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1. Rangel, Sonia, 1948 Crítica e interpretação 2 Criação (Literária, artística, etc.) 3 Poesia

2.4 O TEATRO DE SOMBRAS

Em A República, o filósofo grego Platão apresenta um diálogo fictício entre seus irmãos mais novos, Glauco e Adimanto, e seu mestre, o filósofo Sócrates, que lhes apresenta o mito ou a parábola da caverna. A fim de que os ouvintes compreendessem melhor a configuração em que os prisioneiros presentes na caverna se encontravam em relação à entrada, Sócrates usa a imagem de um teatro de bonecos como ilustração. O texto aqui referenciado é de uma tradução portuguesa. Portanto, o termo “roberto” tem o mesmo significado que fantoche em Portugal.

Suponhamos uns homens numa habitação subterrânea em forma de caverna, com uma entrada aberta para a luz, que se estende até o comprimento dessa gruta. Estão lá desde a infância, algemados de pernas e pescoços, de tal maneira que só lhe é dados permanecer no mesmo lugar e olhar em frente; são incapazes de voltar a cabeça, por causa dos grilhões; serve-lhes de iluminação um fogo que se queima ao longe, numa eminência, por detrás deles; entre a fogueira e os prisioneiros há um caminho ascendente, ao longo do qual se construiu um pequeno muro, no gênero de tapumes que os homens dos ‘robertos’ colocam diante do público, para mostrarem suas habilidades por cima deles. (2005, p. 315).

Como num teatro tradicional de fantoches, os corpos das pessoas e animais ficavam escondidos pelo tapume, e os prisioneiros da caverna só tinham acesso às imagens projetadas de objetos carregados pelos seres de fora da caverna. A realidade sobre a vida de fora era compreendida de outra maneira pelos habitantes da caverna. Objetos ganhavam vida em sombras projetadas nas paredes da caverna. Eles também ganhavam movimentos, e os sons dos seres do lado de fora davam voz aos objetos projetados. A ilusão era construída propondo uma nova realidade.

Questiona Platão o que aconteceria se, em determinado dia, um dos prisioneiros conseguisse sair da caverna e se deparasse com a realidade do mundo de fora? O brilho do sol lhe causaria uma cegueira momentânea, mas, aos poucos, iria se reocupando até se acostumar com a luz solar, ao mesmo tempo em que iria aprender e entender sobre o mundo de fora. Ao falar do modo como via e entendia o mundo de fora quando estava na caverna, serviria de zombaria e seria visto como um tolo. Se esse homem resolvesse voltar para a caverna e relatar sobre o mundo

de fora, seria desacreditado por seus pares do cativeiro, e voltaria a ser cego, devido à ausência de luz. Ao passo que, se algum deles sentisse que o ex-prisioneiro tinha o desejo de trazer alguém para o mundo de fora, o medo do desconhecido poderia levar o ex-prisioneiro a morte.

Com o mito da caverna, Platão desejava tratar das questões relacionadas à percepção humana, da dualidade entre realidade e aparência, o mundo das coisas sensíveis e o mundo das ideias, defendido por ele como espaço da verdadeira realidade. O mito aqui aparece por trazer dois elementos presentes na encenação de Ciranda de Histórias. A técnica tradicional do teatro de fantoches e a técnica de projeção de sombra, ao mesmo tempo em que nos ajudam a compreender o teatro de sombras, como aponta Maryse Badiou (2012), como elemento que une duas correntes de pensamento também antagônicas: o pensameto de Platão que defendia a ideia de que vivemos sobre a sombra de um universo real e completo, e o de Aristóteles, que sustentava ser o mundo em que vivemos bastante real e significativo.

Se o teatro de sombras explica, de certa forma, o pensamento pseudoplatônico já que parte da réplica do objeto para construir um mundo coerente com sua própria dinâmica trazida à realidade – o teatro de sombras também explica o pensamento objetivo de Aristóteles sim, em vez de assistir ao show na frente da tela, nos colocamos no outro lado, lá onde os objetos evoluem. Aqui este gênero consegue aglutinar o sistema subjetivo de Platão e o sistema objetivo de Aristóteles, demonstrando assim a grande profundidade de uma arte que aposta em uma visão não maniqueísta do mundo e busca verdade reunindo as diferenças. (BADIOU, 2012, p. 49)

Com relação ao mundo das sombras, Badiou nos convida a refletir sobre o espanto do homem pré-histórico ao preceber a existência de sua própria sombra projetada, uma réplica intangivel de seu corpo tangível, duas realidades antagonicas manifestas e visíveis e, ao mesmo, tempo inseparáveis.

Pela tradição, o teatro de sombras é a metáfora da passagem do mundo dos mortos para o mundo das sombras. Na China do século II a. C., o teatro de sombras teria surgido em homenagem à dançarina favorita do imperador Wu-Di, que havia morrido. O imperador teria exigido do mago do reino que encontrasse uma forma trazer a dançarina à vida. O mago, usando de esperteza, recortou uma silhueta de bailarina em uma pele de peixe translúcida, e ordenou que à noite, no jardim do palácio, fosse esticada uma tela branca em frente a uma fonte de luz. Ao som de

uma flauta, o mago fez aparecer ao imperador à imagem de uma mulher dançando. Nasceria, aí, o teatro de sombras. Como objeto de dualidade e contradizendo a tradição, a cena narrada pelas sombras, em Ciranda de histórias, é a de uma fecundação, ou seja, surgimento da vida, e não da morte.

As questões aqui apresentadas com relação ao teatro de sombras se justificam não só pelo uso da técnica numa das cenas finais em Ciranda de Histórias, mas também porque apresenta uma forma de projeção física da imagem, técnica que foi explorada nos espetáculos Protocolo Lunar e Protocolo Cidade, cada uma com intencionalidade diferente, tema a ser abordado nos próximos capítulos. Ressalta-se que a utilização de projeções aponta para um aspecto recorrente da dramaturgia e da visualidade de Os Imaginários e, consequentemente, da poética visual para cena de Sonia Rangel.