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As famílias lingüísticas e suas relações

Capítulo 2 – As populações Arawak e Arawá

2.1 As famílias lingüísticas e suas relações

A relação entre as línguas arawá e arawak foi postulada pela primeira vez no século XIX. Paul Ehrenreich (1948 [1891]) em sua passagem pelo rio Purus entrou em contato com as populações Apurinã, Jamamadi e Paumari e argumenta que elas fariam parte da família Nu-Arawak ou Maipure de Karl von den Steinen. Elas representariam o elo entre as tribos Nu da Guiana e da Colômbia, e entre as da Bolívia e do Mato Grosso. Essa aproximação baseou-se na comparação de uma pequena lista de palavras que foram coletadas por ele próprio e por William Chandles (1949 [1968]), outro viajante que passou pela região.

Em 1891, o lingüista Daniel G. Brinton publicou sua classificação das línguas americanas onde línguas arawak e arawá aparecem misturadas e divididas em dois subgrupamentos do super-grupo “suramericano del Atlântico”, subcategoria da Região Amazônica. Sua organização apresenta um subgrupo com idiomas arawak e um subgrupo composto pelo apurinã (arawak), paumari (arawá) e ararua (arawá) (apud Grasso 1958). Para Grasso esses grupamentos eram lingüístico-geográfico- antropológicos, não sendo fundamentados por critérios puramente lingüísticos. Segundo Gordon (2006), a classificação de Brinton se baseia na comparação de palavras recolhidas por Chandles, sendo a primeira a utilizar um termo distinto para classificar as línguas araua (arawá).

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Quando nos referimos às famílias lingüísticas usamos letra inicial minúscula, quando é maiúscula indica a população dos falantes, a mesma convenção é adotada quando tratamos das línguas e dos povos homônimos.

Rivet e Tastevin em 1921 realizam uma pesquisa bibliográfica sobre “Les tribus indiennes dês bassins du Purus, du Juruá et dês régions limitrophes”. Como resultado eles dividem as populações da região em três famílias, a pano, a katukina e a arawak. As populações Paumari, Kulina e Jamamadi são incluídas na família arawak, elas fariam parte da subdivisão araua – criada anteriormente por Brinton. O estudo do material lingüístico fez esses autores apontarem a existência de afinidades entre esses idiomas e os dialetos arawak da Venezuela e um dos da Bolívia. (Rivet & Tastevin 1921)

A revisão bibliográfica dos materiais etnográficos produzido sobre as populações indígenas até 1944 de Nimuendajú (1981), seu “Mapa Etno-histórico”, classifica os diferentes povos Arawá como parte dos Arawak (“Aruak”). Vemos com isso que a fusão dessas duas famílias não era alvo de grandes contestações até essa época. Outra síntese bibliográfica, a de Métraux (1963) presente no Handbook of South American Indians, também funde os Arawá e Arawak. Métraux segue a divisão dos grupos da área do Purus e Juruá que foi proposta por Rivet e Tastevin, entre pano, arawak e katukina, a única diferença está no reconhecimento de uma lista de vocabulários Tupi coletada na região, mas cujo grupo seria na verdade membro da família katukina. O compendio de Melatti sobre os índios do Brasil traça as divisões lingüísticas dos grupos, incluindo as famílias arawá e arawak (“aruák”) dentro do Tronco Aruák” (Melatti 1970).

Os autores que propuseram as primeiras classificações estavam limitados, em função dos dados existentes, à comparação de pequenas listas de vocabulários. Nas décadas de 1960-70 alguns lingüistas, muitos deles ligados ao SIL, passam a estudar de forma mais sistemática as línguas arawak e arawá. Essa expansão dos estudos, aliada ao aumento da quantidade de dados disponíveis permite que sejam feitas classificações mais consistentes.

A que é proposta por Loukotka (1968) se fundamenta na utilização do método léxico–estatístico21. Ele trabalha com listas de 45 palavras e alcança os seguintes resultados: separa os falantes de línguas arawak (“aruak”) e arawá em stocks diferentes, porém considera-os como aparentados, já que pertenceriam ao mesmo microphylum.

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Método que compara listas de vocabulário para verificar as porcentagens de vocábulos compartilhados. Ele baseia-se em duas hipóteses básicas. A primeira é que existem partes do vocabulário que seriam mais resistentes à mudança lexical, isto é, existiriam certas partes do léxico onde as palavras dificilmente seriam completamente suplantadas por formas não-cognatas. Essas palavras fariam parte de um vocabulário essencial (core vocabulary). A segunda hipótese é que essas palavras estariam presentes em toda e qualquer língua, daí serem mais difíceis de serem tomadas de empréstimos. Esses vocábulos seriam partes do corpo, ações básicas como comer, beber, fenômenos naturais, numerais, pronomes, características geográficas, etc.

Loukotka inclui populações de língua guahibo quando apresenta a composição do “stock aruak”, embora, segundo estudos mais recentes, a relação entre essas línguas seja apenas de empréstimo de vocábulos.

Matteson (1972) utiliza o método comparativo22 e classifica 26 línguas como arawak, dividindo-as em 6 subgrupos – obtidos pela reconstituição do suposto proto- idioma que originou o grupo – e 4 isoladas. Os subgrupos são o Proto-Shani (línguas kinikinau, tereno e baure), o Proto-Harakbut (wachipayri, amarakaeri e sapateri), o Proto-Piro-Apurinã (piro, manchineri e apurinã), o Proto-Ashaninka, o Proto-Madi (kulina, paumari e proto-Jamamadi-Jarauara) e o Proto-Newiki (línguas reconstruídas “Western Newiki” e “Eastern Newiki”), sendo isoladas a paresí, a amuesha, a goajiro e a “black carib” da Guatemala. Essa classificação foi muito criticada, pois a autora fez um uso indevido do método, apontando uma relação entre línguas que só possuíam 13 palavras, de uma amostra com 68 termos, em comum, como é o caso entre a harakbut e a paresí.

Rodrigues (1994 [1986]) trata as famílias arawá e arawak num mesmo capítulo do seu livro, mas argumenta que os autores que afirmam a existência de relações genéticas entre essas línguas se baseiam em critérios não lingüísticos, como a proximidade geográfica, etc. Segundo ele, a falta de “bons” estudos comparativos faz com que muitas línguas sejam associadas com o arawak sem existir demonstração ou evidências claras dessa associação. As relações internas à família são, por isso, pouco conhecidas nos seus detalhes, estando longe de existir um consenso entre os pesquisadores.

A associação das línguas arawá e arawak pode ser vista como resultante dessa falta de estudos consistentes. Rodrigues (1994 [1986]), pelo uso do método comparativo, divide e separa essas famílias, argumentando que a relação que alguns autores afirmam entre elas – muitos consideram a família arawá como um subgrupo do Tronco Aruak – não é acompanhada da demonstração. Esse erro, para Rodrigues, seria o resultado do contato atual na região do Purus.

Esse contato é na verdade muito antigo, a história da convivência entre essas línguas é muito extensa, daí ser possível observar muitas semelhanças aparentes. A relação entre as populações de falantes foi observada, por exemplo, por Joseph Beal

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O método comparativo se baseia na reconstrução de línguas ancestrais. A partir da observação de semelhanças e diferenças entre línguas que se julga aparentadas procura-se reconstruir a forma da proto- língua. Para maiores informações sobre os métodos da lingüística histórica, bem como seus problemas e limitações veja Lehmann (1992), Fox (1995), Dixon (1999) e Crowley (2002).

Steere que passou pela região do rio Purus em 1873. No seu relato da viagem encontramos o comércio de macacos e a confiança de um Apurinã em visitar uma aldeia Jamamadi (Steere 1949). Há também indicativos de que a relação entre essas populações foi anteriormente guerreira. A guerra pode resultar em raptos, o que pode resultar na absorção de pessoas que trazem consigo outra língua, ou seja, introduzem novas palavras. Estamos apenas especulando sobre uma possível explicação para os empréstimos.

Santos-Granero (2002) argumenta que a guerra Arawak é dirigida para aqueles que não são lingüisticamente relacionados, assim, ela pode ter contribuído para a absorção de novas palavras. O problema desse exercício imaginativo é que não sabemos como é a guerra segundo a perspectiva Arawá e são as línguas desses povos que se tenta aproximar do arawak, o que ocorre, provavelmente, em função dos empréstimos lingüísticos.

As classificações mais recentes dos Arawak (Payne 1991, Aikhenvald 1999 e Fabre 2005) e Arawá (Fabre 2005, SIL 200623) classificam de forma separada as línguas arawá e arawak. Os idiomas que pertencem a cada uma dessas famílias estão bem estabelecidos e os autores não sugerem o seu agrupamento em tronco. Não há, contudo, uma correspondência exata entre as propostas desses autores, existe divergência nos seus subgrupamentos24.

Se compararmos as classificações de Payne (1991) e de Aikhenvald (1999) vemos que apesar dos autores consideraram as mesmas línguas25 como sendo arawak, a divisão intermediária e o subgrupamento encontram divergências. Em ambas temos que grande parte dos agrupamentos maiores se baseia na proximidade geográfica. O mesmo ocorre com a classificação proposta por Fabre (2005) que se ancora, em grande medida, na de Payne, mas incorpora algumas alterações baseadas em outros autores e em estudos próprios. As três classificações concordam em excluir as línguas consideradas arawá da família arawak e as duas da família arawá excluem as arawak.

O que as cinco classificações mostram é que as línguas que pertencem a cada família estão bem estabelecidas, mas não há consenso quanto às divisões intermediárias. Sendo assim, a construção de uma árvore lingüística, mostrando as distâncias relativas

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Sociedade Internacional de Lingüística. Classificação disponível em http://www.sil.org/americas/brasil/INDGLANG/PORTARAW.HTM

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Essas classificações estão disponíveis no apêndice A.

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A chontaquito que aparece na lista de Aikhenvald, mas não na de Payne, é considerada por este último como um dialeto Piro.

entre as línguas – revelando quando ocorreram as divergências entre elas – não é possível no momento26.

Não podemos, portanto, considerar que essas famílias estejam definitivamente constituídas. Devemos levar em conta que essas organizações se baseiam no uso do método comparativo que, apesar de comumente aceito, possui diversos problemas. Segundo Dixon & Aikhenvald (1999) esse método só permite determinar a relação de línguas que tenham se separado há no máximo 5.000 anos, e considerando que pelo uso da glotocronologia27 Fabre (2005) afirma que essa separação teria ocorrido há pelo menos 32 séculos para as línguas arawá e 45 séculos para as arawak, elas poderiam ter tido realmente uma origem comum como argumentam os outros autores. Se essa hipótese fosse provada verdadeira, os vocabulários compartilhados poderiam ser vistos como sobrevivências ao invés de empréstimos.