qual a descoberta científica, as inovações tecnologias e as aplicações sociais dependiam de um complexo padrão de interação. Foi através dessa rede que se manteve a ideia de incessante desenvolvimento das sociedades ocidentais, pois não era suficiente desenvolver-se apenas tecnológica e industrialmente, mas tratar de organizar um mundo sem fronteiras para o capital, onde ciberespaço se impõe, e o antigo ethos é retocado, reforçando através do ciberespaço o modelo único de normas, valores e objetos. Para LIPOVETSKY (2011.p.9) a Cultura-mundo

[D]issemina-se em todo o globo a cultura da tecnociência, do mercado, do indivíduo, das mídias, do consumo; e, com ela, uma infinidade de novos problemas que põem em jogo questões não só globais (ecologia, imigração, crise econômica, miséria do terceiro mundo, terrorismo) mas também existências (crenças, crise dos sentidos, distúrbios de personalidade, identidade)

Nessa mesma “cultura-mundo”, exaspera-se o poder da representação através da

imagem, em especial aquela que reverbera nas redes de informação. Através dessa rede, lembrar o passado de maneira nostálgica é olhar a destruição física da arquitetura como um

sacrifício necessário para a “evolução social”, trazida pela redenção tecnológica levando a um

tipo de relação entre o real e o virtual onde ambos coexistem e, em alguns casos, o último passa a substituir o primeiro. De igual maneira, subsiste uma resistência, tal como em outros momentos históricos, a esta mundialização, onde seus críticos utilizam as mesmas ferramentas da era da informática para revelarem as contradições sociais desta mesma cultura-mundo. As projeções sobre futuro e tecnologia nunca foram algo novo, apenas a sua concretização. Sobretudo quando se pensa em espaço urbano do mundo ocidental durante todo o século, os projetistas, arquitetos e engenheiros se propuseram a mudar constantemente este espaço e, evidentemente que, nessa tentativa, acabaram causando o caos urbanos, dois mundos opostos. Cidades inteiras, onde se projetava um arquétipo da Metrópolis, de Fritz Lang19, ficaram reféns de sua própria criação, em que partes de seus habitantes buscaram

19 Metropolis (Alemanha, 1927), de Fritz Lang, é um filme de grande importância por sua representação da

questionar modelos, comportamentos, referências assim como identificar permanências como forma de manterem-se isentos dos problemas causados pela superficialidade contemporânea.

O painel que estas grandes cidades Ocidentais demonstram ainda é o do crédito em soluções fáceis e rápidas diante de uma intermitente onda de anomia social, pois ainda se manteve a idolatria na máquina e na ciência como espécie de redentora dos problemas urbanos. Nesse contexto em que rapidamente se decompõe o interesse público frente ao privado, gradualmente parte do grupo social investe em projetos que salvaguardam interesses particulares em detrimentos dos públicos, utilizando-se inclusive do poder político para garantir estes privilégios. Entretanto, muitas cidades de porte técnico-industrial não tinham o mesmo alcance de tais megalópoles durante o transcorrer do século XX.

Na realidade, muitas são consideradas cidades novas, frutos de arranjos políticos do Fin-de-siecle XIX ocidental e que passaram por um tipo de limbo indenitário, pois não detinham até então de elementos tradicionais, tais como as cidades históricas, fonte fomentadora de identidade nacional, ou quaisquer vínculos com a tradicional concepção de nação; tampouco detinham tecnologias suficientes para serem tomadas como exemplo de eficiência e organização representadas em grandes projetos de arquitetura moderna, traduzido

pela palavra “Metrópole”. Pode-se inferir que são espécies de cidades híbridas (CANCLINI,

1997. p.292), culturas híbridas, poderes oblíquos. que possuem em seus vestígios dois enigmas que fizeram parte de seu desenvolvimento: o primeiro, citado anteriormente, tem relação com a pouca força de representação tradicional; por tratar-se de cidade nova e creditada a ser uma cidade em perspectiva, ainda formava seu capital simbólico junto ao desenvolvimento capitalista, industrial e urbano, restringindo-se ao fator Devir. O segundo elemento decorre do primeiro, pois a cidade híbrida se constrói na busca idealizada de vir-a- ser uma cidade do futuro, objetivando evoluir buscando sua autorrealização, libertação e afirmação; o problema: não era uma cidade tradicional, mas tão pouco uma cidade moderna.

Poderíamos, nesse aspecto, aventar que a cidade estava em busca de sua afirmação dentro da escala tecnológica do mundo ocidental e, portanto, a velocidade, as tecnologias eram indispensáveis como elementos constituidores de sua projeção. Após a Segunda Grande Guerra e, em especial, no último quarto do século XX, se constrói um tipo de imagem em que a urbe representa uma escala evolutiva, numa espécie de linearidade contínua que traria o progresso como forma de redenção após longos caminhos tortuosos dos grupos sociais que a dominaram. Por vezes, essa aparência, se embaralhada às questões de afirmações étnicas

construções e das engrenagens mecânicas que as sustentam, a ideia que remete claramente para um futuro, ainda indefinido, porém com nuances da distopia.

como ingrediente progressista e sua representação, incide especialmente em documentos oficiais relativos a datas comemorativas.

O modelo “história das cidades” são antigas e durante muito tempo eram feitas através

de uma encomenda especial que tivesse vinculo ao uma data comemorativa. A ideia deste primeiro tipo de cidade sempre foi organizar uma série de fatos e organizá-los cronologicamente, dotando-o de um período de origens, junto ao acontecimento fundador que seria ligado ao um povo fundador. Como uma linha cronológica que dá um tom desenvolvimentista e progressista funde-se a ideia de evolução na medida em que os poderes locais se apropriam destas ideias para marcar seus próprios governos, o que dá simplesmente torna esta história um mesmo modelo tradicional da história política.

Um exemplo recorrente para demarcar esta dimensão simbólica são os álbuns de aniversários das cidades novas que promovem construção e legitimação de imaginários caracterizados pelas formas que a cidade possui em diferentes períodos de sua história. A relação entre o imaginário e a memória coletiva durante as celebrações pode ser determinada por elementos produzidos durante uma comemoração (materiais e imateriais) contribuindo para legitimar determinada visão da sociedade, harmonizando experiências e emoções recíprocos nos indivíduos que participam dos festejos provendo suportes que servem para auferir um corpo coletivo e estabelecem na história o progresso da urbe.

Desta maneira o modelo “história das cidades” sempre se apresentam em álbuns e

documentos comemorativos. Estas cidades são antigas e durante muito tempo eram feitas através de uma consignação específica que tivesse vinculo ao uma data comemorativa. A ideia deste tipo de cidade sempre foi organizar uma série de fatos e organizá-los cronologicamente, dotando-o de um período de origens, junto ao acontecimento fundador que seria ligado ao um povo fundador. Como uma linha cronológica que dá um tom desenvolvimentista e progressista funde-se a ideia de evolução na medida em que os poderes locais se apropriam destas ideias para marcar seus próprios governos, o que dá simplesmente torna esta história um mesmo modelo tradicional da história política.

Estes exemplos talvez não se apliquem as questões europeias que por conhecidas razões são cidades que dispõe de elementos culturais antigos, bem como projetos modernos pós-revoluções burgueses. Tratando-se do caso da América isto pode ser um tanto distinto. Não se trata de tentar realizar uma lista de países que possuem estes tipos de cidades para serem enquadradas em uma espécie de hibridismos, o que possivelmente não se relacione com grande parte delas. Contudo, alguns casos são mais conhecidos, pois mesmo que industrializadas estas cidades seguiram em diferentes ritmos buscando a modernização,

procuraram referendar-se através de sua evolução tecnicista e desenvolvimentista durante o século XX, tiveram sua concepção ligadas a planos políticos propostos por seus Estados, além de inspirarem seus projetos em modelo urbanos contemporâneos e na busca por incessante imagem modernizadora.

Além dos álbuns surgem um processo análogo que destaca paradoxalmente a decomposição das mesmas cidades. Ante de um processo de esvaziamento dos vestígios edificados das destas novas urbes que foram criadas no final do século insurgem-se grupos preservacionistas que passam a criar inventários na tentativa de salvaguardar os vestígios históricos. O inventário sempre foi instrumento para a preservação dos bens culturais, pois existiu a necessidade cada vez mais ampliada de conhecer e reconhecer os bens culturais e seu acréscimo sobre as questões simbólicas. O que se verifica é de que forma a legislação tem sido modificada na tentativa de alterar o processo metodológico destas declarações de edificações, que pode sofrer alterações quanto a forma de reconhecimento patrimonial. O que incialmente pode ser uma arma na manutenção de salvaguarda do patrimônio, pode se tornar um artífice para uma política legitimadora do esquecimento. Desta forma, a medida em que se amplia a percepção sobre o patrimônio se amplia também importância dos inventários.

De forma análoga à materialidade das cidades e aos seus inventários ocorre um outro tipo de cidade invisível que expressa em seu texto uma diversidade de tramas, envolvendo o esquecimento de parte do passado ou a retenção de memórias que através das experiências urbanas servem de elixires tranquilizadores pela angústia também produzida por esta mesma urbanidade.

O que dá suporte as novas cidades foi o estabelecimento de fazer parte de um tipo novo de civilização, de maneira que prevalecia a portabilidade de um novo urbano. Como lembra Pesavento (2007, p. 11) pertencer a estas cidades implicou viver em um reduto, no qual havia uma recriação constante de outras cidades, fosse através de rituais, por códigos ou pelas práticas cotidianas.