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A competência dos tribunais comuns para o conhecimento de litígios

ambientais – breve apontamento277

Ditava a versão inicial do artigo 45.º, n.º 1 da LBA o seguinte: “[o] conhecimento das acções a que se referem os artigos 66.º, n.º 3, da Constituição e 41.º e 42.º da presente lei é da competência dos tribunais comuns”. Era desta forma que o legislador ordinário encaminhava “em bloco” todo o contencioso ambiental para a jurisdição comum.

Crê-se que aquela previsão legislativa foi norteada por uma conceção

essencialmente subjetiva278 e “de vizinhança” do contencioso ambiental. Acreditava-se

que, nos litígios ambientais, o que mais importava era tutelar verdadeiros direitos subjetivos, como o direito de propriedade ou os direitos de personalidade, e ainda que o

próprio artigo 66.º da CRP, entendido também como verdadeiro direito subjetivo279,

sairia melhor protegido com uma tutela oferecida pelos tribunais judiciais. E o

legislador não se mostrou sensível à revisão constitucional de 1989280 em que se

consagrou na Lei Fundamental a jurisdição administrativa e fiscal. Denotando uma

atitude de total desconfiança281 para com “a nova jurisdição”, a previsão legislativa

manteve-se intacta até à alteração introduzida pela Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro. Nesse período intermédio, muitas vozes se fizeram sentir no sentido da

inconstitucionalidade282 e ilegalidade283 da previsão. Ao se prever na Constituição,

277 A presente dissertação foi elaborada durante o ano letivo 2014/2015, período de profundas reformas no direito administrativo

substantivo e adjetivo. Ao longo de 2015 foram elaborados projetos de propostas de alteração do CPTA e do ETAF, e em janeiro de 2015 foi publicado o Novo CPA pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro. Neste sentido, foi com base neste último diploma que abordámos as temáticas de direito administrativo substantivo, enquanto que em relação à competência e ao direito processual administrativo tivemos por base o ETAF e o CPTA à data vigentes e, conscientes dos tempos de mudança que se faziam sentir, a Proposta de Lei n.º 331/XII. Ora, dias antes da entrega da dissertação, foi publicado, em Diário da República, o Decreto-Lei n.º 214- G/2015, de 2 de outubro, que provocou profundas modificações nos diplomas processuais analisados, mas que acolheu as alterações a que fomos fazendo menção ao longo da exposição, constantes da Proposta de Lei n.º 331/XII. Assim, importa clarificar, por um lado, que todas as referências feitas ao ETAF e ao CPTA se reportam à redação anterior às alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, e, por outro lado, que as modificações sugeridas pela Proposta analisada correspondem à versão mais recente dos respetivos diplomas.

278 Neste sentido, CARLA AMADO GOMES, Introdução ao… cit., p. 209 e ainda CARLA AMADO GOMES, “A Ecologização…

cit., p. 251.

279 CARLA AMADO GOMES, “A Ecologização… cit., p. 252.

280 Aliás, veja-se que a criação de duas ordens jurisdicionais já tinha sido introduzida com o ETAF criado pelo Decreto-Lei 129/84,

de 27 de abril – cfr. CATARINA SARMENTO E CASTRO, “Organização e Competência dos Tribunais Administrativos”, in A Reforma da Justiça Administrativa, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, STVDIA IVRIDICA 86, COLLOQUIA – 15, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, p. 30.

281

Neste sentido, vide MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, “O Novo… cit., p. 116 e MARIA JOANA FÉRIA COLAÇO, “A tutela… cit., p. 121.

282 MARIA JOANA FÉRIA COLAÇO, “A tutela… cit., p. 121 e DIOGO FREITAS DO AMARAL e MÁRIO AROSO DE

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como verdadeiros tribunais284, dotados de verdadeira autonomia e independência dos

demais poderes soberanos, a LBA fazia tábua rasa da competência dos tribunais administrativos para conhecer todos os litígios que se prendiam com uma relação jurídica administrativa.

Ora, embora tendo sido defendida285 a mais limitada competência dos tribunais

comuns286 ainda antes da alteração introduzida pela Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro

foi com este novo diploma que se institucionalizou legalmente a necessária divisão, que deve ser feita pelo jurista, entre os conflitos ambientais que deverão ser conhecidos pela jurisdição comum e os conflitos que deverão ser conhecidos pela jurisdição

administrativa. A “demarcação tordesilhiana dos hemisférios jurisdicionais”287

retirou da competência dos tribunais comuns grande parte dos litígios ambientais, passando a ser da competência dos tribunais administrativos e fiscais. A estes, e nos termos do

artigo 211.º da CRP, apenas caberá conhecer o que não estiver especialmente288 previsto

como objeto de outras ordens judiciais.

Não obstante ser um contencioso essencialmente destinado às disputas que envolvem direitos individuais e conflitos intersubjetivos, “dentro de uma concepção individualista e formal, de inspiração liberal, que invariavelmente tem privilegiado a

tutela de situações de confronto entre indíviduos isolados”289

, o processo civil é

283 Pois, não se compaginava com o regime previsto na Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, ao introduzir a ação popular administrativa.

Neste sentido, vide MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, “O Novo… cit., p. 116, JOSÉ ANTÓNIO MESQUITA, “Abertura”, in A Tutela Jurídica do Meio Ambiente: Presente e Futuro, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, STVDIA IVRIDICA 81, COLLOQUIA 13, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, p. 15, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “A competência material para a acção popular administrativa – Ac. do Tribunal de Conflitos de 11.1.2000, Conflito n.º 343”, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 23, setembro/outubro de 2000, p. 25 e DIOGO FREITAS DO AMARAL e MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Grandes… cit., p. 27.

284 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Âmbito e limites da jurisdição administrativa”, in Cadernos de Justiça

Administrativa, n.º 22, julho/agosto de 2000, p. 7.

285 Veja-se, a título de exemplo, o Acórdão de 16-08-2001, Processo n.º 1535/01 do Supremo Tribunal de Justiça onde se defendeu

que o artigo 45.º da LBA “não significa que um facto danoso praticado pela Administração ou qualquer agente em seu nome, no desempenho de funções públicas, exclua a competência normal dos tribunais administrativos” – Acórdão citado por CRISTINA CALHEIROS, “Sumários de Jurisprudência Seleccionada (2001), in Revista de Direito do Ambiente e Ordenamento do Território, n.º 8 e 9, p. 206. E, no mesmo sentido, o Acórdão 7-12-1995 do Supremo Tribunal de Justiça citado por JOSÉ EDUARDO FIGUEIREDO DIAS, Direito Constitucional… cit., p. 70, nota 19.

286 É interessante verificar que no Acórdão do Tribunal de Conflitos de 11-01-2000 se criticou a expressão “tribunais comuns”

adoptada pelo legislador, uma vez que pecava por “falta de rigor e desactualização; os textos legais, que à data, mais recentemente se haviam debruçado sobre a orgânica judiciária (…) não falavam já em tribunais comuns, optando pela designação de “tribunais judiciais””- cfr. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “A competência… cit., p. 24.

287 CARLA AMADO GOMES, “A Ecologização… cit., p. 252.

288 Interessante verificar que GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA colocam esta relação de especialidade da jurisdição

administrativa numa perspetiva diferente: “a competência dos tribunais administrativos e fiscais deixou de ser especial ou excepcional face aos tribunais judiciais, tradicionalmente considerados como tribunais ordinários ou comuns; aqueles são agora os tribunais ordinários da justiça administrativa” - cfr. J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição… cit., p. 565.

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chamado para dirimir ainda um conjunto de litígios jurídicos ambientais em que esteja em causa o bem da coletividade ambiente.

Sempre que se pretenda a reparação de danos causados por entidades privadas290

ou por entidades públicas, como se de privadas se tratassem291, sem que tenha ocorrido

violação de normas administrativas, devem os tribunais civis intervir292. Foi assim que

definimos o litígio ambiental civil, que poderá surgir de uma relação poligonal, como fizemos referência no ponto 2.3.

No entanto, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, como já tivemos oportunidade de verificar, considera que, ainda que tenham sido violadas normas de direito administrativo, o simples facto de num litígio estar em causa um direito subjetivo, como a integridade física ou a propriedade, é suficiente para arrastar esse litígio para a

competência dos tribunais civis293. Com a devida vénia, não podemos concordar com o

ilustre Professor, uma vez que consideramos que num litígio em que estejam em causa normas de direito administrativo, os tribunais administrativos estão especialmente preparados para lidar com essas questões de direito e, ainda, à semelhança dos tribunais judiciais, para averiguar da violação de direitos subjetivos fundamentais. Aliás, veja-se

que o artigo 4.º, n.º 1, alínea a) do ETAF294 prevê precisamente a competência dos

tribunais administrativos para tutelar os demais direitos fundamentais que decorram de

normas jurídicas administrativas295. Não seria adequado para a economia processual e,

nomeadamente, para a tutela do ambiente, por os litígios sofrerem demoras com possíveis conflitos de jurisdição, que o potencial lesado num dado litígio, tivesse que instaurar uma ação fora dos tribunais administrativos para se discutir a tutela de um direito subjetivo que está diretamente relacionado com um conflito decorrente de

290 Neste sentido, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, “O novo… cit., p. 119 e MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “Legitimidade…

cit., p. 414.

291 “[I]sto é, se a Administração é demandada como o poderia ser qualquer particular”, vide MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “A

competência … cit., p. 30.

292 MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, “O novo… cit., p. 120.

293 MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, “O novo… cit., p. 122.

294 Veja-se que a Proposta de Lei n.º 331/XII prevê uma nova redação para a alínea a) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF. Esta passa a

dispor que compete aos tribunais administrativos a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas à: “[t]utela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais”. Assim, passando a não ser necessário que os direitos fundamentais a proteger decorram diretamente de normas de direit o administrativo, entendemos que, se a redação da Proposta for aprovada, será ainda mais difícil advogar a posição sufragada por MÁRIO AROSO DE ALMEIDA. Com efeito, desde que se trate de uma relação jurídica administrativa, e mesmo que esteja em causa a tutela de direitos fundamentais, devem os tribunais administrativos ser competentes para o conhecimento desses litígios.

295

Não faz, portanto, sentido (e adiantando um pouco quanto à temática da competência dos tribunais) a consideração de que a tutela oferecida pelos tribunais administrativos deve ser reconduzida aos interesses e a tutela oferecida pelos tribunais comuns deve ser destinada aos direitos subjetivos, distinguindo-se uma justiça de interesses e uma justiça de direitos. Quanto a este entendimento vide GIOVANNI CORDINI, “O Direito.. cit., p. 221.

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violações de normas que escapam aos conhecimentos dos juízes dos tribunais judiciais. No entanto, por outro lado, se não estiver em causa quaisquer normas de direito administrativo, ou porque a atividade não é regulada pela Administração, ou porque de facto a atividade não decorre de nenhuma violação das normas administrativas, o litígio,

sendo entre particulares e discutindo-se a lesão de direitos subjetivos296, terá que ser

conhecido pelos tribunais civis. De facto, não há qualquer indício administrativo que faça transportar o conflito para uma ordem jurisdicional especial.

Como principais meios adequados para a tutela de posições jurídicas no âmbito

dos litígios ambientais, a maioria da doutrina297 não hesita em “apontar as miras” para

os meios de tutela oferecidos pelo artigo 70.º, n.º 2 do Código Civil, nomeadamente através da ação inibitória civil, constante dos artigos 878.º e ss. do CPC. No entanto,

afastamos totalmente esses mecanismos para uma tutela do bem coletivo ambiente298.

Não advogando o direito do ambiente como um direito subjetivo e de personalidade, e agindo cada cidadão sempre em nome de todos, exercendo um direito de estrutura coletiva e de finalidade tutelar, não mais poderá admitir-se no âmbito do contencioso ambiental civil a possibilidade de se intentar ações com base numa tutela da personalidade. Os meios acionáveis, para além de terem que ser sempre fundados na legitimidade coletiva oferecida pela ação popular civil, têm que se basear em ações

inibitórias e ressarcitórias299 libertas da tutela da personalidade, e por isso fora do

regime do processo especial de jurisdição voluntária300.

Havendo falta de regimes específicos previstos pelo legislador processual civil,

terão que ser intentadas ações cautelares301 ou principais com vista à cessação e

296 “Neste caso, a dimensão patrimonial do bem antecipa/consome a sua dimensão ecológica e a reparação deverá ser exigida junto

do foro comum, uma vez que o objecto do processo se traduz na indemnização de um dano que, conforme perspectivado pelo autor, é privado” – cfr. CARLA AMADO GOMES, Introdução… cit., p. 213-214.

297 MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, “Tutela… cit., pp. 86-87, MARIA JOANA FÉRIA COLAÇO, “A Tutela… cit., p. 150,

FILIPA URBANO CALVÃO, “Direito… cit., pp. 222-223.

298 Veja-se que MÁRIO AROSO DE ALMEIDA demonstra precisamente essa imprestabilidade para a tutela de um bem coletivo, ao

admitir que estes meios de tutela são adequados “para evitar a consumação de ofensas já cometidas à personalidade física ou moral de cada um”. Ora, no direito do ambiente, como vimos, não se tutela a individualidade, mas os bens naturais que são de toda a coletividade – cfr. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, “Tutela… cit., p. 87.

299 Nos termos do artigo 12.º, n.º 2 da Lei n.º 82/95, poderá ser qualquer uma das ações, quer principais, quer cautelares, previstas no

Código de Processo Civil, desde que adequadas para a tutela do bem ambiente.

300 Veja-se que a jurisprudência vai em sentido contrário, admitindo sempre como meios adequados à tutela do ambiente, por

considerar que este é suscetível de configurar um verdadeiro direito de personalidade. A titulo de exemplo, vide Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06-07-1989 citado por AUGUSTO FERREIRA DO AMARAL, “A Jurisprudência Portuguesa no Domínio do direito do Ambiente”, in Direito do Ambiente, Oeiras, INA, 1994, p. 470.

301

No antigo artigo 42.º da LBA, previa-se um meio cautelar específico que gerou muita controvérsia quanto à sua materialização. Ultrapassada toda essa querela, por ter sido eliminado o artigo, importa apenas relembrar que era opinião de vários autores, entre eles MÁRIO AROSO DE ALMEIDA (cfr. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, “Tutela … cit., p. 88), reconduzir esse mecanismo dos “embargos administrativos” à providência cautelar de embargo de obra nova prevista no CPC. Veja-se que, ainda que sem o artigo

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reparação do dano ambiental, absolutamente independentes do interesse direto e pessoal de um qualquer cidadão na demanda. O que importa é que a pretensão se funde no dever de prevenção e de cessação de todas as perturbações causadas ao bem ambiente. Assim, os pedidos serão essencialmente inibitórios, exigindo-se de quem quer que desenvolva ou ameace desenvolver uma atuação que lese os bens ambientais, que seja condenado a abster-se desse comportamento ou a pôr-lhe termo, por forma a prevenir ou a terminar

de imediato o ataque ao meio ambiente302. Daí que seja de enorme prestabilidade para

uma tutela jurisdicional útil, que se pretende em tempo, recorrer ao mecanismo da sanção pecuniária compulsória prevista no artigo 829.º-A do CC, compelindo o lesante a abster-se mais rapidamente da conduta ou a tomar mais rapidamente as medidas

necessárias à sua reparação303.

Por último, não podemos deixar de frisar a competência dos tribunais judiciais para o conhecimento dos crimes ambientais, para a impugnação das decisões administrativas que apliquem contraordenações, áreas que cada vez mais revestem uma enorme importância com o crescimento do ilícito de mera ordenação social ambiental e da criminalidade ambiental, e a competência dos tribunais marítimos para o conhecimento das ações de responsabilidade civil emergente de poluição do mar e outras águas sob sua jurisdição e para o conhecimento do dano em bens de domínio público marítimo (artigo 113.º, n.º 1, alíneas p) e n) da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto).