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Capítulo 3 – Os Sistemas de Parentesco

3.2 A relação termos e práticas

A idéia de relacionar termos de parentesco e práticas é tão antiga quanto os estudos antropológicos sobre o tema, mas a concepção da relação possui grande variação108 ao longo da história. O ideal seria realizar, tal como esboçado por Silva (2004) para alguns casos amazônicos, um estudo do sistema atitudinal e do terminológico para que pudessem ser observadas as relações entre eles. Nossos dados etnográficos, entretanto, nos forçam a limitar o estudo a relação entre termos e regras/práticas matrimoniais.

Não procuramos, a partir da análise do vocabulário do parentesco, deduzir quais seriam as práticas de casamento realizadas ou o tipo de família resultante, como feito por Morgan (1997 [1871], 1998 [1878]). Tal empreitada só poderia ser realizada se

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Esse argumento do autor faz referências explicita às idéias de casamento e paternidade, mas dado o argumento do seu texto pode ser ampliado a terminologia de parentesco.

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A variação é tão grande que existem representantes nos dois extremos do espectro, alguns afirmando que não há qualquer relação e outros que há correspondência.

acreditássemos na correspondência total entre os dois domínios, o que não pode ser sustentado. Os próprios dados etnográficos apresentados por esse autor mostram casos onde as práticas de casamento e a organização familiar observadas não encontram correspondência na terminologia de parentesco, o que inviabiliza qualquer tentativa de partir dos termos para deduzir as práticas. Não é possível considerar que cada detalhe terminológico tenha um costume correspondente a priori.

Um dos primeiros autores a perceber empiricamente a relação existente entre as terminologias de parentesco e as práticas matrimoniais observáveis foi Rivers109 (1991a [1913]). Seu trabalho de campo na Melanésia permitiu que ele estabelecesse algumas relações entre termos e formas de casamento. Em uma região onde há casamentos de primos cruzados bilaterais, por exemplo, um homem ao casar passa a considerar o irmão de sua mãe também como o pai de sua esposa (MB=WF), e passa a ser considerado por ele não apenas como filhos da irmã, mas também como marido da filha (ZS=DH). Isso mostra que o funcionamento do sistema faz com que duas posições de parentesco110 recaiam sobre a mesma pessoa.

Isso corresponde a uma mudança de perspectiva, pois não se trata de procurar as causas que fazem com que diferentes pessoas que ocupam diferentes posições de parentesco são reduzidas a uma mesma categoria. A feição classificatória da terminologia se relaciona com o funcionamento do sistema de parentesco que gera a identidade das posições, que reduz diferentes posições a uma pessoa.

Para Rivers a maior parte das características terminológicas poderia ser explicada pelos costumes matrimoniais, mas ele concebia uma anterioridade histórica das práticas sobre as terminologias. Há uma relação de causalidade entre o surgimento de uma prática e o desenvolvimento posterior dos termos correspondentes, há uma anterioridade história do comportamento sobre o vocabulário. Esses pressupostos preconizados por Rivers (1991b [1913]), fizeram com que ele acreditasse ser possível a reconstrução histórica das formas passadas de comportamento de um grupo. Embora não coloque os exemplos etnográficos diversos numa sucessão crono-lógica, ele acreditava que, nos casos onde alguns termos não podem ser explicados por um

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Segundo Rivers o primeiro a reconhecer essa relação foi J. Kohler no seu livro Zur Urgeschichte der Ehe.

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Estamos apenas demonstrando a lógica. Na realidade são muitas as posições que acabam recaindo sobre as diferentes pessoas relacionadas antes da realização do casamento. Uma demonstração completa pode ser vista no texto do próprio Rivers (1991a[1913] p85 e seguintes).

costume atual observável, eles podem ser tomados como evidência da prática anterior do comportamento correspondente.

Morgan e Rivers acreditavam erroneamente numa correspondência rígida entre o vocabulário e as práticas de parentesco e na primazia da prática sobre os termos. Tais concepções acabaram por resultar em análises que recorrem a reconstruções históricas especulativas na tentativa de explicar as terminologias. As práticas matrimoniais influenciam sim o componente semântico do parentesco, como o próprio Rivers concordaria, o problema está em acreditar que deva existir, necessariamente, o comportamento que melhor corresponda a terminologia e, na ausência deste, tomar a não correspondência como indicação das formas passadas.

O que procuramos fazer aqui é relacionar as práticas matrimoniais descritas nas etnografias com as terminologias de parentesco, sem especular se elas são mais ou menos condizentes. Como já salientamos, uma terminologia de parentesco tem por função gerar possibilidades e impossibilidades matrimoniais (Lévi-Strauss 1996 [1956]), possibilidade corresponde a um universo de alternativas que são mais amplas dos que as suas realizações concretas. Existem características da terminologia que não podem ser vistas em relação direta com as práticas efetivas, não sendo necessário apelar para especulações de natureza histórica para dar conta da sua existência.

Devemos levar em conta que a relação entre terminologia e atitudes não é de correspondência, não podemos tomar cada detalhe dela como possuindo um correspondente prático imediato. A relação entre esses domínios é complexa, sendo antes dialética do que de determinação.

As práticas matrimoniais, que são parte do costume, não podem ser vistas como determinantes de todas as características da terminologia de parentesco, que é parte da língua. Essa concepção pressuporia a determinação do simbólico pelo mundo concreto111 e acabaria levando aos mesmos erros de Morgan e Rivers. Como argumenta Lévi-Strauss (1969 [1965]), embora a terminologia aja como operador de um sistema matrimonial, não há relação de causalidade imediata entre os dois domínios. Isso torna necessário que os termos e as práticas sejam analisados antes de tirar conclusões sobre suas relações.

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Como argumenta Sahlins (2003 [1976]), idéias sobre a determinação material da vida social e simbólica dominavam boa parte dos antropólogos. O pensamento de Morgan, Rivers, Radcliffe-Brown e Murdock, para citar apenas alguns dos que tiveram grande atuação no campo dos estudos de parentesco, apontam sempre para uma relação de causalidade entre a adoção de uma prática e mudanças nas ordens simbólicas e sociais, ou seja, as práticas são vistas como determinantes das regras e idéias.

Todos os casos etnográficos disponíveis sobre as populações Arawá e Arawak que são aqui considerados correspondem a terminologias de parentesco do tipo fusão bifurcada, embora existam casos onde a fusão dos parentes lineares e colaterais é acompanhada por formas de marcação terminológica da distinção entres eles. Para facilitar a análise realizamos inicialmente a divisão dos sistemas de parentescos em dois grupos, aqueles que possuem regra positiva de casamento e aqueles que não a possuem. Dentro do conjunto de sistemas com regra positiva de casamento encontramos todos os casos Arawá (Paumarí, Deni e Kulina) e os casos Paresí, Mehináku, Wapixana e Kurripako-Baníwa da família arawak. O conjunto sem regra positiva é formado pelos Terêna, Palikur e Piro, também arawak

Nos sistemas onde existe regra positiva, o casamento de uma pessoa ocorre com determinado tipo de parente. Nos locais onde se encontra essa determinação das alianças o matrimonio geralmente ocorre entre pessoas que já possuem determinada relação de parentesco, porém, como parece ser muito difundido na paisagem sul- americana, quando esta não existe previamente, os cônjuges passam a agir como se o vínculo de parentesco existisse. Há a possibilidade de que as relações sejam ajustadas caso a efetivação de um laço de afinidade ocorra entre pessoas que não possuíam anteriormente esse tipo de relação. Não somente os cônjuges podem ajustar suas relações mutuas em função da união que se estabelece, pois, o casamento não envolve apenas os dois indivíduos que casam, mas também seus parentes (Lévi-Strauss 1986 [1983]).

Essas características do parentesco das terras baixas sul-americanas fizeram com que ele fosse caracterizado como fluído, como se fosse um local onde tudo é possível, onde não há regras. Vemos, entretanto, que este não é o caso, não temos ausência de estrutura e sim estruturas que são sensíveis à história (Dreyfus 1993). A seqüência e alcance dos ajustes dependem de muitos fatores, desde a relação previamente existente entre as pessoas até o jogo de forças políticas do momento. A composição das parentelas, o estabelecimento dos laços de parentesco, vai depender das forças políticas, pois aquelas se encontram ligadas ao sistema político, agindo a chefia como um pólo atrator.

Nos casos onde não há regra positiva de casamento, encontramos apenas uma determinação negativa do matrimonio que proscreve o casamento entre determinados tipos de parentes, a proibição do incesto. Aqui o casamento ocorre por influência de outros fatores que não se limitam à esfera do parentesco.