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2. CANTOR E A TEORIA DE CONJUNTOS

2.3 A FUNDAMENTAÇÃO FILOSÓFICA DO INFINITO CANTORIANO

2.3.2 Ontologia do transfinito

Dedicar-nos-emos agora a tentar compreender com mais detalhes a filosofia que serve de suporte a essa nova concepção de infinito em Cantor. Esta filosofia se resume, basicamente, a uma ontologia dos números transfinitos que, por sua vez, para alguns historiadores, está fundada numa especial forma de platonismo.

Esta ontologia constitui o cerne filosófico do posicionamento cantoriano acerca da existência dos números transfinitos e, também, aquilo que consideramos ser uma má

compreensão da oposição entre concepção naïve e concepção axiomática da teoria de conjuntos.

É essencial tentar entender um pouco melhor essa concepção ontológica dos números para compreender, por exemplo, porque Cantor não enxergava como problemática sua definição de conjunto, ao contrário dos adeptos da axiomática formal.

Assim, faz-se necessário, em primeiro lugar, penetrar na distinção cantoriana entre “realidade imanente” ou “realidade intra-subjetiva” e “realidade transiente” ou “realidade trans-subjetiva”.

Sobre o primeiro tipo de realidade Cantor nos diz:

First, we may regard the whole numbers as real in so far as, on the basis of definitions, they occupy an entirely determinate place in our understanding, are well distinguished from all other parts of our thought and stand to them in determinate relationships, and thus modify the substance of our minds in a determinate way.

(Cantor, em Tait 1998, p.12, grifos nossos).

E sobre a segunda forma de realidade acrescenta:

But then, reality can also be ascribed to numbers to the extent that they must be taken as an expression or copy of the events and relationships in the external world which confronts the intellect, or to the extent that, for instance, the various number classes are representatives of powers that actually occur in physical or mental nature.

(Cantor, emTait 1998, p.12).

Antes de tudo, é importante notar que nos Grundlagen Cantor usa de maneira distinta os termos reellen e realen para se referir aos números. A expressão reellen

Zahlen é usada para se referir aos números reais de maneira técnica, isto é, como um determinado conjunto de números, denotado por ℜ, que se diferencia de outros grupos de números como, por exemplo, os números naturais. Já a expressão realen Zahlen, possui um sentido extra-matemático, um sentido ontológico.

Os realen Zahlen são aqueles números cuja existência transcende o puro formalismo. Ou seja, são números que existem de maneira concreta e atual, são números que possuem uma concretude em uma dada realidade, seja ela imanente ou transiente (Dauben 1979).

Para Cantor, seus números transfinitos podem alçar o mesmo status ontológico que os números inteiros positivos. Ou seja, tanto os números finitos como os infinitos

estão fundados nos mesmos princípios intuitivos. Do mesmo modo como é possível atribuir, ou enumerar, coleções finitas de maneira bastante natural e intuitiva, igualmente é possível realizar o mesmo procedimento com coleções infinitas.

Como os números finitos encontram suporte em uma dada intuição do mundo, servindo como representações matemáticas para grupos de objetos, também os números infinitos possuiriam um referencial no mundo físico. Os números infinitos seriam legítimos representantes matemáticos de várias instâncias físicas e, assim sendo, encontrariam suporte em uma realidade objetiva, realidade transiente.

Quando indagado sobre quais instâncias físicas os números transfinitos seriam representantes matemáticos, Cantor se aproveita da terminologia de Leibniz e propõe, como resposta, a seguinte pergunta: Qual é a potência do conjunto de todas as

mônadas?46 Ainda que não forneça uma resposta precisa à sua própria pergunta, sente que há fortes motivos para acreditar que a matemática dos números transfinitos pode ser uma grande auxiliar em física teórica e aplicada.

No entanto, a teoria dos números transfinitos e, com ela, a totalidade da teoria dos conjuntos não precisava, em princípio, desempenhar qualquer papel numa realidade física dada, assim como é entendida a realidade transiente ou objetiva. Sua matemática era acima de tudo uma matemática livre, expressão que preferia no lugar da usual

matemática pura. Por matemática livre, Cantor entendia uma matemática cujo único critério de existência para seus objetos fosse a consistência.

Assim, seus números transfinitos possuem uma existência intrasubjetiva garantida pela consistência. Nesse sentido, sua definição de conjunto, presente nos

Grundlagen, não representa uma dificuldade em sua teoria, pois se funda, justamente, na concepção ontológica segundo a qual o número é um objeto real.

Sua concepção teórica está, portanto, voltada para uma postura clássica (naïve) em que, em um primeiro momento, justificativas ontológicas são necessárias para a apreciação de certos conceitos, assim como para a atestação da existência dos objetos que recaem sob eles. O reconhecimento das verdades dos enunciados que podem ser proferidos sobre ambos é fornecido pela consistência de uma determinada teoria que também garante a existência desses conceitos e objetos.

Desde que a existência, in abstrato, dos números transfinitos está fundada na intuição de uma dada realidade e desde que as principais asserções verdadeiras sobre eles são dadas pela teoria dos números transfinitos, então os conjuntos, em particular conjuntos transfinitos, são entidades legítimas do ponto de vista da ontologia platônica de Cantor.

Aqueles que discordavam disto ou não estavam de acordo com a sua ontologia — neste caso se trata de uma discordância de princípios, não necessariamente matemáticos —, ou não compreendiam a natureza de sua distinção entre multiplicidades consistentes e multiplicidades inconsistentes. No entender de Cantor, ambas multiplicidades existiam. No entanto, só sobre as primeiras era legítimo formular enunciados matemáticos e julgá-los verdadeiros.

É interessante comparar agora a definição de conjunto dos Grundlagen com uma definição posterior.

I call a manifold (an aggregate [Inbegriff], a set) of elements, which belong to any conceptual sphere, well-defined, if on the basis of its definition and in consequence of the logical principle of excluded middle, it must be recognized that it is internally determined whether an arbitrary object of this conceptual sphere belongs to the manifold or not, and also, whether two objects in the set, in spite of formal differences in the manner in which they are given, are equal or not. In general the relevant distinctions cannot in practice be made with certainty and exactness by the capabilities or methods presently available. But that is not of any concern. The only concern is the internal determination from which in concrete cases, where it is required, an actual (external) determination is to be developed by means of a perfection of resources.

(Cantor 1932, p. 150, Tait 1998, p.4)

O que podemos entender de imediato é que esta não é uma nova versão de definição de conjunto, introduzida para substituir à dos Grundlagen ou aquela que encontramos nos Beiträge. Trata-se tão somente da explicitação de um caso particular, a saber, o de conjuntos bem definidos.

Cantor estava preocupado em salientar uma distinção crucial para a qual, ao que tudo indica, poucos tinham dedicado a devida atenção, qual seja: a distinção vital entre

multiplicidades consistentes e inconsistentes47.

Ao mesmo tempo, também estava preocupado em reforçar a concepção de uma

matemática livre, isto é, desprendida de quaisquer condições externas do sujeito.

Para legitimar essa matemática livre, Cantor assume que certas entidades, entre elas os objetos de uma esfera conceitual, assim como os próprios conjuntos, devem estar previamente presentes e acessíveis a uma mente dotada dos princípios lógicos que lhes permita manipulá-los devidamente.

Contudo, apesar da liberdade propiciada pela realidade imanente, Cantor não exclui a participação da matemática em momentos concretos da realidade transiente. Estes momentos envolveriam recursos e desenvolvimentos particulares e contingentes, para cada caso e para cada época específica.

É claro que de um ponto de vista mais rigoroso, ou formal, a definição de conjunto apresentada acima ainda incorre em algumas deficiências a serem reparadas como, por exemplo, uma melhor definição de uma esfera conceitual. No entanto, é importante tomar o cuidado necessário para não se tomar os critérios de uma concepção axiomática, qualquer que ela seja, para julgar um domínio de afirmações que não partilham dos mesmos pressupostos.

Cantor não pretendia erguer a sua teoria nas mesmas bases do que veio a ser a axiomática formal e, portanto, não estava preocupado com o que, a partir deste ponto de vista, poderiam ser considerados como excessos e/ou deficiências, visto que suas definições sucessivamente apelavam para pressupostos extra-teóricos.

Ainda assim, Cantor tem o cuidado de salientar que uma esfera conceitual só pode fazer referência àquela da aritmética, da teoria das funções e da geometria. No entanto, a princípio, isto em nada impediria que outras esferas conceituais pudessem futuramente ser consideradas a partir dos desenvolvimentos dos métodos e dos recursos técnicos que se tornassem disponíveis.

O que isto quer dizer é que a definição acima e a ontologia de Cantor são suficientemente amplas para abranger tanto os objetos puramente abstratos, tais como os números, como aqueles da ordem do mundo concreto, perfazendo, assim, a base de uma matemática que pode ser considerada tanto livre como aplicada.

Ou seja, a realidade intra-subjetiva não descarta a realidade trans-subjetiva. Há apenas, por assim dizer, uma prioridade lógica, uma ordem, em que a primeira antecede, necessariamente, a segunda para a construção de uma compreensão intelectual de mundo.

Ou seja, a apreensão matemática de uma realidade intra-subjetiva não pressupõe a apreensão matemática de uma realidade trans-subjetiva, porém ambas realidades existem.

3. THOMAS KUHN: UMA NOVA HISTORIOGRAFIA