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A COMPOSIÇÃO CROMÁTICA EM PROTOCOLO CIDADE

4. PROTOCOLO CIDADE: A CONTINUIDADE DO GRUPO

4.5 A COMPOSIÇÃO CROMÁTICA EM PROTOCOLO CIDADE

A cor branca, para alguns, é considerada perfeita, dentre todas as cores, pois, simbolicamente, não existe uma concepção negativa para ela. Segundo os físicos da luz, na teoria ótica, a cor branca não existe, pois, afinal, para a física, o branco é a junção de todos os espectros luminosos, embora, como pigmento, o branco seja considerado cor, pois, assim como as cores primárias, o pigmento branco não é obtido por meio da mistura de outros pigmentos. Portanto, pode ser considerado a quarta cor primária quando utilizada na pintura de materiais. Para a simbologia das cores, o banco também é considerado uma cor, pois são atribuídas a ele sentimentos e propriedades que não são atribuídos a outras cores.

O branco também é considerado a cor do princípio. Em Protocolo Cidade, o início do espetáculo se dá com a chegada de dois cavalheiros (personagens- bonecos) à cidade de Ominirá. Em Ominirá, acredita-se morar no céu. O céu, morada de “Deus”, é estimado como lugar da pureza, do bem, da verdade e da perfeição, características simbolizadas na cor branca. “O branco é o início. Quando Deus criou o mundo, seu primeiro comando foi: ‘Faça-se a luz’” (HELLER, 2013, p. 156).

Em Ominirá, cidade perto do céu, as crianças brincam (personagens- bonecos), vivenciam seus tempos pueris. Mas, certo dia, brincando, perfuram a camada celeste e decidem descer. Ao descer, elas passam a observar o novo mundo, a cidade, e começam a imitar as ações dos moradores da cidade. Até que, um dia, a cidade desaba sobre eles. Cai sobre as crianças uma chuva de lixo banco, amassados, rejeitados... Cai, em seguida, a torre branca que apontava para o céu. A pureza é corrompida, e a cidade corrói, desaba. O branco se mistura cada vez mais com o marrom, com o sujo.

Figura 75 Queda do lixo branco.

Em cena: Elisa Reichmann e Yarasarrath Lyra.

Em nenhum momento, a queda de papel e do material branco foi utilizado por Rangel com propósito simbólico, mas por sua capacidade técnica de melhor refletir a luz e as projeções. Essa analogia com o simbolismo das cores é uma leitura particular minha, pensando como receptor do espetáculo.

Considerada uma cor pura, o branco encontra, no marrom, sua contraparte negativa. “Sua cor contrária psicológica é sobretudo o marrom. Não existe nenhum acorde cromático em que o marrom figure ao lado do branco, pois nada pode ser, ao mesmo tempo, puro e sujo.” (HELLER, 2013, p. 159).

Figura 76 O contraste entre a lona em tons terrosos, as caixas em tons pardos e os pontos brancos.

Ao contrário do pigmento branco, que é considerado uma cor, o marrom, em teoria, não deveria ser considerado cor, pois é resultante da mistura de vários pigmentos. Em sentido psicológico, sim, marrom é considerado uma cor, pois sentimentos e sensações lhe são atribuídos. “O marrom está por toda parte, mas como ‘cor em si’, o marrom é desdenhado.” (HELLER, 2013, p.255).

Marrom é a cor dos objetos rústicos, derivados de madeira, couro e terra. Na natureza, o marrom não aparece numa única tonalidade, mas em forma de manchas e respingos de gradações variadas. O pigmento marrom pode conter uma variada gama de cores, como o azul, o vermelho, o amarelo, o preto e até mesmo o branco. O marrom torna-se mais agradável quando combinado a cores mais alegres, como o laranja e o amarelo, tons presentes na lona utilizada no cenário de Protocolo Cidade. A cor marrom é bastante empregada para dar a impressão de redução de lugares. As caixas maiores do cenário do espetáculo, na cor marrom, demarcam muito bem os espaços de atuação dos bonecos.

Por ser considerada também a cor da robustez, da resistência e da virilidade, a lona em tons de marrom dá a impressão de estrutura que sustenta as caixas do cenário. “As coisas que não são delicadas por natureza, que são coisas resistentes, chamamos de ‘robustas’; essa palavra provém de rotbraun, marrom

avermelhado. E existe alguma cor mais robusta que o marrom?” (HELLER, 2013, p. 259).

O chão do palco foi encoberto por duas lonas de plástico na cor cinza. O cinza das lonas faz uma referência direta ao cinza do asfalto que cobre as ruas das cidades, como também ao cinza do concreto das grandes edificações. Segundo a simbologia das cores, o cinza é uma das cores do barato, do grosseiro e do bruto: “o cimento cinza dos prédios das fábricas e dos edifícios funcionais, ou seja, da realidade sem enfeites.” (HELLER, 2013, p. 281). O cinza representa coisas destruídas.

Na composição cromática do cenário de Protocolo Cidade, o branco, a cor que carrega características simbólicas positivas, serve de contraponto às impressões negativas que o marrom e o cinza poderiam provocar no espectador. Nesse sentido, as tonalidades do marrom e também do cinza eram mais claras. A leitura de uma cidade fria, impessoal, insensível, indiferente – tudo isso pode ser lido por meio da composição cromática da cenografia de Protocolo Cidade.

A composição das caixas empilhadas servia também de tela para a projeção de imagens. Na primeira parte do espetáculo, são projetadas imagens coloridas, oníricas, poéticas, um convite ao deslumbre sobre a vida, as coisas belas. Aos poucos, essas imagens vão dando espaço para a exposição de cenas da cidade com seus problemas de trânsito, escoamento de água das chuvas, violência urbana, catástrofes naturais. Nas paredes da cidade, vão sendo grafadas por luz e imagens aspectos caóticos produzidos pela impessoalidade, a ambição e a frieza das relações.

Figura 77 O chão cinza do palco.

Em Protocolo Cidade, como numa Babel, as pessoas não falam uma linguagem direta, de fácil compreensão. O que há é uma reação instantânea ao tono vocal, que é compreendido no particular de cada um. É um texto que poderia ser dito em qualquer situação, num diálogo dentro de um ônibus apertado, ou entre o engraxate e o cliente. As palavras são as mesmas, as intenções ou situações propõem novos significados. O único momento em que o diálogo segue uma sequência lógica é na cena da marmita, quando uma personagem-criança (boneco), dialoga com um senhor que está comendo na rua. Na cidade branca-marrom-cinza, personagens reagem a situações – a palavra é só um detalhe, e a composição cromática tem algo a dizer.

Figura 78 Diálogo entre o senhor e o menino.

Em cena: Claudio dos Anjos, Elisa Reichmann e Yarasarrath Lyra.