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4. PROTOCOLO CIDADE: A CONTINUIDADE DO GRUPO

4.1 ESPETÁCULO – EXPOSIÇÃO

Durante muito tempo, configurou-se que a peça teatral perfeita seria aquela que respeitasse a convenção aristotélica a respeito da tragédia, que devia ser amparada pelas três unidades: tempo, espaço e ação. Martin Esslin (2018) expõe o que alguns críticos consideravam essencial em uma peça, para que ela fosse classificada como uma peça ideal. Para ser apreciada como uma peça ideal, o drama necessitaria apresentar uma história habilmente construída, que servisse de espelho a retratar a natureza, os trejeitos e os maneirismos da época, de forma detalhada, estruturada por diálogos espirituosos e perspicazes, ostentando sutileza na caracterização e nas motivações das personagens, com temas cuidadosamente apresentados e explicados, além de um final bem resolvido. O espetáculo Protocolo Cidade não se encaixa em nenhum desses critérios.

As peças de autores como Harold Pinter, Artur Adamov, Eugène Ionesco e Samuel Beckett, segundo Esslin, são desprovidas de histórias e enredos. Não mostram personagens reconhecíveis, e também não apresentam começo nem fim, e, por vezes, parecem ser o reflexo de sonhos ou pesadelos, além de diálogos incoerentes. Portanto, para Esslin, elas contêm elementos dispares daqueles das peças consideradas ideais. Por isso, naquele período da década de 1950, elas eram consideradas como bobagens e mistificações de impertinências e imposturas ofensivas. Ao contrário de certos críticos, Esslin percebia que aquelas peças tinham algo a dizer e podiam, sim, ser compreendidas. Na tentativa de enquadrar o espetáculo Protocolo Cidade em alguma categoria, é possível afirmar que o espetáculo contém traços do “Teatro do absurdo” e do “Teatro de vanguarda”, estéticas apresentadas por Esslin.

Em se tratando de Teatro de vanguarda, Andreia Peixoto (2009) ressalta que o termo vai aparecer no século XIX com o intuito de classificar todo aquele teatro que apresentou alguma inovação perante o que estava estabelecido no período. Destarte, em algum momento da história, tanto o teatro de Shakespeare como o de Beckett podem ser considerados como Teatro de vanguarda. Para ser considerado vanguarda, faz-se necessária uma antecipação do que possa vir a acontecer.

Segundo Peixoto, as primeiras peças a serem consideradas de vanguarda são de artistas russos das três primeiras décadas do século XX, que pensavam numa arte não mais separada da vida, e que viam, no teatro, a síntese de todas as artes. Destacam-se, nesse momento, espetáculos produzidos por Vsevolod Meyerhold, com a fuga do realismo e em aproximação com o simbolismo e as manifestações populares, além da valorização da preparação física de seus atores, tornando o corpo uma linguagem por excelência em suas produções. As criações de Meyerhold foram interrompidas durante a ascensão de Stalin ao poder. Houve perseguição a toda e qualquer manifestação que não estivesse alinhada aos ideais do período, considerando-as traição, o que fatalmente levou o encenador a ser assassinado a tiros na prisão no ano de 1940.

O termo Teatro de vanguarda, volta à baila após a Segunda Guerra Mundial, em que textos de autores como Eugène Ionesco, Samuel Beckett, Arthur Adamov e Jean Genet passaram a serem encenados. Na Inglaterra, esse tipo de teatro passa a ser denominado Teatro do absurdo. Um teatro que se caracteriza por ações repetitivas e sem sentido, alternando situações risíveis com imagens trágicas ou horríveis, com a pulverização da linguagem, sem se preocupar com a comunicação, em que réplicas imprevistas aparecem dentro do discurso normal, sem a necessidade de respeitar as convenções de espaço, tempo e lugar.

Ainda segundo Peixoto, essas encenações tinham por objetivo dar uma dimensão metafísica ao teatro, fazendo com que o homem, por meio do absurdo, fosse surpreendido pela tragédia em que se encontra devido à solidão, derivada de sua incomunicabilidade.

O espetáculo Protocolo Cidade é composto por microcenas independentes. Seu enredo é amarrado pela presença de personagens-bonecos que tentam ilustrar, por meio da repetição, aquilo que veem em cenas da cidade. Eles agem como narradores daquilo que observam, ao mesmo tempo em que são submetidos à

narrativa de outro ente que está fora de cena, mas que se torna presente ao narrar as experiências de personagens-bonecos com as cidades.

As microcenas não apresentam personagens elaboradas. Apenas esboçam uma ideia de tipos, composta por diálogos incoerentes, que contam com a intencionalidade dos intérpretes para desenhar as ações e instigar o público a construir sua interpretação daquilo que vê. As personagens nunca explicam direito onde estão e por que estão, nem o que desejam de fato. Os diálogos sempre se iniciam pela pergunta: “O que você está fazendo?” cuja resposta são expressões vagas, como, “Penteando macaco” ou “Procurando moinho de vento” como também, “Tempestade num copo d’água”.

Tomando somente o texto dramático de Protocolo Cidade é facilmente possível classificá-lo como um texto do “Teatro de absurdo”. Mas, com a junção do texto dramático com o texto cênico, é plausível perceber nuances do que Esslin denomina de “Teatro de vanguarda poética”. Esslin expõe que a vanguarda poética, apesar de se apossar de características marcantes do absurdo, como a desobediência das três unidades aristotélicas e de apresentar aspectos próximos da fantasia e do sonho, ela coloca em cena imagens mais líricas, distanciando-se de aspectos mais violentos e grotescos presentes no Teatro do absurdo. Ela se sustenta pela valoração da linguagem: “... a ‘vanguarda poética’ se apoia de forma muito mais nítida na fala conscientemente ‘poética’; anseia por peças que são na realidade poemas, imagens compostas por uma rica teia de associações verbais.” (2018, p. 25).

Por aproximação ao pensamento de Esslin a respeito da vanguarda poética, destaco a colocação de Cleise Mendes (2015) a respeito da encenação de Protocolo Lunar, espetáculo anterior a encenação de Protocolo Cidade. Ela o denomina de “dramaturgia lírica”, uma dramaturgia hibrida, na qual ela consegue perceber características e traços das peças oníricas de Augusto Strindberg, passando pelos dramas de estações expressionistas, o teatro pânico de Arrabal, os rituais cênicos de Jean Genet e o nonsense do Teatro do absurdo, em comunhão com uma série de composições do teatro contemporâneo. Traços facilmente perceptíveis em Protocolo Cidade.

Ao Apresentar Protocolo Cidade como um espetáculo-exposição, Rangel propõe que o espectador observe o espetáculo como uma obra para ser vista como quem assiste a uma exposição de arte, numa galeria. Nesse caso, a exposição se

dá dentro do edifício teatral e em cima do palco. Ao entrar na sala, o público assiste a um artista visual desenhando em uma tela, como numa videoinstalação; sons e imagens da cidade são projetados em cima de caixas de papelão; no decorrer do tempo da performance dos atores, as imagens vão construindo o cenário do espetáculo. Para Rangel, ele se configura como uma bricolagem de fragmentos que mesclam desenho e música ao vivo, atores, personagens-bonecos, personagens- objetos e personagens-máscaras em imagens cênicas e também projetadas para compor o tempo-espaço poético da encenação.

Figura 61 Projeção de imagens da cidade sobre as caixas de papelão.