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2. CANTOR E A TEORIA DE CONJUNTOS

2.2 T EORIA DE C ONJUNTOS

2.2.3 Cardinalidade

A idéia de cardinalidade que encontramos nos Beiträge depende, em grande parte, do desenvolvimento que a definição de conjunto sofreu desde a publicação dos

Grundlagen.

Em 1883 era importante que a idéia mais básica de um conjunto fosse a de um todo dado completamente, uma coleção completa de elementos. Essa característica essencial de conjunto estava de acordo com o projeto dos números transfinitos. Era necessário conceber as coleções de números infinitos como completas para que a idéia de um número transfinito tivesse êxito. É assim que encontramos essa definição de conjunto nas palavras de Cantor, onde toda a energia é focada na idéia de coleção completa:

By an “aggregate” or “set” I mean generally any multitude which can be

thought of as a whole, i.e., any collection of definite elements which can

be united by a law into a whole.

(Cantor 1883, p.204, em Dauben 1979, p.170, grifos nossos)

Nos Beitrage, a definição de conjunto preserva a idéia estabelecida nos anos anteriores de um todo completo; no entanto, com o aparecimento da definição de potência de um conjunto, notamos que ocorre um deslocamento do centro de gravidade desse conceito:

By an "aggregate" (Menge) we are to understand any collection into a whole (Zusammenfassung zu einem Ganzen) M of definite and separate objects m of our intuition or our thought. These objects are called the "elements" of M.

In signs we express this thus:

1

0

M={m}.

(Cantor 1955[1897], p.85, grifos nossos)

A teoria de conjuntos de pontos está cada vez mais em segundo plano, e a teoria geral de conjuntos começa a se apoiar em suas próprias conquistas. Uma delas é, justamente, a idéia de cardinalidade que passa a expressar a potência de um conjunto M. A notação utilizada por Cantor é M , apresentada pela primeira vez em 1887, denotando que o conjunto M passa por um duplo processo de abstração no qual, por força do

pensamento, ignoramos as qualidades individuais de cada elemento m, pertencente a M, assim como a possível relação de ordem entre esses elementos.

We will call by the name "power" or "cardinal number" of M the general concept which, by means of our active faculty of thought, arises from the aggregate M when we make abstraction of the nature of its various elements m and of the order in which they are given.

We denote the result of this double act of abstraction, the cardinal number or power of M, by

M .

(Cantor 1955[1897], p.86, grifos nossos)

Também não podemos deixar de assinalar que tanto na definição geral de

conjunto como na definição de número cardinal, ou potência de um conjunto, Cantor recorre ao que ele chama de “poder do pensamento”, para se referir à capacidade de abstrair certas qualidades e relações no ato da formação de ambos os conceitos. Esse apelo a intuição está diretamente vinculado a sua concepção filosófica de axioma.

Neste momento nos encontramos um passo além em relação às concepções anteriores de conjunto e potência de um conjunto, dado que, tanto uma quanto a outra, ainda se mostravam, em algum grau, dependentes de noções oriundas da geometria e da física. Devemos lembrar que um conjunto era concebido, primordialmente, como um agregado qualquer de pontos em um espaço n-dimensional.

A partir das definições acima Cantor apresenta os números cardinais finitos como coleções finitas de elementos A =1, B =2, C =3,Κ , onde o conjunto A possui exatamente um elemento, B possui exatamente dois elementos, C possui exatamente três elementos, etc.

Entre os muitos resultados obtidos por meio dessas definições encontramos um dos mais importantes para nós. Através da apresentação de uma seqüência finita de números cardinais, Cantor está pronto para apresentar uma relação hierárquica entre eles. Assim, dada a sucessão finita de cardinais 1, 2, 3, ..., n é possível estabelecer que, para todo n nessa sucessão, n+1 contém n ou que, em outras palavras, n+1 é estritamente maior que n. Além disso, entre n e n+1, não há nenhum outro número cardinal inteiro. Disso se deriva que não é possível estabelecer uma relação, um-a-um, entre um conjunto finito qualquer e um subconjunto próprio desse conjunto. O princípio o todo é maior que

a parte é preservado no caso dos coleções finitas.

Após definir conjuntos finitos como conjuntos que podem ser expressos por um número cardinal finito, ou que possuem uma cardinalidade finita, Cantor apresenta o primeiro número cardinal transfinito, denotado por ℵ0 (Aleph zero), como o número

cardinal das coleções infinitas de primeira classe, onde ℵ0 tem a potência da coleção de

todos os números cardinais finitos.

A escolha dessa notação possui um significado muito especial para Cantor. A primeira letra do alfabeto hebraico, o ℵ, também é utilizada, nessa língua, para representar a unidade, seja em sentido aritmético, seja em sentido teológico. Os números transfinitos deveriam representar unidades infinitas, um conceito bastante longínquo das concepções matemáticas de então, no entanto bastante próximo das concepções teológicas da tradição judaico-cristã. O ℵ representa essa unidade do infinito buscada por Cantor e, simultaneamente, o ℵ também representa uma união entre seu amplo interesse pela matemática e suas profundas convicções místico-religiosas.

A partir da idéia de conjuntos bem ordenados e do primeiro número cardinal transfinito, ℵ0, Cantor é capaz de conceber uma sucessão bem ordenada, infinita, de

números cardinais transfinitos, ℵ0, ℵ1, ℵ2, Κ , ℵv, Κ ,ℵω, porém nada nos Beiträge se

apresenta como uma demonstração definitiva da existência de ℵω.

Somando-se a isso ainda deve ser assinalada a ausência de uma prova de que todo conjunto pode ser bem ordenado, assim como a ausência de um mecanismo mais efetivo de comparação e distinção para todos os números cardinais, sem falar na própria