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Contributo para um contencioso ambiental

O contencioso ambiental tem um conjunto de caraterísticas que decorrem da complexidade e especificidade dos litígios ambientais. Frequentemente são colocadas ao juiz questões relacionadas com matérias eminentemente técnicas, com juízos de prognose de difícil concretização, confrontando-o com situações de enorme grau de incerteza. Numa atividade tendente à formulação de decisões, a atividade jurisdicional ambiental exige o domínio de uma panóplia de legislação dos demais ramos do direito.

Revelando-se como um “contencioso do risco”410, não basta a invocação, como

mero facto notório, da existência do perigo para os bens ambientais411. É, por isso,

necessária a convocação de peritos para a melhor compreensão de teses que, muitas vezes, se revelam absolutamente contraditórias e que mais parecem realizadas consoante o interesse próprio de quem as defende. Assim, o controlo jurisdicional de opções técnicas, que frequentemente são realizadas pela Administração, deverá centrar- se nos elementos do procedimento administrativo, confrontando-os com o iter decisório.

As certezas são meras suspeitas de perigo ou potenciais riscos, fundamentadas em simples impossibilidades práticas da respetiva exclusão. Todavia, as meras suposições não cientificamente comprovadas não devem ser suficientes para a formulação de verdadeiros juízos. O tribunal deve, em cenários de incerteza, como no caso de contraposição entre teorias científicas, escolher aquela que se revele mais adequada para a proteção do bem ambiental. Foi esta a posição defendida pelo Tribunal Geral da União Europeia no caso paradigmático Pfizer Animal Health decidido em

1999/2002412.

O juiz deve estar sensibilizado para a importância da preservação do bem ambiental. No entanto, não pretendemos com isto dizer que o juiz do contencioso ambiental deixe de ser imparcial e com isso deva prosseguir sem limites a proteção dos recursos naturais. O juiz, como entidade imparcial, deve ponderar todos os interesses em causa, não devendo, isso sim, subalternizar o bem ambiental. A mera invocação do

410 CARLA AMADO GOMES, Introdução… cit., p. 232.

411

Como aconteceu no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 29-03-2007, recordado por idem, ibidem, nota 341.

412

Acórdão do Tribunal Geral de 30 de junho de 1999, T-13/99 R (pedido de suspensão), recorrido para o Tribunal de Justiça e por este confirmado em 18 de novembro de 1999 [C-329/99 P(R)] e Acórdão do Tribunal Geral no pedido principal, em ação de anulação, de 11 de setembro de 2002, citados por CARLA AMADO GOMES, Introdução… cit., pp. 235-238.

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risco para os bens ambientais não deve ser, por si só, suficiente para operar uma tutela ilimitada, sem olhar a outros bens que poderão merecer simultânea tutela. Veja-se, a título de exemplo, a decisão do Tribunal Central Administrativo Sul de 31-03-2011 (Processo n.º 06793/10) onde se pretendia a suspensão da construção do quarto gerador de um parque eólico em zona de rede Natura 2000, por colocar em risco a vida de uma espécie de morcegos. O tribunal, acautelando os vários interesses em causa, mandou prosseguir a construção, mas limitou-a a um período do dia em determinados meses, por forma a salvaguardar a integridade dos morcegos. Assim se demonstra que no âmbito do contencioso ambiental não deve existir apenas uma forma de tutela, isto é, não deve ser norteado para a tutela exclusiva dos bens ambientais, mas deve ser uma tutela capaz de os proteger em consonância com os demais que com eles interagem.

O contencioso ambiental deve, evidentemente, lidar com medidas capazes de operar uma tutela preventiva e de precaução dos danos ambientais. Desta feita, os meios processuais devem ser necessariamente expeditos e atributivos de amplos poderes de

pronúncia por parte do tribunal413. Com efeito, o juiz, estando perante um interesse

absolutamente vulnerável, deve privilegiar as decisões de mérito, em razão das decisões

de forma414, acentuar a redução do prazo da tramitação do processo e da respetiva

decisão, podendo, por vezes, sendo o perigo eminente, correr a sua tramitação durante as férias judiciais. De facto, exige-se, para a proteção do bem ambiental, a forma de um recurso urgente contra os atos administrativos ofensivos do ambiente, além da

existência de medidas cautelares também urgentes415. A este propósito COLAÇO

ANTUNES questiona a possibilidade do instituto da suspensão da eficácia do ato se assumir como um recurso principal, e a possibilidade do instituto da suspensão da eficácia de regulamentos ser de aplicação imediata, nomeadamente no âmbito da ação

popular procedimental416. Considera o autor que são passos que se começam a adivinhar

no sentido da afirmação de uma tutela jurisdicional efetiva do ambiente417.

413 LUÍS CABRAL DE MONCADA, “O Ambiente… cit., p. 72.

414 Idem, p. 73.

415 LUÍS FILIPE COLAÇO ANTUNES considera que até se justificaria uma tutela cautelar “ante causam, independentemente da

impugnação do acto”, recordando que a Diretiva 89/665/CEE de 21 de dezembro de 1989, “prevê que o juiz possa emanar qualquer medida necessária (ainda que provisória), independentemente de qualquer “acção prévia”” – cfr. LUÍS FILIPE COLAÇO ANTUNES, Para um direito administrativo… cit., p. 119, nota 62.

416

Idem, p. 71.

417

Idem, ibidem. GOMES CANOTILHO reclama também meios específicos destinados a uma prevenção ambiental – cfr. J. J. GOMES CANOTILHO, “Privatismo, associativismo e publicismo na justiça administrativa do ambiente (as incertezas do contencioso ambiental)”, in Revista de Legislação e Jurisprudência, n.º 3857, 1995, p. 354.

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Quanto aos princípios que devem nortear a atividade jurisdicional no âmbito de uma tutela jurisdicional ambiental não podemos deixar de apontar o princípio da precaução, com consagração no Princípio 15 da Declaração do Rio de 1992. Este distingue-se do princípio da prevenção, na medida em que implica, por parte do julgador, uma atitude de antecipação mais exigente de riscos ambientais especialmente graves para o ambiente. Este princípio lida com uma ideia de incerteza científica, impondo uma complexa relação entre o direito e a ciência e importando o princípio da

proporcionalidade418. Ora, existindo uma dúvida científica quanto aos efeitos ambientais

de imensas atividades humanas, persistindo, ainda assim, o risco sério de consequências imprevisíveis e eventualmente não reversíveis para o ambiente e sendo este o bem que deve ser tutelado num determinado litígio, o julgador deve lançar mão de medidas cautelares, ainda que baseado num “juízo normativo de cientificidade em favor de uma

solução mais prudencial e amiga do ambiente”419. Ao abrigo deste princípio, o juiz,

ainda que não tenha sido feita prova de um risco evidente, mas uma vez não demonstrado que o risco está totalmente excluído, deve fazer cessar a atividade em

causa, ponderando de forma rigorosa a medida tomada e o objetivo prosseguido420.

Também o princípio da interpretação mais amiga do ambiente se revela como um princípio orientador da tutela jurisdicional efetiva ambiental. Este foi apontado por GOMES CANOTILHO como um princípio utilizado no aresto do Tribunal de Montemor-o-Velho no paradigmático caso “Quinta do Taipal”, pois o julgador perante as várias normas aplicáveis ao caso, interpretou-as no sentido da melhor proteção

possível do ambiente421. De facto, este deve ser o entendimento que deve disciplinar a

interpretação jurídica do julgador no âmbito do contencioso ambiental, quer na análise de normas que poderão ser determinantes para dirimir o litígio, em termos de relação material controvertida, quer para determinar a existência de exceções dilatórias que poderão pôr termo ao processo por inadmissibilidade da ação. O juiz deve seguir um entendimento não formalista e de interpretação sempre tendente à proteção máxima dos bens ambientais. No entanto, e como vimos supra não deverá ser um juiz como se de

um advogado do ambiente se tratasse422. Deve, outrossim, interpretar juridicamente,

418 LUÍS FILIPE COLAÇO ANTUNES, Para um direito administrativo… cit., p. 124

419 Idem, pp. 103-104. 420 Idem, p. 149. 421

J. J. GOMES CANOTILHO, “Protecção do Ambiente e Direito de Propriedade (crítica de Jurisprudência ambiental)”, Separata da Revista de Legislação e de Jurisprudência, Coimbra Editora, 1995, p. 82.

422 GOMES CANOTILHO critica o juiz de Montemor-o-Velho do caso da “Quinta do Taipal”, dizendo que o juiz infravalorou os

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protegendo o ambiente, mas nunca se esquivando à ponderação para determinar qual o bem que deve ser protegido.

Deste último princípio, partimos para outro: o princípio in dubio pro ambiente. Entendemos que, à semelhança do que acontece com o princípio in dubio pro reo, que norteia o processo penal, deve presidir, na atividade judiciária ambiental, o entendimento de que na dúvida quanto à possibilidade de risco, quanto à escolha da medida para a proteção de uma espécie, quanto à tomada de uma medida cautelar, ou quanto à decisão de inibição de uma atividade que se demonstre minimamente atentória contra o equilíbrio ecológico, deve o julgador decidir em favor do ambiente. Sem este princípio, a atividade jurisdicional ambiental não se revelará suficientemente sensível para a tutela dos bens ambientais, podendo cair nas “artimanhas” científicas dos agressores. É fundamental a sua consagração, exigindo-se uma magistratura mais

disponível e sensível ao essencial que muitas vezes é “invisível para os olhos”423

.

Aqui chegados, percebemos as exigências que são feitas ao julgador pelo contencioso ambiental. Sendo um ramo do direito “que não se basta com bons técnicos

aplicadores da lei”424

, o processo destinado à tutela do bem ambiental deve fazer com que o cidadão assuma a responsabilidade a respeito do futuro do planeta, pelo que tem

sido apelidado como o processo mais ético425. “A causa ambiental exige um processo

novo, um operador jurídico eticamente consciente do seu papel, que não só reprime as condutas contrárias à Natureza, mas que, sobretudo, construa decisões que eduquem

seres humanos”426

.

Todas estas notas sobre o contencioso ambiental pressupõem, como temos vindo a defender, o mecanismo da ação popular. A tutela jurisdicional efetiva ambiental pretende unicamente a tutela contenciosa do bem ambiental, autonomizando-se da tutela

pretendemos, sob pena do contencioso ambiental se revelar não parcial. O juiz deve ponderar todos os interesses em jogo, não esquecendo, no entanto, as particularidades do bem ambiente, mormente as necessidades urgentes da sua proteção.

423 LUÍS ELÓY PEREIRA AZEVEDO, “Magistratura e Ambiente: entre o Ontem e o Amanhã”, in Conferência Nacional – O

Acesso à Justiça em Matéria de Ambiente”, Lisboa, AMBIFORUM, Centro de Estudos Ambientais, Lda, 26/28 de abril de 1993, p. 83.

424 Idem, p. 82.

425 PAULO RONEY, “As medidas de urgência ambiental e a necessidade de mudança de cultura no campo processual”, in Lusíada:

Revista de Ciência e Cultura, Série de Direito, n.º 1 e 2, 2010, pp. 89-95. É interessante aqui recordar as palavras do PAPA FRANCISCO sobre as implicações das temáticas relativas ao ambiente, levando-nos a concluir pela ampla dimensão da decisão no âmbito do contencioso ambiental: “[a] cultura ecológica não se pode reduzir a uma série de respostas urgentes e parciais para os problemas que vão surgindo à volta da degradação ambiental, do esgotamento das reservas naturais e da poluição. Deveria ser um olhar diferente, um pensamento, uma política, um programa educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade que oponham resistência ao avanço do paradigma tecnocrático.” – cfr. PAPA FRANCISCO, Carta… cit., p. 85.

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personalística e individual do cidadão. Assim, requer-se por parte da sociedade uma atitude proactiva, dinâmica e, acima de tudo, de titulares de um sentimento de comunitarismo, com consciência plural e cultural. Ora, acontece que em Portugal ainda

não atingimos esse nível de “maturação”427

, levando a doutrina a considerar que o alargamento da legitimidade processual é um mecanismo inútil, sendo mais realista a concentração da tutela de bens da comunidade no Estado, existindo uma maior, mais eficiente e mais democrática tutela, prevenindo-se desta feita que interesses de ativos

lobbys se sobreponham aos interesses comuns428. Não concordamos com esse

entendimento, preferindo a opção tomada pelo nosso ordenamento jurídico, em que se combina uma tutela operada pelo Estado e uma tutela operada pelos cidadãos. Todavia, esperamos pelo aumento do sentido de cidadania e de consciência ambiental.

Tendo presente as caraterísticas exigentes de um contencioso ambiental, cumpre agora refletir sobre a criação de um tribunal ambiental.