• Nenhum resultado encontrado

3. THOMAS KUHN: UMA NOVA HISTORIOGRAFIA PARA AS CIÊNCIAS

3.4 R EVOLUÇÃO C IENTÍFICA

3.4.3 A história oficial

Apesar dos variados exemplos que corroboram sua visão de progresso científico, para Kuhn a idéia mais comum que se tem da ciência, assim como de seu desenvolvimento histórico, não deixa entrever as revoluções cuja existência foram até agora largamente defendidas. E, segundo ele, há bons motivos para essa virtual invisibilidade das revoluções científicas.

Em primeiro lugar, é necessário considerar a existência de algo como uma autoridade científica. Esta é a fonte das idéias que popularmente se têm da ciência e de sua prática. Para Kuhn, essas idéias são ativamente propaladas, pelos meios oficiais, com o intuito de encobrir que o movimento científico não ocorre de maneira linear e cumulativa.

Essas fontes oficiais podem ser dividas em três grupos: manuais científicos, textos de divulgação e obras filosóficas que se baseiam nos dois primeiros. Juntos esses três veículos informativos corroboram o paradigma vigente, pois discorrem sobre os resultados que se consolidaram após uma determinada revolução científica e não sobre as próprias revoluções, tomadas em si mesmas.

Ou seja, cada uma dessas três categorias, que se voltam simultaneamente para o trabalho do cientista, apesar de se debruçarem sobre ele de pontos de vista diferentes e com objetivos distintos, possuem como conteúdo principal somente o trabalho da ciência normal de cada época. Aparentemente, não há nenhum compromisso com a descrição do processo que culminou com a ciência normal. No caso dos manuais científicos há até mesmo razões funcionais para que as revoluções sejam sistematicamente encobertas.

Por fornecerem, aos seus leitores, o conteúdo da prática científica normal mais recente, os manuais científicos devem ser reescritos a cada troca de paradigma. Nessa reedição do conteúdo da ciência normal, os manuais omitem os conteúdos anteriormente

válidos, que agora não possuem mais lugar, por não corresponderem ao novo quadro conceitual em vigor.

A menos que o pesquisador tenha testemunhado essa troca de paradigmas, ele será levado a acreditar que os conteúdos desses manuais possuem uma referência histórica muito anterior à da emergência do paradigma ao qual correspondem.

Exemplo disso é que esses manuais pouco, ou quase nada, se dedicam a um tratamento histórico da disciplina científica cujo conteúdo estão preocupados em transmitir. Quando o fazem reservam, para isso, um rápido capítulo, em geral o primeiro, cujo objetivo é o de trazer uma espécie de lastro histórico aos princípios assumidos pelas idéias neles apresentadas.

Ou seja, esses capítulos introdutórios tentam passar a idéia de que existe uma tradição para as idéias e os princípios que serão tratados nos capítulos seguintes. Assim, os cientistas de tempos passados são tratados como heróis e seus trabalhos como precursores do que hoje se considera um conhecimento mais completo.

Esses trabalhos que, nos manuais, são considerados como precursores de uma determinada atividade científica, passam por uma compilação que seleciona apenas aqueles dados e apenas aquelas características que mais se afinam com a visão do paradigma em vigor e, do qual, o manual científico é o principal defensor. Esses dados e características são, muitas vezes, descontextualizados e distorcidos de modo a criar a sensação, no jovem pesquisador, que esses heróis do passado estavam trabalhando exatamente nos mesmos fenômenos e problemas para os quais muitas soluções foram encontradas, posteriormente, por outros tantos cientistas.

Esse jovem cientista, que agora se encontra diante desta história bem sucedida, se sente convidado a também poder fornecer alguma contribuição importante para este desenvolvimento que parece apenas somar resultados:

Em parte por seleção e em parte por distorção, os cientistas de épocas anteriores são implicitamente representados como se tivessem trabalhado sobre o mesmo conjunto de problemas fixos e utilizado o mesmo conjunto de cânones estáveis que a revolução mais recente em teoria e metodologia científica fez parecer científicos. Não é de admirar que os manuais e as tradições históricas neles implícitas tenham que ser reescritas após cada revolução científica. Do mesmo modo, não é de admirar que, ao ser reescrita, a ciência apareça, mais uma vez, como sendo basicamente cumulativa.

(Kuhn 2003, p.177-178)

O que ocorre, nessa leitura que os manuais realizam da história, portanto, é uma flagrante revisão do passado do ponto de vista do presente, sempre no sentido de acomodar aquele a este. Um exemplo utilizado por Kuhn merece ser mencionado aqui.

Nos referimos à afirmação de Newton de que Galileu havia descoberto que a força sempre constante da gravidade promove um movimento que é proporcional ao quadrado do tempo. Na verdade, Newton se refere a um teorema que pode ser traduzido dessa forma desde que assumidos os conceitos da dinâmica do próprio Newton. Contudo, Galileu não chega a falar de forças como, por exemplo, a da gravidade, em suas digressões acerca da queda dos corpos (Kuhn 2003, p.179).

Deste modo, ao assumir que Galileu estava diante de um fenômeno que seus pressupostos conceituais não lhe permitiam testemunhar, Newton disfarça o aspecto revolucionário do trabalho desse grande investigador da Renascença. Qual seja, a passagem da dinâmica aristotélica para a de Galileu, ao mesmo tempo em que também disfarça a passagem da dinâmica de Galileu para as suas próprias explicações sobre as leis que regem o movimento dos corpos.

O ponto de vista do paradigma presente tende a enxergar todas as pesquisas que se realizaram, dentro de paradigmas anteriores, como investigações incipientes daquilo que, atualmente, se vê como os últimos resultados. Todos os pesquisadores que trabalharam em seus respectivos fenômenos são aliciados no exército do paradigma mais recente, e todos estes fenômenos passados são encarados como uma visão pouco amadurecida dos fenômenos estudados no presente:

Enquanto pedagogia, essa técnica de apresentação está acima de qualquer crítica. Mas quando combinada com a atmosfera geralmente a-histórica dos escritos científicos e com as distorções ocasionais ou sistemáticas examinadas acima, existem grandes possibilidades de que essa técnica cause a seguinte impressão: a ciência alcançou seu estado atual através de uma série de descobertas e invenções individuais, as quais, uma vez reunidas, constituem a coleção moderna dos conhecimentos técnicos. O manual sugere que os cientistas procuram realizar, desde os primeiros empreendimentos científicos, os objetivos particulares presentes nos paradigmas atuais. Num processo freqüentemente comparado à adição de tijolos a uma construção, os cientistas juntaram um a um os fatos, conceitos, leis ou teorias ao caudal de informações proporcionado pelo manual científico contemporâneo.

A tese de Kuhn é que essa visão da ciência é extremamente enganosa. A maioria dos fenômenos tratados nos manuais atuais não existiam a bem pouco tempo atrás. Estes fenômenos só ganharam existência com a emergência dos atuais paradigmas científicos.

Cada geração de pesquisadores aprendeu a lidar com conjuntos de problemas que lhe eram próprios, apenas alguns poucos problemas são legados de uma geração a outra. O mesmo pode ser dito dos métodos, dos conceitos e dos pressupostos, que povoam o domínio de ação do cientista a cada época. Todos esses elementos se combinam para a formação de uma visão da natureza que, por sua vez, varia igualmente de época para época, apresentando, a cada vez, fenômenos distintos que, só do ponto de vista dos manuais, podem ser encarados como um único e o mesmo.

Teorias e fenômenos surgem, como que simultaneamente, ajustando o mundo a uma nova interpretação oriunda de um paradigma emergente que tem, como uma de suas mais importantes tarefas, suprimir a interpretação anterior. Uma das conseqüências dessa supressão, trabalho da ciência normal de cada época, é a eliminação dos rastros deixados pelo antigo paradigma. Eliminação esta que acaba, concomitantemente, apagando a memória da revolução que lançou os parâmetros científicos em vigor.