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2. A MODERNIDADE, CIDADE E MEMÓRIA

2.1 A MODERNIDADE

2.2.1 Urbanismo como antídoto?

Diante da composição da cidade, um aspecto do mito de Babel rondava a criação do homem moderno: homens erigiam grandes cidades idealizadas, mas, ao viver a realidade delas não se compreendiam entre si. As constantes promessas advindas de novos modelos políticos, econômicos e culturais não resolviam os problemas gerados por transformações que até então se desconheciam. Para isso, fora necessário criar diversas áreas para dar conta dos problemas provenientes da escala de mudanças sociais.

Seria importante levar em conta dois autores que tentaram propor um significado e um objetivo sobre o tema Urbanismo. Uma ideia geral sobre a complexa inscrição do termo e de suas características por vezes passa ao largo de possuir uma definição única. O primeiro autor foi Idelfonso Cerdá que em sua obra “Teoria Geral da Urbanização”, de 1860, cunhou o termo

“urbanização”. Diante da tentativa de compreender como este campo se estabeleceu e quais

suas acepções, Calabi (2008, p. XXI) menciona a obra do segundo autor, Bernardo Secchi, que mais tarde se esforçou em estabelecer um conjunto de características da trajetória urbanística. Inicialmente a compreensão era que havia uma mescla de práticas relativas à transformação do território, aos sujeitos que as promovem, às técnicas utilizadas, aos

resultados obtidos e às novas transformações induzidas por estas práticas. Embora não sejam de fácil separação, essas práticas possuíam determinada identificação, segundo os estudos de Secchi. Para conseguir essa aproximação, o autor sintetizou as três definições sobre este campo de estudo, cujo ponto de partida foi a urbanística italiana do século XX.

Primeiramente, nos anos 1930, a maneira de organizar o meio urbano se dava através do plano diretor de Gustavo Giovannoni, “[n]a organização das edificações de uma cidade e a previsão de seu desenvolvimento futuro, isto é, a obra concreta e coordenada da ‘técnica' e da

‘arte' urbanística” (GIOVANNONI apud CALABI, 2008, p.13). Para outro autor italiano, em

1937, a prática do urbanismo se dava na definição de normas para a “a organização e funcionamento de uma vida urbana, ao mesmo tempo bonita, tranquila e econômica” (PICCINATO apud CALABI, 2008, p. 18).

A tentativa de dar um conceito que percebesse ambas as formas de construir o campo do urbanismo, décadas mais tarde, passou a contar com as questões de organização do espaço onde o urbanismo era a “ciência que estudava os fenômenos urbanos em todos seus aspectos, tendo como finalidade o planejamento de seu desenvolvimento histórico” (ASTENGO apud CALABI, 2008, p. 26).

Estas composições sobre o urbanismo se assemelham na medida em que pensam na promoção do bem-estar do público, bem como em uma forma de interlocução, uso do solo e outras formas de suporte eficiente. De qualquer maneira, o urbanismo foi determinado como uma disciplina que tem como escopo o controle das variações espaciais dos assentamentos urbanos com pretensões científicas e globalizantes. Consoante a análise de Calabi (2008, p. 21), a disciplina urbanística propõe-se a resolver os conflitos sociais uma vez que organiza a cidade de acordo com uma divisão lógica dos setores públicos e privados. Em outros termos, ela é (ou deveria ser) uma disciplina autônoma com seu surgimento ligado às problemáticas causadas pela Industrialização do século XIX e pelo aumento populacional veloz em determinadas áreas do continente europeu.

A configuração do pensamento do indivíduo sobre o mundo conhecido por ele, sua ideologia, determinava os percursos, as ações e as práticas sobre o espaço físico urbano. A prática técnico-administrativa, ligada à concepção do devir histórico, igualava o urbanismo à ciência política.

O campo do Urbanismo, mais especificamente, passa a se preocupar com a funcionalidade, a forma e a decomposição social. Desde o século XV, havia uma teorização de arquitetos renascentistas preocupados com a vida citadina considerando as necessidades sociais e econômicas. Entretanto, o campo de estudo mais apropriado que passa a analisar a

cidade ou o efeito de seu crescimento tornou-se uma realidade a partir do século XIX. Isso se deveu em parte devido a duas questões: de um lado, a inquietação em lidar racionalmente com os problemas advindos da disputa do solo, cujo ponto de vista era a disciplina jurídica; por outro, a formação de conturbações sociais de advindas da crescente industrialização, e do despreparo dos administradores em lidarem com ela.

Assim sendo, da relação entre urbanismo e industrialização, houve mudanças estruturais nos assentamentos do território e da redistribuição dos centros urbanos. Segundo Calabi (2008, p. XX), seria um anacronismo utilizar a expressão “urbanismo” em períodos históricos anteriores por ter seu emprego ligado a diferentes áreas distintas entre si. Seu surgimento como disciplina científica estava na esteira da concentração dos núcleos produtivos e residenciais, inovações tecnológicas e sistema de comunicação entre seus indivíduos. Em alguns casos, as cidades assumiram o feitio de metrópoles, concebendo parques, redes viárias, sistema de transporte, instalações elétricas e expansão das edificações, tudo sempre interligado às novas relações entre as esferas público e privadas.

Os administradores moviam-se por motivações, por vezes antagônicas, em relação às escolhas de projetos urbanos a serem compostos. No cotidiano da cidade, denotava-se a distinção entre seus habitantes, suas rotinas, suas preocupações, seus diferentes espaços geográficos, seus ritmos acelerados ou seus conflitos. Os protagonistas apresentavam-se como reformadores utópicos em busca de modelos ideias, alternativos à sociedade em que viviam; em oposição a isso, os técnicos recorriam a uma série de planos setoriais e de conjunto, incluindo grandes instalações higiênico-sanitaristas, projetos de estradas e habitações.

Em diversas obras literárias ou analíticas sobre a formação urbana a partir do século XIX, apresentam a cidade como uma das grandes realizações da sociedade humana. Se não a tornam o objeto central de seu enredo, no mínimo tornam a urbe um palco de onde se pode ver as novas formas de civilização. Em torno das comunidades existentes, variadas por seus marcados traços culturais cristalizaram-se conteúdos emocionais, fornecedores de poderosa afirmação do desenvolvimentismo ou progresso humano. Entretanto, algumas análises da literatura associaram aspectos negativos à cidade como lugar de ambição, barulho, mundanidade, exatamente em oposição ao campo que pertenciam ao mundo da paz, inocência e virtudes. A realidade histórica, porém é surpreendentemente variada e muitas vezes apresenta aspectos dispares as duas formas de organização social. Se tratando da modernidade, sobre a cidade se atribui a característica universalista de liberdade e transformação.

2.2.2 A literatura como retrato da modernidade

A cidade é o palco por excelência intelectual, e tanto os escritores como seus leitores são atores urbanos. Ao longo dos tempos a cidade tem sido motivo perene de investigações, nas angústias e na imaginação dos escritores, como um constante esforço da leitura do mundo. Na história, dois fenômenos, escrita e cidade, incidem quase concomitantemente. A cidade-escrita ganha uma extensão transcendente, vez que se fixa na memória que, ao contrário da lembrança, não se dissipa com a morte. A cena escrita da cidade permanece segundo alguns autores onde se defende a ideia de que mesmo quando a destruição gerada

pelo “progresso” produz o apagamento da memória urbana desenhada na escrita das pedras e

tijolos de suas edificações, seria possível resgatar essa memória através da literatura, lugar de inscrição do passado, frente ao que se vai transformado em ruínas.

O centro urbano do final do século XIX era cenário do impulso industrial, do desenvolvimento das técnicas, das mudanças do cotidiano, das profundas lutas sociais, das fontes de ideias e inovações, paixões, violência, angústia e medo. Tais temas estão difundidos em diversas obras literárias como os contos de Edgar Allan Poe, em poemas de Baudelaire, em romances de Charles Dickens, William Morris, Jack London ou ainda em ensaios de Georg Simmel, Friedrich Engels e Karl Marx.

Esta diversidade de autores produziu na segunda metade do século XIX e no decorrer do século XX uma literatura como foram de composição das cidades. Por inúmeras causas históricas, nas cidades desenvolveram-se distintas atividades como centro do poder, de permuta cultural e intelectual. A sociabilidade do mundo urbano inscrevia em seus diversos ambientes como cafés, cabarés, revistas, editoras e galerias, novas estéticas de onde acendia movimentos de contestação e novas práticas sociais. Como pontos irradiadores destas novas formas de cultura e popularizadoras destas sociabilidades, produziram-se costumes, ideias e sociabilidades através de instituições literárias básicas, tais como editoras, bibliotecas, livrarias, teatros. Assim, as relações culturais exibidas pela literatura deste período destacavam as fronteiras das experiências: o lazer, o dinheiro, a migração populacional, o fluxo de visitantes, a dispersão de muitas línguas e a veloz câmbio de opiniões e estilos.

No contexto da América, a literatura foi apresentada a partir dos movimentos ligados a modernização dos países, acompanhado pelo processo de industrialização que tardou a ser implantado, distintamente do o padrão Europeu. Havia uma série de transformações necessárias para efetivar tal modernização no continente, não ocorrendo de forma integrada, devido à política agroexportadora atrelada à vida no campo, considerada sinônimo de

barbárie. Significa dizer que a cidade como placo novas sociabilidades ficou levemente apartada dos primeiros ensaios latino-americanos, ocorrendo inicialmente uma produção literária interpretativa da América, completamente diferente do modelo europeu. Havia a tentativa de criar uma teoria sobre os países da América, ou um sistema interpretativo, buscando equilibrar, de um lado, a defesa da modernização e da ocidentalização do país, e por outro, organizar um notável traço nacionalista, defendendo a mestiçagem herdada do período colonial, a despeito de suas convicções científico-racialistas.

No Brasil, sob esses dois horizontes políticos aparentemente contraditórios, a ocidentalização e o nacionalismo, foram constituídas interpretações literárias levando em conta a presença negra, a mestiçagem e a imigração europeia.

Essas explicações apresentaram-se em diferentes obras que serviram como interpretações do Brasil: em se tratando da representação no caso brasileiro, antes mesmo dos grandes intérpretes brasileiros como Euclides da Cunha, Oliveira Viana, Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre, havia um processo inicial de atualização intelectual. Nesse novo momento literário inscrevem-se alguns exemplos conjeturando momentos de renovação social tal como o abolicionismo, uma espécie de projeto aproximado à modernidade refletido na obra de Joaquim Nabuco, o Abolicionismo (1883), que se configurou, com forte conotação política claramente como uma chamada para um projeto civilizador dos trópicos. Nabuco buscou, através do recorte da escravidão, propor uma ideia de mudança para o que se considerava uma sociedade mais socialmente justa sob bases jurídicas comuns.

A extensão da escravidão propagava a necessidade de um incremento da urbanização, tendo a cidade como palco da civilização e do progresso contra a barbárie ainda existente no Brasil e ligada efetivamente à vida no campo. A mudança do modelo político para o regime republicano associado ao abolicionismo era sinônimo de prosperidade e desenvolvimento expresso nas mudanças urbanas no Rio de Janeiro no final do século XIX na Belle Époque Tropical. A economia passava por uma ampliação do crédito através da política do encilhamento, tema de outra obra da literatura brasileira com o mesmo nome (1893), do autor Alfredo de Taunay. Ainda sob a perspectiva literária sobre o meio urbano, destacara-se a obra O cortiço (1890), de Aluísio de Azevedo, que tem como pano de fundo o processo de urbanização e a questão da impossibilidade de ascensão social, superação do status quo, universo social precário e a descrença em relação ao progresso.

Já no caso argentino, segundo Frantz Fanon (2002, p. 1), existem dois importantes ''personagens'' que protagonizam um número significativo de textos da literatura argentina, ambos resultados de um profundo processo de personificação: o primeiro personagem é a

casa, como espaço concreto de moradia; o outro é a cidade de Buenos Aires, de onde noções, sentimentos e desejos comandaram a produção de um sentimento de grandeza pelos seus habitantes. Muitas vezes, porém, estes dois espaços se confundem e são um mesmo personagem, na medida em que a casa é uma metáfora da cidade, aparecendo em narrativas e discursos poéticos que poderiam ser vistos como uma alegoria da história argentina.

Na produção desse amplo corpus, abarca-se a produção de autores latino-americanos importantes como Borges, Cortázar, Sábato, Bioy Casares, Mujica Láinez e Martínez Estrada. Em geral a particularidade dada por esses autores foi o tratamento dado à cidade nas lutas sociais, políticas e culturais em um longo período da história, como nos revela Borges (1994, p.14), em 1926, em uma citação conhecida ''Ya Buenos Aires, más que una ciudad, es un país''. Neste ambiente cênico da casa-cidade são imaginadas algumas das principais questões para a evolução do campo literário em sua estreita relação com o processo histórico.

Essa imagem passou a ser produzida no conjunto das transformações industriais e da modernização do continente americano. O próprio campo da urbanização considerava o crescimento da população das cidades e a diminuição da população do campo. Este conjunto mais extenso de mudanças da sociedade, desencadeou o processo de modernização econômica, social e cultural, que levaram a redistribuição espacial da população, à reorganização do sistema de vilas, povoados e à modernização e concentração da gestão e das atividades econômicos. Soares (2007, p. 291) ao analisar exemplos de migração urbana avalia que as migrações internas nem sempre são regidas por leis próprias e autônomas, por vezes seguem tendências autônomas determinadas por processo mais amplos de mudança social em curso.

O ritmo da vida que induziu ao êxodo rural nas décadas seguintes foi impulsionado pelos conflitos localizados. Pausadamente, o processo de industrialização decompôs o ritmo da vida no campo, culminando com a acentuada concentração urbana e a formação dos amplos centros comerciais. Isso fez com que as cidades se desenvolvessem sob impactos sociais, políticos e econômicos; a evolução do lugar, da cidade, da região é concebida principalmente pela ação do homem que diariamente transformava esse espaço. Esse processo dialético das necessidades de produção resultou ao longo dos anos na mudança das relações do homem entre o campo e a cidade.