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A comparação pela língua e a linguagem comparativa

Capítulo 1 – Um estudo abrangente

1.7 A comparação pela língua e a linguagem comparativa

Esperamos ter deixado claro ao longo desse capítulo que nosso estudo corresponde a uma comparação controlada que se foca nos sistemas de parentes de alguns casos etnográficos de duas famílias lingüísticas, a arawá e a arawak. Em nossa análise iremos tecer considerações sobre cada família, passando em seguida a um nível mais geral de análise, em que todos os casos serão considerados em conjunto.

Nossa pesquisa procura observar as relações dentro de uma família lingüística, ou seja, entre populações que possuem uma origem comum dada pelo fato de que, provavelmente, são descendentes de uma população. As semelhanças encontradas podem ser consideradas como dadas pela origem, porém nosso interesse está, também, em apreender as transformações que ocorrem entre os diferentes contextos. De um lado temos os Arawá que, como veremos a seguir, estão limitados a uma pequena região, ocorrendo a manutenção do contato entre seus falantes e do outro os Arawak, cujos casos escolhidos representam aqueles que perderam o contato com os outros falantes já há muito tempo. No primeiro caso, como era de se esperar, encontramos uma menor variação entre os sistemas, já no segundo, essas são maiores e mais evidentes.

Nosso interesse não está em evidenciar as diferenças superficiais desses sistemas, assim deixamos de lado considerações a respeito das variações lingüísticas entre os termos de parentesco. Nossa atenção recai sobre as formas de classificação dos termos e sua integração, isto é, nosso interesse está na estrutura e não nas manifestações empíricas. Os termos se forem considerados isoladamente perdem a sua característica mais interessante, que só é possível de ser apreendida quando os consideramos como parte do sistema.

O recorte que adotamos permite que tomemos as transformações entre as terminologias e a relação com as formas que a aliança como ocorrendo não apenas no nível lógico, mas também no histórico. Isso mostra que não estamos diante de uma hipótese puramente imaginativa, pois ela pode ser observada em casos que possuem uma relação concreta, empírica. Se postularmos que todos os sistemas derivam de um sistema original, as diferenças podem ser vistas como variações possíveis a partir da estrutura que existia no tempo em que as línguas/populações não haviam se dividido.

Nosso argumento simplifica, nesse ponto, a relação entre língua e cultura, já que postulamos um momento onde existia uma língua que correspondia a uma cultura. Esse ponto, entretanto, deve ser encarado mais em sentido lógico do que histórico. Estamos

tomando a árvore lingüística como indicativa das divisões populacionais que ocorreram no tempo histórico, mas o relevante aqui é somente a existência da relação entre os grupos falantes atuais e o grupo ancestral. Em outras palavras, consideramos que as línguas atuais fazem parte de um “clã” lingüístico, não de uma “linhagem”, em que é possível entrever as conexões genealógicas.

Não temos como objetivo nesse estudo a reconstrução histórica e nem uma explicação historicista para as transformações. Embora alguns autores, como por exemplo Allen (1998), tenham tentado um entendimento de como se configurariam os “proto-sistemas”, seus resultados nos parece questionáveis. Não queremos negar, entretanto, que tal empreendimento seja possível, mas a nosso ver é mais interessante, no estado atual dos nossos conhecimentos sobre as populações Arawak e Arawá, investir na compreensão da relação sincrônica entre os sistemas antes que se possa passar a considerações a respeito do sentido das transformações.

Como afirmamos anteriormente entendemos que há um sistema inicial que se transformou com o tempo e, por isso, devemos levantar alguns pontos sobre o processo de mudança. Não acreditamos que as variações possam ser entendidas apenas como o resultado de uma tradição submetida a certos eventos diferentes. Como mostra Fausto (2001) para os Parakanã, as mudanças estão condicionadas a agência dos indivíduos. A separação em dois blocos dessa população acaba resultando em duas situações diferentes, de um lado os que ele chama de Parakanã ocidentais e que não dispõem de nenhuma forma de segmentação sociocêntrica ou de chefia, e do outro, os orientais que dividem-se em metades exogâmicas, com três patri-grupos e um sistema de chefia dual. Essas diferenças são os resultados da cisão que impediu o bloco oriental de casar apropriadamente nos seus primeiros anos de autonomia, entretanto isso não é a causa imediata, ela apenas abriu espaço para decisões individuais que acabam por alterar o sistema.

Vemos com isso que não podemos considerar que uma determinada configuração sócio-cultural, frente a acontecimentos semelhantes, vá reagir da mesma forma e ter resultados semelhantes. Não devemos jamais esquecer, entretanto, que apesar da mudança ser o resultado da ação individual, o indivíduo não trabalha livremente. As ações forjam padrões novos, mas elas são condicionadas pelas estruturas existentes (Sahlins 2003 [1985]). Não se trata de achar que os resultados são previsíveis, mas de entender que mesmo as ações individuais estão dentro das possibilidades

estruturais, embora estas últimas possam ser alteradas no processo. Nos termos de Sahlins:

A ação começa e termina na estrutura, partindo da biografia do indivíduo como ser social e terminando na absorção de seu ato num prático-inerte cultural – o sistema-tal-como-constituído. Mas se, nesse ínterim, os signos forem funcionalmente deslocados, postos em relações inéditas uns com os outros, então, por definição, a estrutura se transforma; e, nesse ínterim, a condição da cultural-tal-como-constituída pode efetivamente ampliar as conseqüências das ações de um indivíduo”. (Sahlins 2004[1982] : 313)

As mudanças são então condicionadas por aquilo que existe previamente, nesse sentido os sistemas de parentesco atuais podem ser encarados como transformações a partir de uma estrutura comum passada. Esse fato permite que sustentemos nossa visão, os sistemas de parentesco que enfocamos podem ser considerados como relacionados não apenas de uma forma lógica, mas também histórica.

As terminologias de parentesco ao redor do mundo são muito semelhantes, podendo ser reduzidas a poucos tipos. Isso não quer dizer, entretanto, que os grupos cujos sistemas se assemelham sejam fruto de mudanças a partir de um sistema original, mas como mostramos anteriormente, isso permite que os diferentes sistemas ao redor do mundo sejam relacionados por um ponto de vista puramente lógico. Como mostram os modelos de Viveiros de Castro e Tjon Sie Fat é possível observar como as diferentes terminologias se relacionam a partir das mudanças que seriam necessárias para se passar de uma a outra.

Nosso esforço procura evidenciar que as variações podem ser tomadas como inseridas na história, já que abordamos casos etnográficos que possuem origens comuns. Não tecemos considerações a respeito da presença de característica semelhantes entre diferentes partes do mundo. Devemos salientar, contudo, que nosso campo semântico- conceitual e mesmo a forma de análise está embebida nesse contexto maior, nossas ferramentas foram geradas para entender outros contextos etnográficos. Vemos isso, por exemplo, no termo empregado para se referir aos sistemas de parentesco, comumente encontrados nas terras baixas sulamericanas, que possuem terminologias com fusão bifurcada (F=FB≠MB e M=MZ≠FZ) e regra de casamento com a prima cruzada bilateral (FZD/ MBD), eles são referidos como dravidianos. Tal termo remete aos

sistemas encontrados e descritos primeiramente por Dumont para a Índia do Sul. “A caracterização de terminologias sul-americanas como ‘dravidianas’ começa, salvo engano, com Maybury-Lewis (1967), depois com Basso (1970, 1975) e finalmente com Overing Kaplan (1972, 1973, 1975)19” (Viveiros de Castro 1993: 150).

Apesar dessas aproximações semânticas, nosso uso dos termos não visa o estabelecimento de paralelos entre essas realidades. Somos forçados a usar uma linguagem que foi forjada para entender outros contextos, o que pode dar a impressão de que procuramos relacionar diferentes localidades, mas isso é só um constrangimento de que sofre quase toda a antropologia. Ao estudar contextos específicos e atingir idéias que podem ser generalizadas, tais procedimentos acabam por elevar termos nativos ou termos regionais a categorias com estatuto descritivo.

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Não pudemos localizar todos esses textos, mas os livros de Maybury-Lewis (1984 [1967]) e Overing Kaplan (1975) realizam essa aproximação.