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3. THOMAS KUHN: UMA NOVA HISTORIOGRAFIA PARA AS CIÊNCIAS

3.4 R EVOLUÇÃO C IENTÍFICA

3.4.2 A circularidade na manutenção dos paradigmas

Disso tudo, o que podemos notar é que a defesa de um paradigma é algo que só se efetua quando se está imerso na óptica do mesmo. Uma argumentação favorável deverá buscar elementos que só poderão ser encontrados no interior do próprio paradigma. Assim, essa argumentação possui um caráter essencialmente circular; qual

seja, o de buscar elementos no interior de um discurso para defendê-lo.

Igualmente circular é o modo como se consolidam os novos discursos científicos. Os novos fenômenos que aparecem quando da emergência de um novo paradigma só ganham a oportunidade de existência e sustentação, se há uma aceitação mínima dos conceitos e das idéias que sustentam esse paradigma emergente. Por sua vez, é o trabalho de investigação desses novos fenômenos que garante a solidez dos conceitos e idéias radicalmente novas que os sustentam:

Naturalmente a circularidade resultante não torna esses argumentos errados ou mesmo ineficazes. Colocar um paradigma como premissa numa discussão destinada a defendê-lo pode, não obstante, fornecer uma mostra de como será a prática científica para todos aqueles que adotarem a nova concepção da natureza. Essa mostra pode ser imensamente persuasiva, chegando muitas vezes a compelir à sua aceitação. Contudo, seja qual for a sua força, o status do argumento circular equivale tão-somente ao da persuasão.

(Kuhn 2003, p.128)

A força de um paradigma, como vemos, surge de sua habilidade de persuasão. A disputa entre paradigmas antagônicos será vencida, em parte, pelo grau de convencimento que oferecem. Essa persuasão se efetua de modo um tanto arbitrário e as condições que a favorecem são, como já tivemos oportunidade de mencionar, bastante complexos, mas que, em geral, dependem de um contexto histórico de crise, no qual existe uma enorme ânsia por um novo paradigma. Este não precisa ser, de início, necessariamente mais eficiente que o antigo, mas é necessário que haja uma polarização entre eles.

Assim, para Kuhn, critérios lógicos e empíricos não são, por si só, decisivos para a escolha de um determinado paradigma. Para ele, não há uma forma de decisão que seja essencialmente objetiva nesses casos. E a analogia com as revoluções políticas se torna, assim, cada vez mais contundente:

Na escolha de um paradigma — como nas revoluções políticas —, não existe critério superior ao consentimento da comunidade relevante. Para descobrir como as revoluções científicas são produzidas, teremos, portanto, que examinar não apenas o impacto da natureza e da lógica, mas igualmente as técnicas de argumentação persuasiva que são eficazes no interior dos grupos muito especiais que constituem a comunidade dos cientistas.

Contra esse ponto de vista revolucionário, encontra-se aquele outro que encara as teorias científicas como complementares. De acordo com esse ponto de vista, o aperfeiçoamento científico pode ser mais bem compreendido se encarado como uma análise cada vez maior dos fenômenos. Análise esta que é tanto mais acurada quanto mais dados são descobertos sobre estes fenômenos.

Nesse sentido, a ciência não pode, jamais, contradizer descobertas anteriores. Pode sim, no máximo, adicionar informações e melhor explicar fenômenos, antes compreendidos de maneira ainda relativamente deficiente.

Neste caso não haveria mudanças drásticas, caracterizadas pela destruição do antigo regime mas, apenas, a simples passagem de uma concepção teórica menos eficiente para uma outra mais eficiente, isto é, que esteja mais de acordo com pesquisas recentes bem sucedidas.

As descobertas científicas nasceriam de análises cada vez mais acuradas dos fenômenos, em um movimento evolutivo e contínuo, sem que houvesse, propriamente, a superação de qualquer paradigma.

Contra isso, no entanto, Kuhn afirma que historicamente, e do ponto de vista de seu confronto com a natureza, o cientista só encontra três tipos de fenômenos: aqueles que são bem compreendidos dentro da perspectiva paradigmática e que, por este motivo, não instigam mudanças radicais nos procedimentos tradicionais de investigações; aqueles outros que, apenas em seus detalhes mais específicos, ainda carecem de maiores investigações, essas são realizadas com o intuito de reafirmar ainda mais a confiança no paradigma; por fim, o cientista pode ter diante de si aqueles fenômenos que se mostram inteiramente anômalos, isto é, aqueles fenômenos que não podem ser minimamente compreendidos dentro do quadro conceitual em voga.

Apenas esse terceiro tipo de fenômeno oferece o estímulo necessário para uma investigação do tipo revolucionária. Quando este terceiro tipo de fenômeno for explicado e assimilado como um fenômeno normal, é porque o paradigma que o enquadrava como uma anomalia já foi, em grande parte, superado. Isso aponta para uma incompatibilidade visceral entre o novo e o antigo paradigma. Ambos não podem coexistir pacificamente diante do mesmo leque de fenômenos.

uma concepção paradigmática por outra, com o conseqüente aniquilamento da concepção anterior e com o aparecimento de grandes novidades no campo científico. Nesses termos, uma evolução científica, em que há uma sucessão contínua, pacífica e complementar dos conceitos científicos, é impensável em uma prática que não seja a da ciência normal. E, como já vimos, esta não apresenta grandes descobertas científicas, mas trabalha para consolidar as descobertas que, outrora, provocaram a quebra da continuidade da ciência normal que se praticava anteriormente.

Sem o ponto de vista revolucionário, não há a possibilidade de explicar as descobertas científicas de peso. Resumindo, descobertas de peso destroem antigos conceitos científicos e novos conceitos científicos promovem grandes descobertas.

Segundo Kuhn, porém, ainda resiste, com bastante força nos dias de hoje, uma concepção científica, intimamente relacionada com o positivismo lógico, que vai de encontro com o que foi exposto em A Estrutura. De acordo com ela, os sentidos das teorias científicas deveriam ser revistos de modo a assimilar certas restrições no interior das mesmas. Conseqüência disso é que, uma vez realizadas essas restrições de sentido, uma teoria jamais poderia conflitar com outra. Mesmo que, quando colocadas lado a lado, e comparadas sob o prisma do alcance de suas previsões, ambas aparentemente divergissem quanto à natureza e a dinâmica de fenômenos símiles.

Para ilustrar essa visão, que se opõe à sua própria, Kuhn menciona as concepções teóricas de Newton e Einstein que, do ponto de vista de sua teoria das revoluções científicas, representam paradigmas absolutamente antagônicos. No entanto, para os defensores da posição mencionada a pouco, a teoria relativista não serviu para derrubar a física de Newton, pois esta ainda é empregada de maneira bastante eficiente se determinadas restrições, principalmente quanto ao alcance de suas previsões, forem razoavelmente efetuadas. Assim, a mecânica newtoniana poderia ser perfeitamente encarada como um caso particular da teoria da relatividade, o que reforça o ponto de vista de uma ciência que avança de maneira pacífica, sem saltos abruptos ou disputas paradigmáticas.

Contra isso, Kuhn afirma que nenhuma teoria pode conflitar com seus casos particulares, como ocorre se assumirmos as restrições à física newtoniana. Mesmo sob a salvaguarda das medidas restritivas, ambas as teorias possuem pressupostos antagônicos,

o que não deveria ser o caso se uma fosse apenas um caso particular da outra. De qualquer forma, se ignorarmos isso e considerarmos que, de fato, a teoria de Newton representa um caso particular daquela proposta por Einstein54 — sendo apenas necessário que se tomem algumas precauções, como eliminar aquelas proposições que jamais poderiam ter sido proferidas pela física newtoniana, por exemplo, a de que esta teoria produz previsões acertadas, mesmo quando são consideradas velocidades relativamente bastante elevadas — então, assim excluídas essas sentenças que só tiveram lugar em uma análise ainda pouco eficiente dos fenômenos, o que temos são teorias complementares. Ambas válidas sob seus respectivos domínios. Exemplos de um acúmulo uniforme, contínuo e progressivo do conhecimento científico.

Para Kuhn, a proposta acima, de apelo muito popular no interior da comunidade científica contemporânea, possui, no entanto, um grave problema. Para ele, se de fato fosse suficiente que um determinado domínio de ação fosse delimitado, para que uma teoria científica fosse considerada válida, especialmente aquelas que tenham se mostrado eficientes dentro dele, mas absolutamente equivocadas quando suas considerações ultrapassam essas fronteiras, então jamais se poderia, novamente, mostrar a falsidade de qualquer teoria científica.

Além disso, antigas teorias, abandonadas há tempos, deveriam ser ressuscitadas, pois, em um ou outro domínio, mais amplos ou mais restritos, toda a teoria criada pelo homem, e que já foi considerada científica, fora útil e eficiente para a previsão de certos fenômenos. Como exemplo, Kuhn cita a abandonada teoria do flogisto que, contudo, fora bastante útil e explicativa para muitos fenômenos. A teoria do flogisto fora abandonada por se mostrar contraditória com a descoberta do oxigênio e com os pressupostos da nova teoria termodinâmica.

Assim, toda e qualquer teoria que tenha se aplicado de maneira eficiente, sob um conjunto restrito de fenômenos, mesmo que este conjunto seja bem pequeno, teria sua validade garantida. Além disso, essa concepção que assevera a restrição das teorias científicas aos seus domínios específicos de atuação possui ainda um outro problema. Se

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Para Kuhn, não é possível derivar a teoria de Newton como um caso particular da teoria de Einstein. Justamente porque não é possível derivar as leis de Newton do conjunto de proposições da teoria da relatividade. As leis de Newton tomam, como pressuposto, uma concepção de universo incompatível com a concepção que Einstein precisou assumir para derivar suas previsões. Trata-se aqui de uma divergência de base. Se a teoria relativista contiver a teoria clássica newtoniana, então a primeira é inconsistente.

encarada de maneira séria, essa concepção deveria impedir que as teorias realizassem previsões quando os fenômenos estivessem, por assim dizer, fora de alcance.

Em poucas palavras, essa concepção, que podemos chamar de restritiva, sepultaria qualquer possibilidade de avanço na ciência, na medida em que toda teoria se voltaria somente para aqueles fenômenos que já estejam dentro de seus respectivos campos de atuação. Levada ao extremo, essa concepção pode congelar todo e qualquer avanço na atividade científica, cujo aspecto mais fundamental é a transcendência, em algum grau, dos limites colocados por um campo de pesquisa. Em outras palavras, os progressos científicos importantes, aqueles realmente revolucionários, estão associados, de um modo ou de outro, às investigações que ultrapassam os domínios de pesquisa que são observados pela ciência normal.

Para nos ajudar a entender este ponto, Kuhn faz uso de exemplos retirados da psicologia das formas55. Esses experimentos têm o poder de ilustrar alguns dos aspectos das revoluções científicas, justamente aqueles que se referem às mudanças na maneira de encarar o mundo, que se efetuam quando este é colocado sob o foco de um ou de outro paradigma. As experiências psicológicas em questão56, de certa maneira, sugerem que as imagens, formadas em nosso campo visual, dependem de um contexto cognitivo muito complexo. Esse contexto, no qual está inserida a história pessoal do sujeito, assim como a maneira como essa história pessoal é capaz de influenciar a sua interação com o mundo à sua volta, é considerado como uma das condições determinantes dos resultados das experiências.

Como no caso das cartas anômalas que, em condições especiais, eram ou não identificadas como cartas normais, também o cientista tende a enxergar o mundo de acordo com a perspectiva de um paradigma. Exemplo disso foi a descoberta de Urano, em 1781, que promoveu uma mudança nas expectativas dos astrônomos no sentido de procurar novos planetas.

Essa mudança de expectativa fez com que os astrônomos olhassem para o céu de maneira bem diferente daquele modo como já estavam acostumados antes dessa descoberta. Como as cartas de baralho, que em certas condições eram consideradas

55 Psicologia da Gestalt 56

Kuhn cita as experiências realizadas por George M. Stratton, Harvey A. Carr, Albert H. Hastorf, Jerome S. Bruner, Leo Postman e John Rodrigues.

normais apesar de suas características anômalas, antes de 1781 Urano era encarado como uma estrela, apesar de seu movimento estranho ao de uma estrela. Aparentemente, esse movimento estranho não fora percebido até então.

Somente com o aperfeiçoamento do telescópio de Sir William Herschel, que lhe permitiu a observação da forma discóide de Urano, absolutamente incomum na observação de um estrela, é que este movimento anômalo começou a ser notado. Após algumas tentativas infrutíferas de tratar Urano como um cometa, Sir Herschel anunciou a descoberta de um novo planeta à comunidade de astrônomos.

Herschel não poderia ter realizado a descoberta de Urano se se limitasse à prática comum da ciência normal de sua época. Essa prática comum apenas lhe permitia ver estrelas e cometas, nenhum novo planeta. Do mesmo modo, a prática científica normal não permitia a Copérnico propor um novo sistema astronômico, mas apenas trabalhar para ajustar suas observações às de seus companheiros, dentro de limites normais de pesquisa:

Embora as evidências sejam equívocas, a pequena mudança de paradigma forçada por Herschel provavelmente ajudou a preparar astrônomos para a descoberta rápida de numerosos planetas e asteróides após 1801. Devido a seu tamanho pequeno, não apresentavam o aumento anômalo que alertara Herschel. Não obstante, os astrônomos que estavam preparados para encontrar planetas adicionais foram capazes de identificar vinte deles durante os primeiros cinqüenta anos do século XIX, empregando instrumentos-padrão. A história da astronomia fornece muitos outros exemplos de mudanças na percepção científica que foram induzidas por paradigmas, algumas das quais ainda menos equívocas que a anterior. Por exemplo, será possível conceber como acidental o fato de que os astrônomos somente tenham começado a ver mudanças nos céus - que anteriormente eram imutáveis - durante o meio século que se seguiu à apresentação do novo paradigma de Copérnico?

(Kuhn 2003, p.153)

Somente quando Urano começou a se impor como uma anomalia para a ciência normal, é que surgiu a crise que promoveu a oportunidade para uma relativa suspensão das pesquisas que se limitavam ao domínio comum de investigação. Fora necessário que Herschel dirigisse seu esforço investigativo para além das considerações normais, para que pudesse realizar sua importante descoberta. E essa descoberta não se deu imediatamente. Assim, o que antes era encarado como uma estrela, ganhou o status de cometa e, finalmente, atingiu a condição de planeta.

Uma importante tese defendida por Kuhn é a de que nosso modo de ver os objetos depende do nosso atual quadro conceitual de referência. Segundo ele, por exemplo, até 1781 os astrônomos não conseguiam ver nenhum novo planeta. Nos anos subseqüentes, contudo, os astrônomos estavam aptos para observar toda uma nova coleção desse tipo de astro.