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2. CANTOR E A TEORIA DE CONJUNTOS

2.2 T EORIA DE C ONJUNTOS

2.2.4 Os paradoxos

O aparecimento das antinomias de Burali-Forti (1981 [1897]) e de Russell (1985 [1903]) suscitaram a sensação geral entre os matemáticos de que a teoria de conjuntos de Cantor não caminhava bem.

O paradoxo de Burali-Forti, ou o paradoxo do maior número ordinal, coloca em xeque um importante resultado dos Beitrage. Como sabemos, nessa obra Cantor associa um número ordinal a todo conjunto bem ordenado. Mencionamos, na seção anterior, que ele também obtém, como teorema, a afirmação que todos os números ordinais devem ser comparáveis entre si, isto é, para todo número ordinal α e β, uma das três condições seguintes é sempre satisfeita: α < β, α > β ou α = β.

Para Burali-Forti é fácil gerar uma inconsistência da afirmação que todo conjunto bem ordenado possui um número ordinal correspondente. Seja W o maior conjunto bem ordenado, ou o conjunto de todos os números ordinais. Então W possui um número ordinal β maior que qualquer número ordinal. Porém, W deve conter todos os números ordinais, incluindo β, resultando na afirmação de que β < β.

Da conseqüência β < β, Burali-Forti conclui que é falsa a afirmação segundo a qual, dados dois números ordinais quaisquer, estes são necessariamente comparáveis entre si, nos termos em que Cantor propõe essa comparação. O caso exemplar é o próprio

maior número ordinal.

Como contra-argumento, Cantor afirma que a coleção de todos os números ordinais não é uma coleção bem definida. Isto é, W não é, de fato, um conjunto. Como vimos, uma de suas definições mais importantes afirma que conjunto é apenas aquele agregado, abstraído de um dado domínio de elementos, que permite, sem contradição, ser concebido como um todo completo.

Para defender parte da teoria de conjuntos em relação ao paradoxo de Burali- Forti, especialmente a comparabilidade entre números ordinais, Russell opta por interpretar que W não pode ser um conjunto bem ordenado. No entanto, essa interpretação também é danosa à teoria de conjuntos. Particularmente, o teorema de que todo conjunto pode ser bem ordenado perde sua razão de ser. De igual modo, a comparabilidade entre números cardinais também fica sem fundamento.

surgimento do paradoxo que ganhou o seu nome está explicitamente vinculado ao projeto logicista. Especificamente, ao sistema lógico elaborado por Frege com o intuito de criar uma base puramente lógica para a aritmética. E para entendermos o paradoxo de Russell é necessário saber como ele afeta o sistema de Frege.

Esse sistema aparece em duas obras, os Grundlagen der Arithmetik (1884) e o

Grundgezetse der Arithmetik (1903). Nelas Frege se esforça em mostrar que a aritmética pode ser completamente desvinculada do psicologismo como, por exemplo, o encontrado na doutrina kantiana, na qual a matemática se reduz a juízos sintéticos a priori.

Para Frege, as proposições da aritmética são verdades analíticas. Isto é, a aritmética pode ser reduzida, sem prejuízo, à lógica. Nesse sentido de analiticidade, a matemática seria uma ciência pura, totalmente distante daquilo que pretendiam, por sua vez, os empiristas, que a encaravam como um conjunto de afirmações que generalizava, por meio do princípio de indução, as verdades retiradas da observação atenta da natureza.

Ao construir seu sistema lógico, Frege pretende criar as condições para que as verdades aritméticas possam ser colocadas, consistentemente, em termos estritamente lógicos. Assim, por exemplo, a idéia fundamental de número, antes entendida como um predicado livremente atribuível a coleções ou a coisas, se torna um predicado estritamente atribuível a conceitos. Ainda que os números existam realmente e de maneira independente, como objetos lógicos, só é legítimo falar deles quando entendidos como predicados de conceitos.

Seja F um conceito qualquer, o número desse conceito é denotado por NxFx. Seja também a extensão do conceito F, a coleção de todos os objetos que recaem sob F, então o número desse conceito passa a ser definido como a extensão de F. Se é possível criar uma correspondência, um-a-um, entre as extensões de dois conceitos, F e G, então estes dois conceitos são ditos equinuméricos, isto é, possuem o mesmo número.

NxFx = NxGx ⇔ F ≈ G

Está é a lei número V de Frege, que traduz o princípio de Hume, segundo a qual dois conceitos possuem a mesma extensão, ou possuem o mesmo número, ou são

equinuméricos se, e somente se, é possível criar uma relação um-a-um entre eles. Por meio dessa relação, a seqüência dos números naturais pode ser gerada hereditariamente do modo seguinte.

Se F é o conceito {equinúmero a x ≠ x}, a extensão de F, ou o número de F, ou ainda a coleção de todos os objetos que recaem sob este conceito, é denotada por 0. Logo, NxFx = 0. Seja G o conceito {equinúmero a NxFx}, então o número de G, a extensão do conceito G, ou ainda a coleção dos objetos que recaem sob o conceito G, é denotado por 1, já que é possível encontrar apenas um objeto que satisfaz a restrição expressa pelo conceito G, a saber, o número do conceito F. Assim, NxGx = 1.

Do mesmo modo, seja H o conceito {equinúmero a NxFx ou NxGx}, o número de H é dado pelo conceito equinúmero à extensão de H, logo NxHx é 2. Em resumo, um número é sempre a extensão de um conceito. Assim, um número é real e independente se existir um conceito para o qual ele sirva de predicado, como sua extensão ou como seu número. Assim, a definição de número pode ficar restrita ao contexto da lógica.

Além disso, no sistema de Frege a relação de pertinência não é um primitivo, mas é definida do seguinte modo: x y se, e somente se, existe um conceito F, tal que Fx, e y é a extensão de F. Isto é, dentro da coleção y de objetos que recaem sob o conceito F, encontramos o objeto x, e denotamos x y.

Russell sugere, em carta a Frege, a consideração do conceito R {extensão que não contém a si mesma}, ou seja, Russell sugere um conceito perfeitamente aceitável dentro da proposta de Frege e cuja extensão, naturalmente, deve reunir todos aqueles objetos que recaem sob ele. O paradoxo aparece no exato momento em que propomos a pergunta: a extensão de R, recai sob o conceito R? Ou, de outro modo, a extensão de R pode ser considerada como um objeto que pertence à coleção dos objetos definidos pelo conceito R? Ou ainda, a extensão de R pertence a si mesma?

Seja x a extensão de R e y a coleção dos objetos definidos pelo conceito R, então

x yyy, porém x e y se referem ao mesmo objeto, logo x xxx. De modo que, se respondemos a pergunta “a extensão de R recai sob R?” pela negativa, então a extensão de R satisfaz a condição imposta pela definição do conceito e, portanto, deve recair sob R, contrariando a nossa resposta negativa. Por outro lado, se respondemos pela afirmativa, então a definição do conceito exclui esse objeto, e mais uma vez temos nossa resposta contrariada.

Assim, qualquer que seja nossa resposta para a pergunta de Russell, a inconsistência aparece. O sistema de Frege sofre um severo golpe em sua base. É

justamente a lei número V, unida à definição de pertinência, que gera a nociva antinomia. O sistema de Frege se mostra inconsistente e seu projeto logicista naufraga de maneira estrondosa, afetando também outros projetos de fundamentação da aritmética, como a própria teoria de conjuntos.

Os dois paradoxos acima são muitas vezes utilizados como principal peça de ataque à concepção naïve da teoria de conjuntos36. Ao mesmo tempo, os paradoxos são também utilizados como base argumentativa em prol de uma postura axiomática, ou seja, a postura axiomática evitaria o aparecimento dos paradoxos, como os de Russell e de Burali-Forti.

No cerne da problemática que reúne o aparecimento dos paradoxos está o princípio segundo o qual todo predicado possui uma extensão. É justamente este princípio que sofre uma restrição com a substituição do Axioma da Compreensão pelo

Axioma da Separação, no seio da teoria axiomática de Zermelo.

Mas a pergunta que nos propomos aqui não é, propriamente, se a postura axiomática é ou não a única alternativa para as dificuldades da teoria de conjuntos naïve. Anterior a esta questão, e de maneira mais fundamental, trata-se de saber se Cantor considerava o aparecimento das antinomias como um problema real para a sua teoria.

Obviamente Cantor sabia dos resultados de Russell. Mais do que isso, anos antes ele mesmo já havia considerado as conseqüências de se assumir um conjunto sem qualquer restrição. Isto fica bastante claro em uma carta endereçada a Hilbert em 26 de setembro de 1897:

(...) Totalidades que não podem ser consideradas como sendo conjuntos (um exemplo é a totalidade de todos os alephs como foi mostrado anteriormente), eu denominei há muitos anos de totalidades absolutamente

infinitas, as quais eu distingui cuidadosamente dos conjuntos transfinitos

(Cantor, citado por Viero 1997, p. 126, grifos nossos)

Pode-se dizer que Cantor estava menos preocupado com a consideração dos paradoxos do que com a procura de uma demonstração para a Hipótese do Continuum. Isto se justifica se considerarmos que, além dos resultados matemáticos mais imediatos de sua teoria, Cantor tinha a intenção clara de fornecer um tratamento matemático e

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É possível mencionar ainda os paradoxos de Cantor e de Richard, para mais detalhes ver Karel Hrbacek & Thomas Jech 1978.

conceitual, absolutamente novo, para a idéia de infinito. Mas, para ele, este novo tratamento, assim como a própria idéia de infinito, envolviam muitos outros aspectos. Aspectos estes que não podiam se limitar àqueles da axiomática formal.

A rigidez da postura axiomática formal descartaria, antecipadamente, a consideração de tais aspectos anteriores à própria teoria, colocando em segundo plano uma discussão que Cantor bem poderia querer trazer para o centro das atenções. Os chamados paradoxos eram apenas a consideração problematizada da perspectiva lógico- formal, de parte vital de sua concepção filosófica e teológica do Absolutum.

O infinito atual pode ser divido em três categorias: a primeira, o infinito perfeitamente realizado em Deo o qual eu denomino de absoluto; a segunda, o infinito presente no mundo criado e a terceira o infinito como objeto matemático, i.e., como cardinal, como ordinal ou tipo ordinal que pode ser considerado in abstracto pelo intelecto humano. As duas últimas categorias, que evidentemente representam uma versão limitada do infinito atual na medida em que elas são capazes de serem aumentadas e que eu denomino de Transfinitum ao qual eu cuidadosamente diferencio do Absolutum.

(Cantor, segundo Purket 1989, p. 59, em Viero 1997, p. 127)

Cantor via os paradoxos de uma perspectiva mais ampla, na qual estes se tornavam um aspecto do infinito atual, o Absolutum, que por sua natureza mesma não poderia jamais receber um número37. Não podemos dizer que essa perspectiva do pensamento de Cantor representa uma mera estratégia para se afastar ad hoc das dificuldades que os paradoxos representavam para sua teoria, tendo em vista a ordem cronológica em que estes fatos se apresentam.

Da mesma forma não se pode negar, e nisto testemunhos históricos são abundantes, que as concepções teológicas e filosóficas de Cantor o aproximam de uma postura platônica. Essa postura estava em franca oposição às de alguns matemáticos que, à sua época, defendiam com igual intensidade tanto a axiomática formal como a idéia de um infinito potencial aristotélico. Assim, o platonismo de Cantor não pode ser colocado como coadjuvante neste enredo, sob pena de esvaziarmos o significado filosófico de sua teoria.

Este esvaziamento filosófico acabou sendo realizado por uma vasta literatura

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Vide seção sobre Platão (análise dos diálogos Filebo e Parmênides), na qual um raciocínio semelhante é apresentado.

especializada que, de certa forma, ignorou muitos, ou quase todos, aspectos não- matemáticos envolvidos nos trabalhos de Cantor, não se dando conta, principalmente, daqueles que envolviam suas concepções filosóficas e teológicas.

Ao assumirem esta postura, muitos pesquisadores acabaram por ignorar parte substancial das motivações que levaram Cantor a não se preocupar, por exemplo, em construir um modelo axiomático formal para a sua teoria38.

Exemplo disso é que um dos principais alvos de ataque à teoria naïve é, entre outros, sua base, qual seja, a definição de conjunto fornecida nos Grundlagen. É, vez por outra, denunciada a fragilidade dessa definição, suscitando uma controvérsia acerca do que pode e do que não pode ser considerado uma coleção, uma totalidade, ou mesmo sobre aquilo que pode conferir significado ao termo objeto.

Além disso, a definição dos Grundlagen limita a concepção de conjunto somente àqueles objetos que podem ser reunidos, como uma coleção totalizada, em nossa intuição ou pensamento. Não é necessário dizer que isto limita a classe dos conjuntos somente àquilo que nos é acessível ao intelecto. E saber o que nos é acessível ao intelecto, por si só, já representa uma acirrada e muitas vezes infrutífera disputa filosófica. Por outro lado, o conjunto vazio pode não ser contemplado por esta definição, já que para todo conjunto é pressuposta uma coleção de objetos definidos.

Há ainda, na definição de 1883, o uso explícito dos termos “pensamento” e “intuição”, o que, também, justificaria longas discussões. Não é de espantar que matemáticos e filósofos considerem a definição dos Grundlagen como problemática e fonte de polêmicas intermináveis.

Como se todas estas dificuldades ainda não fossem suficientes, ainda existe a polêmica em torno das antinomias, derivadas de uma leitura axiomatizada da concepção

naïve da teoria de conjuntos. Assim, para os críticos mais ácidos, e entre eles encontramos Kronecker e Poincaré, essa definição dos Grundlagen deixou de ser estéril para se tornar fértil em inconsistências39.

38 Ver Viero 1997, p.7-109 39

Para a obtenção de uma prova da inconsistência da teoria naïve a partir da perspectiva axiomática ver Viero 1997, p.51-52.