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PARTE I. Perfil Conceitual: Da Igualdade Perante a Lei à Isonomia na Lei e à

1. Isonomia em uma perspectiva macro: da igualdade perante a lei à isonomia na lei e

1.3. A atividade complexa de promoção da isonomia (legislador, executivo e

1.3.2. A complementaridade das concepções estática e dinâmicas da igualdade A

A igualdade do constitucionalismo contemporâneo já não é mais aquela derivada da tradição grega, reproduzida pelas revoluções liberais, nem se resume à noção reducionista de vedação às discriminações arbitrárias no conteúdo da lei: trata-se de um método geral de legislação e de juízo em uma sociedade pluralista e, portanto, inevitavelmente conflituosa230. A experiência histórica demonstra que a proclamação de uma igualdade em abstrato mostra-se ilusória231, pois esse é um conceito relacional e comparativo, já que toda afirmação de uma igualdade ou desigualdade pressupõe uma comparação em concreto232.

A igualdade passou de um perfil estático a um perfil dinâmico que, entretanto, longe de substituí-lo, atua de forma complementar. Extrai-se da concepção estática a necessidade de respeito ao princípio básico de justiça formal, relacionada aos direitos fundamentais de liberdade, que reconhece a todos a igualdade de direitos fundamentais. A lei é igual para todos e deve ser aplicada indistintamente. Essa concepção, muito embora soe como um lugar-comum e apesar de ter se demonstrado

Comparative Legal Cultures. Hants: Dartmouth, 1992, p. 608. Sobre o tema ver, também, DA MATTA,

Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.

229 A doutrina chega a falar em igualdade como ―igual titularidade de direitos fundamentais‖, o que nada mais é do que uma acepção meramente formal da igualdade, ainda que sob a veste de uma fundamentalidade. Sobre o tema ver FERRAJOLI, Luigi. Principia Iuris. Teoria del diritto e della

democrazia. Roma: Laterza, 2007, v. I, p. 787. O mesmo autor caracteriza a igualdade formal como um

‗principio complesso‟ derivado dos direitos individuais estruturados a partir da liberdade e da autonomia, enquanto a igualdade formal como a necessidade de redução das desigualdades excessivas e intoleráveis por meio dos direitos sociais e das relações de solidariedade (p. 790). Daí falar em direito de igualdade como, ao mesmo tempo, um meta-direito individual e um meta-direito social (p. 791). Remetendo à segunda dimensão dos direitos fundamentais à igualdade em sentido material SARLET, Ingo Wolfgang.

A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, pp. 49-50.

230 SILVESTRI, Gaetano. Uguaglianza, ragionevolezza e giustizia costituzionale. In: CARTABIA, Marta; VETTOR, Tiziana (coord.). Le Ragioni Dell‟Uguaglianza. Atti del VI Convegno della Facoltà di

Giurisprudenza Università degli Studi di Milano – Bicocca. Milano: Giuffrè, 2009, p. 9.

231 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. La igualdad de las partes en el proceso civil. In: Temas de

Direito Processual. Quarta Série. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 67.

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SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: RT, 2012, pp. 534-535, em coautoria com Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero.

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insuficiente, ainda funciona como padrão mínimo de justiça de nossa sociedade. A preocupação em, de um lado, impedir a efetivação de distinções arbitrárias no conteúdo da lei e, de outro, promover eventuais distinções nesse mesmo conteúdo, como meio de diminuir desigualdades de fato, caracterizou uma segunda noção de igualdade, de perfil dinâmico, normalmente conceituada como igualdade material. Essa concepção, entretanto, ainda que tenha se demonstrado capaz de promover a tutela da diferença233, não se mostrou suficiente para a asseguração de um efetivo tratamento uniforme das situações assim merecedoras. Da compreensão de que a lei não é unívoca e de que suas disposições não têm o condão de exaurir toda a diversidade de situações, reflexo da diversidade da natureza humana, passou-se a compreender o mandamento de justiça formal não como um ideal de igualdade perante a lei. A exigência de uniformidade de tratamento impôs a passagem a uma concepção dinâmica de justiça formal, compreendida como igualdade perante o direito ou, em outras palavras, como a igualdade diante das decisões judiciais.

A asseguração qualificada da igualdade, portanto, requer a compreensão de que suas noções são complementares e não alternativas ou excludentes. À igualdade perante a lei soma-se a proibição às distinções arbitrárias e a promoção de desigualações justificadas na lei; a essas, por sua vez, soma-se a noção de igualdade diante das decisões judiciais, que corresponde à necessária uniformidade de tratamento das situações iguais e a diferenciação de tratamento das situações assim merecedoras. Esse perfil complexo reflete-se na multiplicidade de tipologias normativas em que se manifestam os direitos de igualdade, podendo essa ser reconduzida à estrutura de normas tipo-regra, tipo-princípio e tipo-postulado234.

Regra é a norma imediatamente descritiva, primariamente retrospectiva e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação exige-se a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios

233 ―Il rifiuto di nozioni meramente «livellatrici» o «parificatrici» dell‘eguaglianza in senso formale comporta l‘esigenza di porre costantemente a confronto l‘eguaglianza come tale con la «diversità» ontologica delle situazioni da regolare‖. COMOGLIO, Luigi Paolo. Tutela Differenziata e Pari Effettività nella Giustizia Civile. In: CARTABIA, Marta; VETTOR, Tiziana (coord.). Le Ragioni Dell‟Uguaglianza.

Atti del VI Convegno della Facoltà di Giurisprudenza Università degli Studi di Milano – Bicocca.

Milano: Giuffrè, 2009, p. 225. 234

Adota-se aqui a tripla tipologia das normas proposta por ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da

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que lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos235. A igualdade pode ser compreendida como uma regra, na medida em que está no seu âmago a ideia de proibição geral do arbítrio236, que objetivamente prevê, como faceta negativa, a proibição de tratamento discriminatório injustificado237. Trata-se de uma função bloqueadora que descreve aquilo que o ente estatal não pode fazer238, especialmente proibindo a efetivação de distinções arbitrárias e a equiparação injustificada. Em suma, uma regra com eficácia autolimitadora, que impõe limites à atuação do legislativo. Essa a igualdade em sua tipologia normativa de regra.

O direito à igualdade muitas vezes também é compreendido como uma norma tipo-princípio, normalmente apresentado como princípio da isonomia ou princípio isonômico, na medida em que impõe um estado ideal de igualdade a ser atingido. Princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma validação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção239. Nessa medida, a igualdade enquanto princípio jurídico impõe, ao legislador, em perspectiva geral, e ao juiz, na perspectiva do caso, a adoção de comportamentos que promovam este estado de igualdade, impondo o relacionamento entre os sujeitos com base em critérios que conduzam a uma situação futura de uniformidade, comportamentos esses que não se encontram imediatamente descritos com vistas ao alcance dessa finalidade, mas que, sendo necessários para promovê-la, serão devidos240. Trata-se, assim, de uma norma ―eguagliatrice‖ (―equalizantes‖), que funciona como uma diretiva de política do direito: as diferenças extrajurídicas entre indivíduos devem ser eliminadas241. Nessa perspectiva, o princípio da igualdade poderá ser objeto de ponderação com outros

235 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 15ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 102.

236 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4ª Ed. Coimbra: Almedina, 2000, p. 419.

237 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 15ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 192.

238 ÁVILA, Humberto. Teoria da igualdade tributária. 2ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 138. 239

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 15ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 102

240 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 15ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 104.

241

GUASTINI, Riccardo. La grammatica di ―eguaglianza‖. In: GUASTINI, Riccardo. Distinguendo.

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princípios constitucionalmente relevantes, quando, a pretexto de promover uma igualdade de fato, efetivem-se distinções que firam o núcleo essencial de outro principio constitucional. Estará sendo promovido, entretanto, quando por meio de ―atos de igualar‖, ou seja, por meio de comportamentos prescritos na forma de regras que tracem distinções, esteja-se atingindo uma maior nivelação social242, reduzindo, assim, as desigualdades (estado de coisas a ser atingido). Essa, portanto, a tipologia da igualdade entendida como norma-princípio.

Por fim, a igualdade funciona ainda como postulado normativo, uma vez que estabelece a estrutura de aplicação de outras normas243. Vale dizer: é uma metanorma que direciona a aplicação isonômica de qualquer princípio substancial244, uma ―norma di secondo grado‖245

. Em verdade, toda a norma traz, em seu âmago, a necessidade de ser aplicada de forma isonômica246. A ideia de igualdade perante o direito é exatamente isso: um critério de aplicação de outras normas, um mandado de aplicação das normas de modo isonômico247. A igualdade como postulado, por si só, nada diz quanto aos bens ou aos fins de que se serve para igualar ou diferenciar as pessoas. Qualquer que seja a finalidade escolhida, deverá ser interpretada de modo isonômico. Trata-se, portanto, de um método, que fornece uma estrutura de aplicação para outras normas248. Dessa forma, a igualdade estrutura-se também como norma- postulado.

Essas três manifestações da igualdade podem atuar de forma conjunta ou em separado, a depender do caso. A tipologia normativa da igualdade é plural e complementar: pode estruturar-se como igualdade-regra, como comando negativo proibitivo de discriminações; como igualdade-princípio, como uma previsão positiva

242 MOURA, Patrícia Uliano Effting Zoch de. A finalidade do princípio da igualdade. A nivelação social

– interpretação dos atos de igualar. Porto Alegre: SAFE, 2005, p. 112.

243 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 15ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 164.

244 ÁVILA, Humberto. Teoria da igualdade tributária. 2ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 135. 245

GUASTINI, Riccardo. La grammatica di ―eguaglianza‖. In: GUASTINI, Riccardo. Distinguendo.

Studi di teoria e metateoria del diritto. Torino: Giappichelli, 1996, p. 158.

246 É o que se infere da afirmação: ―o juiz deverá dar sempre à lei o entendimento que não crie privilégios, espécie alguma‖ FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 32ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 280.

247 MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: RT, 2012, p.640, em coautoria com Ingo Wolfgang Sarlet.

248 SILVESTRI, Gaetano. Uguaglianza, ragionevolezza e giustizia costituzionale. In: CARTABIA, Marta; VETTOR, Tiziana (coord.). Le Ragioni Dell‟Uguaglianza. Atti del VI Convegno della Facoltà di

64 promocional de um estado de coisas isonômico; e como igualdade-postulado, como uma metanorma que direciona a aplicação isonômica de outras normas.

2. Isonomia em uma perspectiva micro: da garantia da paridade de armas ao