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2. CANTOR E A TEORIA DE CONJUNTOS

2.3 A FUNDAMENTAÇÃO FILOSÓFICA DO INFINITO CANTORIANO

2.3.1 Os aspectos religiosos

Lembro que Cantor era de ascendência judaica e que há, na tradição mística do povo judeu, a idéia de Moisés como intérprete da voz divina para os filhos de Israel. Essa visão foi desenvolvida, mais radicalmente, por Maimonides, cujo pensamento encontra, no Rabino Mendel de Rymanóv, seu mais importante porta voz. Segundo este, tudo o que Israel ouvira da revelação no Monte Sinai foi o Aleph, com que o texto bíblico começa o primeiro Mandamento — o Aleph da palavra ‘anokhi’ (eu). Aliás, o aleph sempre foi tido, pelos cabalistas, como a raiz espiritual de todas as outras letras, encompassando, em sua essência, o alfabeto todo e, portanto, todos os outros elementos do discurso humano. Mas, ouvir o Aleph é ouvir quase nada, não transmite um significado específico. No entanto, por isso, o ocorrido no Monte Sinai transforma-se em uma revelação mística, impregnada de um significado infinito e que, para tornar-se uma fundamentação da autoridade religiosa, deve ser traduzida na linguagem humana. Foi o que fez Moisés. Ouso interpretar que ao escolher o Aleph para representar as infinidades, mesmo que não conscientemente, Cantor chama para si o papel de Moisés, vertendo para a língua dos homens a, até então, inconcebida linguagem do infinito

Irineu Bicudo41.

Com a discussão dos aspectos religiosos envolvidos na idéia de infinito em Cantor, queremos deixar claro que nela podemos encontrar uma complexidade que transcende a estrutura puramente matemática dos Grundlagen e dos Beiträge, indo se acomodar em âmbitos cuja importância não pode ser ignorada se pretendemos conhecer as bases mais fundamentais que motivaram e sustentaram esses trabalhos.

Nos anos que se seguiram à publicação dos Grundlagen Cantor se viu envolto em uma polêmica religiosa envolvendo sua nova teoria sobre o infinito atual (Dauben 1979). Segundo uma determinada tradição teológica, uma teoria como a de Cantor poderia ser interpretada como contrária ao pensamento oficial da Igreja, pensamento este que havia sido expresso desde o Papa João XXI42.

Alguns padres da alta cúpula do Vaticano não viam com bons olhos uma teoria a respeito de coleções infinitas e completadas de números, pois isto poderia significar a racionalização sobre a própria potência divina e o reavivamento de uma antiga disputa entre teólogos.

Esta disputa pode ser resumida como a oposição entre os teólogos que afirmavam que as ciências deveriam se acomodar às verdades da Igreja, nesse grupo se encontrava o próprio Papa Leo XIII como líder dos denominados tomistas, e aqueles outros que acreditavam que as afirmações das ciências não necessariamente se colocariam de maneira antagônica a essas verdades. Esses últimos eram denominados

neo-tomistas.

Dentro desse contexto, é importante mencionar um artigo de 1886 de Constantin Gutberlet, um importante estudioso de questões filosóficas e teológicas que encabeçava o movimento neo-tomista na Alemanha43. No interior dessas discussões, Gutberlet era um defensor da tendência que apoiava o livre desenvolvimento das ciências.

Para ele, o estudo do infinito atual na matemática representava um desses fatos científicos que não poderiam ser ignorados nas discussões de ordem teológica. Em particular, porque os estudos de Cantor se conformavam com a sua própria argumentação no sentido de provar a existência de um tipo teológico de infinito atual. Argumentação essa que, nesse momento específico, sofria muitos ataques dos tomistas, principalmente,

42

Ver discussão realizada no primeiro capítulo, principalmente a seção dedicada aos medievais.

de Caspar Isenkrahe.

A contra-argumentação de Isenkrahe tinha por base um tipo de argumentação clássica44. A defesa dessa tradição conduzia Isenkrahe à conclusão de que as assunções de Gutberlet implicavam em uma flagrante contradição. Isto é, o conceito de infinito atual era evidentemente problemático, para não dizer auto-contraditório.

Os detalhes do debate entre Isenkrahe e Gutberlet importam menos que a estratégia adotada por Gutberlet para proteger as suas próprias idéias. Essa estratégia consistia, justamente, em defender o infinito atual de Cantor, como uma conseqüência da natureza mesma de Deus. Em suma, se Deus existe, como ser onipotente, então os números transfinitos de Cantor devem necessariamente existir, como uma conseqüência natural dessa onipotência.

But in the absolute mind the entire sequence is always in actual consciousness, without any possibility of increase in the knowledge or contemplation of a new member of the sequence.

(Gutberlet 1886, in Dauben 1979, p. 143)

Nos termos da argumentação de Gutberlet, um infinito outro que não o atual não poderia representar o verdadeiro infinito, já que um infinito concebido como meramente potencial contradiz a onipotência divina. Essa onipotência deveria garantir, portanto, a existência, ou a realidade in abstrato, tanto de uma solução para a Hipótese do

Continuum como, também, da coleção completada de todos os números reais. Contudo, é necessário explicitar em que termos está pautada, para Gutberlet, a existência do infinito atual, garantida pela onipotência de Deus.

Mas também, e igualmente por razões puramente teológicas, Gutberlet negava enfaticamente a existência in concreto de um infinito atual. É sabido que a aproximação entre a potência infinita de Deus e o mundo concreto gera, no interior das discussões religiosas, uma postura panteísta considerada oficialmente herética pelo decreto do Papa Pio IX, de 186145. Assim, é compreensível porque, tanto Gutberlet como seu professor, o Cardeal Franzelin, membro do Conselho do Vaticano, só podiam admitir a coleção infinita completada de números transfinitos in abstrato e não como natura naturata, ou in

44 Ver a seção dedicada aos medievais, principalmente o momento sobre São Tomas de Aquino, no

primeiro capítulo deste trabalho.

concreto, como pretendia Cantor (Dauben 1979).

Devemos lembrar que o fervor religioso de Cantor era tal que o mantinha em estreita relação, através de uma constante troca de correspondências, com diversas personalidades do interior da Igreja Romana. Entre eles estava o próprio Cardeal Franzelin, ao qual, em uma carta datada de 22 de Janeiro de 1886, Cantor explicita sua distinção entre (1) Infinitum aeternum increatum sive naturata e (2) Infinitum creatum

sive Trasfinitum, acreditando, com isso, poder resgatar, em sua teoria, uma visão do infinito atual in concreto e, ao mesmo tempo, afastar definitivamente o problema do Panteísmo.

Para ele, o atributo (1) às entidades infinitas, reservava-se exclusivamente à instância divina, enquanto (2) poderia ser atribuído, sem problemas, a uma determinada

realidade concreta.

Esta realidade concreta e infinita teria começado a se revelar, como tal, através da coleção dos números transfinitos. Estes representariam, in abstrato, a coleção infinita atual dos objetos existentes no universo criado. Assim, acreditava Cantor, seu infinito poderia ser aceito pela Igreja não apenas como um infinito lógico, mas também como um infinito concreto, prova da potência criadora de Deus (Dauben 1979).

O infinito absoluto estaria reservado a Deus, enquanto que o transfinito atual seria uma qualidade do Universo criado. E, com essa distinção, Cantor conseguiu vencer as últimas resistências que Franzelin ainda impunha ao seu infinito atual.

Thus the two concepts of the Absolute-Infinite and the Actual-Infinite in the created world or in the Transfinitum are essentially different, so that in comparing the two one must only describe the former as properly Infinite, the latter as improperly and equivocally infinite. When conceived in this way, so far as I can see at present, there is no danger to religious truths in your concept of the Transfinitum.

(Franzelin, em Dauben 1979, p.146)

O endosso da teoria dos números transfinitos, por parte da Igreja, é realizado, como se vê, em termos pouco elogiosos e mesmo diversos do status que Cantor almejava para o seu infinito atual, isto é, como infinito em sentido próprio. No entanto, Cantor estava bastante satisfeito, e até mesmo orgulhoso, por sua conquista junto a uma das autoridades religiosas mais próximas do Papa. Essa conciliação estava de acordo com os seus impulsos mais íntimos de vocação e contribuição religiosa. Esses impulsos aparecem

na forma de sua ontologia dos números.

Acreditamos que esses comentários são importantes para que doravante possamos sopesar de maneira mais equilibrada nossas considerações acerca do contexto em que a ontologia dos números transfinitos se coloca. Trata-se de um contexto que não se reduz, exclusivamente, aos anseios puramente matemáticos, assim como reitera Dauben:

In fact, for him the mathematical, metaphysical, and theological aspects of his transfinite set theory were mutually reinforcing. Cantor was convinced that his discoveries were not only essential for the future development of pure mathematics but that set theory could even be used to refine philosophy and to support theology.

(Dauben 1979, p.119)

Para Cantor, a existência dos números transfinitos poderia ser compreendida tanto a priori como a posteriori (Dauben 1979). O primeiro nível de existência dos números transfinitos, a existência a priori, estaria garantido pela própria existência de Deus. Isto é, uma vez assumida a perfeição de um ser criador onipotente, e aqui Cantor parece tomar emprestada a argumentação de Gutberlet, a coleção dos números transfinitos seria não apenas uma possibilidade, mas uma necessidade.

O segundo nível de existência, a posteriori, poderia ser verificado com o auxílio das ciências naturais. Na medida em que uma coleção finita de enunciados, por maior que fosse essa coleção, não poderia jamais explicar completamente o menor dos fenômenos empíricos, vê-se garantida a necessidade da assunção de um transfinitum em uma realidade do tipo natura naturata. Ou seja, somente uma coleção infinita de enunciados seria suficiente para explicar completamente os fenômenos naturais. Daí a necessidade, para Cantor, da aceitação do transfinitum in concreto.