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2. A MODERNIDADE, CIDADE E MEMÓRIA

2.1 A MODERNIDADE

2.1.2 Visões de mundo, discordâncias sobre o devir

As formas predominantes de pensamento consideravam o progresso como uma meta a ser alcançada e, a partir dele, o desenvolvimento de pensar a realidade e de controlá-la. Procurando evitar essa linha de entendimento, o Romantismo continha certa aura que ligava a religião e a metafísica, embora fosse uma religião que nada tivesse a ver com as promessas do cristianismo, pois defendia uma nova concepção de natureza humanizada e espiritualizada. Sua eficácia perpassava considerável parte do pensamento europeu entre o final do século XVIII e início do XIX (1780 e 1830) e não ambicionava exatamente as promessas do progresso já que possuía um lado emocional e irracional ao tratar da natureza humana e do destino dos homens, distinguindo-se de outros pensadores mais pelas diferenças do projeto iluminista do que pelas semelhanças.

A ciência como redentora da humanidade era, segundo grupo de intelectuais classificados como “neo-iluminismo”, uma nova maneira de ver o mundo, o qual se pode classificar de otimista em relação ao futuro. Segundo sua percepção, seria possível controlar o mundo moderno e consequentemente alcançar um futuro mais brilhante. Seus representantes, jovens hegelianos da 1° geração, uniam aspectos religiosos à filosofia considerando a visão da natureza uma composição da metafísica e da religião que glorificava o homem e seus feitos heroicos. Assim, mantiveram suas duras críticas à religião tradicional e serviram de fonte para as ideologias liberais e socialistas. Em última estância, a doutrina do progresso não servia como aspiração, mas como uma espécie de lei geral que abarcava métodos de desenvolvimento do pensamento, conhecimento, justiça social e razão.

Com uma influência mais abrangente, outro grupo de pensadores conhecido Darwinismo/Evolucionismo teve suas ideias mais compartilhadas e influentes naquele período histórico. Seus principais autores vivam o apogeu do agnosticismo9 e desenvolviam uma série de reflexões talvez mais sóbrias que o neo-iluminismo, pois assinalavam o pensamento inovador como um estímulo que levava o homem a produzir sobre a natureza. O intenso debate sobre a ciência e a teologia se misturava com o “mecanicismo sem alma” apresentado na obra A Origem das Espécies, de Charles Darwin, um dos mais expoentes nomes que ajudou a moldar o pensamento ocidental a partir do século XIX. Essa linha de pensamento foi poderosa e determinava grande parte da visão de mundo europeia na medida

9 Visão filosófica de que o valor de verdade de certas reivindicações, especialmente afirmações sobre a

existência ou não existência de qualquer divindade, mas também de outras reivindicações religiosas e metafísicas, é desconhecido ou incognoscível.

em que reinterpretava o iluminismo de forma que se moldasse às novas propostas do darwinismo.

Dentre esses três primeiros grupos, pode-se dizer que os românticos foram os primeiros a colidirem ao darwinismo. Mesmo tendo surgido do espectro Iluminista, não seguiram seus aspectos mais conservadores, tampouco aqueles que se somaram ao darwinismo e à industrialização. Em princípio, foi o primeiro grande protesto contra as certezas proclamadas pelo “mundo moderno”.

No entanto, as grandes vozes dissonantes da modernidade do século XIX vieram do chamado Fin-de-Siècle. Essa expressão tinha conotação com Degeneração ou Decadência. (BAUMER, conforme capítulo 1, p. 129). Talvez fosse um grupo menos fácil de ser caracterizado, fosse por sua unidade ou pelo ambiente de ceticismo que compunha suas opiniões frente a noção de progresso. Alguns elementos que os unificavam eram suas fortes dúvidas em relação ao positivismo; outro aspecto foi o de que exprimiam uma nova cultura da personalidade, do subjetivismo e da experiência. Sua capacidade de observar as lacunas do mundo moderno, em especial o papel desempenhado pela irracionalidade da natureza humana, indicava o Mito na história e na vida política, além de proclamarem a morte de Deus.

Tal parcela de pensadores detratava a ideia de constante progresso, expresso na confiança científica e na razão. Seu foco de análise, evidentemente, observava a desorientação, ou a tentativa de protelar a imperfeição do mundo moderno. Paradoxalmente, continha uma espécie de semente para outra modernidade na qual não caberia o progresso como fim. Em parte, o que constituía o pensamento desses autores desafiava as premissas básicas no mundo industrial, moderno, científico e racional. Seu mundo estava em revolução constante e seu resultado, a desorientação, provinha de uma sensação de incerteza, para além da própria mudança, de não saber o que o futuro podia trazer.

Dentre as vozes desse reduzido grupo de pensadores, esteve Friedrich Wilhelm

Nietzsche, que, dentre suas afirmações, oferecia incerteza em relação ao futuro. O caráter de desorientação, segundo a metáfora de Nietzsche, era a de que os europeus tinham se desorganizado, afastando-se do seu passado, queimando as pontes atrás deles e fazendo-se ao mar (futuro). Se fossem surpreendidos pela saudade da terra firme, sentir-se-iam em sérias dificuldades, porque tal terra já não existia mais.

Em geral, os intelectuais do Fin-de-Siècle eram contra o Positivismo, o racionalismo, o progresso, os padrões de valores e as convenções burguesas que acabaram por ordenar a sociedade. Aliás, o convencionalismo burguês, segundo suas ideias, era parte da desorientação social vivida nos grandes centros urbanos e, na mesma medida, um convite a novas

experiências. Se em períodos anteriores o patíbulo, o manicômio, as prisões serviam de mecanismos através dos quais se impunha o poder, a partir de então o processo de modernização e urbanização relacionam-se aos projetos novos projetos políticos. Defendiam que, se o mundo se fazia com mudança e fluxo, suas angústias poderiam ser ingredientes para a libertação das estruturas tradicionais e constituíam as fontes primárias de seu poder criativo, embora isso fosse um longo caminho a percorrer.

A desilusão em uma sociedade em desenvolvimento era um dos aspectos relevantes do grupo pessimista do Fin-de-Siècle. Eles acreditavam que a sociedade em que estavam circunscritos era incompatível à felicidade e tampouco oferecia respostas às chamadas

“questões perenes”.

Distinta do positivismo, outra posição do Fin-de-Siècle propunha a possibilidade de a sociedade construir respostas às questões de maneira menos racional. Henri Bergson assinalava que ideias distintas sobre a modernidade eram possíveis quando se tratava da natureza humana, não vendo problemas na atuação da ciência, apenas no culto dela, pois podia acarretar determinado impedimento da liberdade. Para tal, o conhecimento deveria seria mais subjetivo e ilusório, e a direção para a história, menos previsível. A intuição, uma nova forma de pensar o instituto científico, deveria auxiliar a ciência em seus objetivos, alargando sua compreensão sobre as coisas, bem como a própria utilidade prática. Para Bergson, o instinto iria sempre ao ponto e cabia à ciência legitimar os resultados através das análises dos campos selecionados. Confirmava-se, então, que o que unificava Fin-de-Siècle era a reação contra o culto da ciência ou a imagem de mundo projetada apenas no racionalismo.

Nesta transição entre o século XIX e o XX, dividem-se as opiniões sobre o que os homens podiam fazer com a racionalidade, já que boa parte das manifestações produzia insegurança quanto aos níveis de desenvolvimento prometido. Contudo, o ponto de vista hegemônico era a promessa totalizadora provinda da concepção da ciência como criadora de um futuro universalizante. O mundo do “ser” passou a ser governado pelo mundo do “devir” descrito por Baumer, o que confiava na infinidade do progresso (BAUMER, op.cit. p. 167). O modo de pensar do homem alterava-se, não tendo mais em vista o que o mundo poderia se tornar embora sua crença se mantivesse a mesma. O aparecimento do conceito de

“modernidade” constitui-se sempre na relação ambígua da cultura à agressão do mundo

industrial (LE GOFF, Op. Cit, 1990, p. 173).

Esse movimento secular procurou desmitificar e dessacralizar o conhecimento e a organização social para libertar os seres humanos de sua servidão, isto é, romper com a história e a tradição rumo ao progresso e ao futuro. Na medida em que ele também saudava a

criatividade humana, a descoberta científica e a busca da excelência individual em nome do progresso humano, a Modernidade gerou um metamorfismo na sociedade europeia onde a transitoriedade, o fugidio e o fragmentário eram condições necessárias para a realização de seu planejamento (HARVEY, 1996, p.23).

Os conceitos importantes, tal como de “tempo” e “espaço”, passaram a ser interpretados de outra forma pelo homem moderno, desconsiderando lentamente as noções até então consideradas como princípios. Tal como o tempo, o espaço deixou de existir em si mesmo e foi pensado através das expectativas produzidas pelo discurso da objetividade, da vinculação do racionalismo o mundo das certezas. Distintamente de períodos anteriores, a transformação do espaço passou a ser o reflexo do novo estatuto do homem e de sua ação construtiva do mundo: um repertório técnico-construtivista reduzido a pragmaticidade. De outro lado, segundo Touraine (2000, p. 77), a racionalização impôs a destruição dos vínculos tradicionais com vista a elucidar um futuro livre e sem limites. O espaço, neste caso da cidade, passou a ser a materialização dessa idealização, incialmente considerada uma utopia, depois uma distopia que demonstrava rápido esgotamento gerando, assim, um novo campo de estudo: o Urbanismo.

2.2 URBANISMO E CIDADE MODERNA

Seria possível que o mito da cidade de Babel fornecesse alguma possibilidade comparativa à moderna cidade do século XIX? E seus efeitos poderiam ser sentidos sob a atomização hipermoderna no século XX? Essas inquirições não têm o propósito de tecer uma finalidade para o urbanismo; de um lado, porque não se trata de uma disciplina em expansão e contínuo desenvolvimento, por outro, porque isto já foi proposta de análise de inúmeros trabalhos. Antes disso, trata-se de pensar a cidade através do sentido que foi atribuído ao seu planejamento, sua execução, suas possibilidades e suas descontinuidades, de forma que texto arquitetônico, da cidade moderna e industrial, seja visto como alegórico.

A mitológica Babel representa o homem em estágio de sedentarizacão, organizando seu espaço de vida. Entretanto, sobre os inúmeros povos que a construíam, recaía uma divisão irremediável, já que seus idiomas foram embaralhados, impossibilitando a comunicação daqueles que a erigiam. O resultado foi, segundo o mito, o fracasso na tentativa de oferecer uma obra coletiva, inviabilizada devido a seu fundamento linguístico, necessário para a compreensão e realização do trabalho.

Sobre a cidade projetada a partir do século XIX, o objetivo daqueles que a idealizavam, fossem administradores, construtores, arquitetos, era a capacidade de transformar e organizar o espaço de vida dos seus habitantes, transfigurando em símbolo do desenvolvimento infinito a Europa como modelo a ser adotado. Assim como a construção da identidade urbana da América, o Brasil também se fez a partir do olhar estrangeiro. No espaço urbano, a sua evolução e a sua transformação tomaram como arquétipo o estrangeiro articulando-se em uma ordem permanente para um progresso linear.

Algumas cidades assumiram o caráter de metrópole tornando sua gestão mais complexa e sua função mais política e econômica. As relações entre esfera pública e privada redefiniram-se distinguindo os interesses daqueles que na cidade viviam e que passaram desenvolver a difícil tarefa, para usar o exemplo de Babel, de comunicação linguística. Isto se deu porque, na medida em que o capitalismo se ampliava, o crescimento demográfico se expandia, o solo urbano ganhava função de permuta. O texto arquitetônico, uma forma de representação sob a qual era possível transparecer distinções entre seus habitantes, motivo pelo qual os administradores urbanos mantiveram sob sua tutela as possibilidades criativas. No entanto, nem tudo era controle, já que os projetos modernos articulados para as cidades imaginadas não resolveram os problemas suscitados pelo seu próprio desenvolvimento, nem mesmo alcançaram peculiaridades culturais que resultaram no insucesso de inúmeras gestões urbanas e na insurgência de grupos sociais que reclamavam uma cidade democratizada. O projeto da racionalização moderna continha em sua ação um aspecto essencial no fazer da cidade que servia como um elo entre o setor produtivo moderno, a funcionalidade, a criação sua aplicação: a velocidade. Com uma nítida confiança no futuro, os administradores urbanos incluíam ao conjunto modificações nas formas de habitat e ampliação das redes de serviços, gerando novas modalidades de vivência. A segurança ligada à ideia de que o homem controlava este novo cenário, outro aspecto importante, influenciava os acordes políticos produzidos na urbe, de forma que, sobre os centros urbanos que se sucediam, se mantinham os alinhamentos induzidos pela hegemonia industrial do sistema capitalista.

As gestões urbanas eram mantidas por amplas coalizões em torno do poder político e do capital e, como se não bastasse, mantiveram a mesma lógica do mundo em desenvolvimento que incluía novos fluxos de riqueza, poder, imagem e identidade. Por um lado, os intelectuais críticos dessas gestões poucas vezes tiveram sob sua guarida o planejamento urbano já que sua visão de mundo era dissonante da proposta racionalizante. A solução de novos problemas e conflitos tampouco era uma aptidão dos partidários do progresso que, em meio ao "turbilhão de mudança", optaram por seu interesse.

O programa do urbanismo moderno explicitou em especial as questões ligadas à funcionalidade dos modos de organização e reprodução da sociedade, até com a ambição, nos casos mais radicais, de servir-lhes, também nos moldes em que a composição dos espaços afirmava os interesses de distintas classes sociais. É, pois, lido o espaço da cidade como coisa escrita, sendo seu objeto a ordem do texto (CHOAY, 2010, pg. 7) e daqueles que se pronunciaram sua visão de mundo sobre.

Assim, as cidades do século XIX e XX foram erigidas, diferente da Babel, mantendo parte da incompreensão entre aqueles que vivem nela. Em sua arquitetura, tal como alegorias, as edificações servem de um lado como fonte de análise sobre as incongruências, os jogos de poder, os projetos políticos, a burocracia, o plano totalizante; por outro, os discursos sobre ela mostram as novas formas de fazer, a criatividade de pensar o cotidiano, a fuga das regras generalizantes, as ações simbólicas revolucionárias e, ainda, os movimentos de resistência pela memória. Isso, em última análise, pode ser acompanhado diante da nova área que surgia no século XIX, o urbanismo, que lidava com as novas demandas das cidades que surgiam. Porém, esteve longe de resolvê-los.