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Capítulo 3 – Os Sistemas de Parentesco

4.7 As diferenças nos cruzamentos

Encontramos três tipos de cruzamento entre os exemplos etnográficos que fornecem informações suficientes para tal observação. Os casos com regra positiva de casamento apresentam as três variações.

As diferenças entre os cruzamentos só podem ser apropriadamente apreendidas se consideramos uma profundidade de três gerações: a dos avós e seus irmãos; a dos seus descendentes, que inclui os pais e seus primos; e a geração de Ego, onde o resultado do cruzamento pode ser apreendido. A lógica classificatória só pode ser observada apropriadamente ao consideramos essa profundidade, pois os primos cruzados de primeiro grau (filhos dos siblings dos pais) são classificados da mesma forma em todas elas. Tal necessidade se mostra evidente desde Lounsbury (1964), que ao considerar as terminologias a partir de G+2 consegue mostrar o que distingue os sistemas dravidianos e iroqueses

Na apresentação das formas de cruzamento vamos adotar o mesmo procedimento analítico que Viveiros de Castro na construção das tabelas. Elas se baseiam na forma de classificação dos primos de segundo grau, onde é possível observar as diferenças entre os sistemas.

Os símbolos ‘0’ e ‘1’ representam sexo relativo (0 = mesmo sexo; 1 = sexo oposto) de dois germanos em G2 e de seus filhos (primos entre si) em G1, e o cruzamento ou desposabilidade (0 = paralelo ou

consangüíneo; 1 = cruzado ou afim) dos primos de segundo grau em G0, a geração de referência” (Viveiros de Castro 1996: 62).

As linhas da tabela, de cima para baixo, representam gerações G+2, G+1 e G0. As colunas apresentam todas as possibilidades combinatórias das variáveis entre G+2 e G+1, assim na primeira temos a forma como duas pessoas que se ligam por pais de mesmo sexo que são filhos de irmãos de mesmo sexo se classificam. Na segunda os pais são de sexo oposto e os avós de mesmo sexo. Na terceira os pais são de mesmo sexo, mas os avós de sexo oposto. Na quarta tanto os pais quanto os avós são de sexo oposto.

Vejamos os cruzamentos. Cruzamento Dravidiano 0 0 1 1 0 1 0 1 0 1 1 0 Encontrado entre os Paumarí, Deni, Kulina, Paresí e Kurripako.

Isso evidencia que no cálculo dravidiano duas diferenciações sexuais se anulam. Filhos de mesmo sexo de irmãos (não necessariamente genealógicos) de mesmo sexo produzem descendentes não casáveis entre si. Filhos de sexo diferente de irmãos de sexo diferente produzem descendentes não casáveis entre si, ou seja, as duas diferenças sexuais se anulam. Para que os filhos sejam pessoas casáveis é necessário que ocorra apenas uma diferenciação sexual a partir do par inicial.

Cruzamento Iroquês

0 0 1 1 0 1 0 1 0 1 0 1 Encontrado entre os Mehináku213, Piro e Terêna.

213

O calculo de cruzamento iroquês entre os Mehináku ao mesmo tempo em que existe a regra de casamento de primos diz respeito a marcação terminológica da interdição do casamento de primos cruzados genealógicos.

Isso evidencia que no cálculo iroquês independe a relação do par de germanos inicial. O status de paralelo ou cruzado corresponde a relação de identidade ou diferença sexual na primeira geração ascendentes. O pai e seus irmãos/primos e a mãe e suas irmãs/primas produzem paralelos, enquanto que as irmãs/primas do pai e os irmãos/primos da mãe produzem cruzados, independente dos laços de parentesco que os unem.

Cruzamento “Kuma”

0 0 1 1 0 1 0 1 0 1 1 1 Encontrado entre os Wapixana (Wilbert), Baníwa e Palikur.

Esse tipo de cruzamento evidencia que a passagem de um sexo ao outro é um evento irreversível, não sendo anulado por uma diferenciação sexual posterior. Somente no caso de não haver diferenciação sexual entre os ascendentes é que as pessoas se consideram como paralelos ou consangüíneos.

Após apresentar os tipos de cruzamentos encontrados, devemos agora fazer alguns comentários sobre eles. Os casos que apresentam o “cruzamento dravidiano” correspondem àqueles onde há a regra de casamento de primos cruzados associada a sua prática efetiva, embora com variações. A prática do casamento é a causa direta deste tipo de cruzamento, mas como vemos, ela não é suficiente. Ela é causa direta, pois, os primos de sexo oposto dos pais já aparecem como casáveis e não casáveis em função da identidade ou diferença sexual dos avós. Duas diferenças se anulam por que existe a possibilidade de que os filhos do primeiro cruzamento se casem e, assim, produzam um mesmo tipo de pessoa.

Ela não é causa suficiente, pois, por exemplo, os Mehináku afirmam a existência da regra de casamento, mas sua terminologia marca a aproximação dos primos cruzados aos paralelos, o que força ao casamento com primos distantes. Os pais, como não podem realizar uniões com seus primos cruzados, produzem descendentes que acabam sendo diferenciados dos de seus primos cruzados.

Os Terêna, que não apresentam a regra positiva, apresentam o mesmo tipo de cruzamento dos Mehináku. Nos dois casos há um afastamento dos cônjuges, entre esses últimos todos os habitantes da aldeia são considerados parentes, mas as possibilidades

matrimoniais são afastadas do referencial genealógico. Os Terêna, por sua vez, casam com não-parentes, mas eles não concebem a aldeia como sendo composta exclusivamente por parentes. Tal feição se somada a tendência endogâmica evitaria uma dispersão das alianças.

Viveiros de Castro (1993) argumenta que não seria pertinente diferenciar os sistemas dravidiano e iroquês com base na idéia de que um deles regula o casamento pelo código terminológico e o outro por instituições sociais diversas, tal como nós o fizemos no início do capítulo anterior. Se pensarmos que sistemas que teriam a regra de casamento com primos cruzados não correspondem a um único tipo de cruzamento, é possível que seu argumento seja pertinente. Todos os sistemas poderiam ser vistos como dependentes tanto da terminologia quanto das instituições sociais variadas.

Peguemos o seu modelo de aliança iroquês (Viveiros de Castro 1993: 51 e seguintes). Segundo sua idéia um modelo de aliança iroquesa mínima geraria uma estrutura onde o casamento ocorre entre netos de germanos de sexo oposto. Se no dravidiano o cruzamento representa uma possibilidade imediata de passar a afinidade, no caso iroquês o cruzamento institui a possibilidade de uma aliança futura. Não há informações suficientes sobre o funcionamento real dos sistemas Mehináku e Terêna para observar se eles apresentam essa estrutura. Por outro lado, a sugestão da existência da regra de primos cruzados feita por Gregor (1963), aliada a proibição do casamento com a prima cruzada de primeiro grau, colocaria os primos de segundo grau como primeiros primos possíveis para o casamento. Os Terêna, por sua vez, ao proscreverem o casamento de primos cruzados e instituírem uma regra de endogamia teriam como resultado casamentos nos quais pessoas não fossem muito afastadas entre si.

O caso Piro, que também apresenta o cruzamento iroquês, não pode ser corretamente apreciado. Os dados terminológicos não são acompanhados de informações sobre o funcionamento do sistema de parentesco. O contexto onde Gow realiza a pesquisa é diferente daquele onde foram coletados os termos, podendo ser que a dispersão da aliança em vigor, a valorização do casamento com pessoas não aparentadas, esteja relacionada com uma configuração terminológica muito diferente.

Os casos que apresentam o cruzamento “Kuma” não poderão ser apreciados. Não há informações sobre o funcionamento do sistema na prática, nem conhecemos qualquer etnografia que apresente o seu funcionamento em outras populações que não as aqui enfocadas. As situações aqui apresentadas são também diversas para que cheguemos a uma conclusão satisfatória. Os Wapixana podem ou não apresentar regra

de casamento de primos cruzados bilaterais, os Palikur não apresentam e os Baníwa apresentam uma regra de casamento de primos cruzados com preferência patrilateral e grupos exogâmicos de descendência patrilinear.