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1. Rangel, Sonia, 1948 Crítica e interpretação 2 Criação (Literária, artística, etc.) 3 Poesia

1.8 A DIFERENÇA NA REPETIÇÃO

Esta pesquisa surge da hipótese de que seria presumível identificar possíveis recorrências que pudessem apontar para uma poética da artista visual Sonia Rangel em cena nas montagens do grupo de teatro Os Imaginários. Os estudos sobre recorrências direcionaram para o entendimento de que uma poética é constituída por elementos nos quais se pode identificar o percurso criativo do artista, e uma das formas de isso ser possível é pela análise daquilo que se repete como tema ou forma. Encontro, no pensamento do filósofo Gilles Deleuze, pressupostos que incidem sobre essa temática.

Em Proust e os signos, Deleuze (2010) questiona: “Como a essência se encarna na obra de arte? Ou, o que vem a dar no mesmo, como um sujeito-artista consegue ‘comunicar’ a essência que o individualiza e o torna eterno?” (p. 44). Ele vai responder que se encarna na matéria, mas se trata-se de uma matéria flexível, tão bem amassada que se torna inteiramente espiritual. Assim como a matéria cor para os pintores, a matéria som para os músicos e a palavra para os escritores, vistas por ele como matérias livres, “a arte é uma verdadeira transmutação da matéria. Nela a matéria se espiritualiza, os meios físicos se desmaterializam, para refratar a essência, isto é, a qualidade de um mundo original.” (2010, p. 45). Esse tratamento que o artista dá à matéria ele vai definir como o “estilo”, o que, em meu entender, se aproxima da noção de poética.

O filosofo defende que a essência é individualizante, ou seja, ela é também diferença. Mas, sendo individual e individualizante, ela não pode ser substituída, apenas ser repetida, portanto. Eis a razão de uma música ser tocada novamente, um quadro ser novamente apreciado e uma peça ser novamente encenada. “A diferença e a repetição só se opõem aparentemente e não existe um grande artista cuja obra não nos faça dizer ‘a mesma e, no entanto, outra’” (2010, p. 46). Para Deleuze, a repetição tem o poder de elevar a primeira vez à enésima potência. Dessa maneira, é possível concluir que a última apresentação de Édipo Rei, em qualquer espaço cênico ao redor da terra, está repetindo, mais uma vez, a primeira encenação do espetáculo lá nos primórdios da arte dramática, organizada nos festivais dionisíacos.

Especialmente a respeito do teatro, Deleuze afirma: “O teatro é o movimento real e extrai o movimento real de todas as artes que utiliza.” (2000, p. 54). Além de explanar sobre a importância do movimento como deflagrador da repetição, não repetição mecânica, mas da dinâmica estabelecida entre os materiais da encenação e a ação do ator, que, ao atuar, repete o ato de atuação da personagem, produzindo, por meio do movimento, a repetição e a diferença.

Quando se diz que o movimento, pelo contrário, é a repetição e que é este nosso verdadeiro teatro, não se está a falar do esforço do ator que ensaia repetidas vezes enquanto a peça não está pronta. Pensa-se no espaço cênico, no vazio desse espaço, no modo como ele é preenchido, determinado, por signos e máscaras, através dos quais o ator desempenha um papel que desempenha outros papéis; pensa-se como a repetição se tece de um ponto notável para outro, compreendendo em si as diferenças. (Idem)

Ao debruçar-se sobre o percurso criativo de determinado artista, será possível reconhecer seu estilo ou sua poética por meio da leitura dos temas e das formas reiteradas por ele. Pela perspectiva deleuziana, o artista transmuta a matéria e a espiritualiza, dando-lhe a essência que a individualiza e, ao se individualizar, não será mais possível a reprodução, apenas a repetição. Portanto, é possível assegurar que, ao se repetir, o artista se individualiza, e, ao se mover pela repetição, provoca a diferença.

Aproveitando meu tema de discussão, tomo a iniciativa de afirmar que é recorrente inferir que o teatro é o lugar da repetição, e com razão: desde a leitura do texto dramático, passando pelos ensaios, o artista de teatro está sempre praticando a repetição. E essa repetição continua quando o espetáculo entra em cartaz e se repete mais uma vez diante de uma plateia.

O que torna a repetição sempre surpreendente para o fazedor teatral? Qual a força motriz que impulsiona o artista de teatro a continuar repetindo as mesmas falas e os mesmos gestos a cada sessão? Poder-se-ia argumentar que é pelo prazer que o estar em cena proporciona, ou pela capacidade e necessidade de se contar uma história, ou pelo desejo de estar em contato com uma plateia. Pode-se também argumentar que é pelo frisson do inesperado, pela surpresa da fala, do gesto e da recepção. E a diferença? É possível reconhecer o valor da diferença na repetição teatral? Como essa diferença se manifesta?

Atores e atrizes, quando adentram uma sala de ensaio, entram com a missão de repetir falas, gestos, movimentos e padrões. Essa repetição tem como pressuposto investigar possibilidades de construção de narrativas a serem levadas para a apreciação de uma audiência. Nesses ensaios, jogos, improvisações, discussões, rupturas e acréscimos são elementos fundamentais para a construção da narrativa a que se deseja chegar. Muitas vezes, em ensaios livres ou temáticos, os artistas partem da experimentação de uma gama de possibilidades de ações para, aos poucos, elas serem decupadas e melhor ajustadas à necessidade da encenação.

O ator que, em cena, está sempre em estado de alerta, em prontidão, pronto para responder à cena e à contracena, produz um estado de energia que o mantém “vivo” no palco. Creio que esse estado de alerta e essa energia são os terrenos férteis para que a diferença se manifeste. O gesto e a fala, tantas vezes repetidos, surgem como novas a cada vez que são executados, fornecendo um estado de frescor. A cada sessão, a arte do fazer teatral se renova, se repete e se torna diferente na repetição.

Claudio Thebas (2005), ao tratar da formação do palhaço de circo, revela como a repetição se torna fundamental para a arte do palhaço. Segundo ele, no circo, a formação do futuro palhaço acontece no dia a dia. Antigamente, só existia palhaço entre aqueles que já nasciam no circo, ou aqueles que fugiam com ele. O futuro palhaço tinha de aprender malabarismo, equilibrismo, piruetas, saber cair e levantar, aprender os truques tradicionais. Para fazê-los bem feitos, precisava repetir várias vezes, para que tudo fosse verdadeiro aos olhos do público. Para Thebas, esse é o segredo de um bom palhaço de circo: apresentar truques antigos e conhecidos como novos, com verdade, como se estivessem acontecendo pela primeira vez. Para tal, ele tem de descobrir seu próprio jeito de falar, cair, tropeçar. E repetir sempre como numa primeira vez.

Partindo do pressuposto de que o Édipo Rei de Sófocles e o Hamlet de Shakespeare permanecem os mesmos em suas singularidades, ou seja, em suas diferenças últimas, pode-se supor que, quando um ator interpreta uma dessas personagens e o repete em cena, a repetição provoca uma diferença, já que o ator é único e a ação também é única, portanto, diferente. Pode se concluir que assim também se dará com todos as demais personagens e artistas do fazer teatral: estão todos sujeitos à ordem da repetição e da diferença.

Sustentam essa premissa as palavras do filósofo francês Gilles Deleuze (2006), segundo o qual o movimento gera a diferença e, por conseguinte, estabelece o verdadeiro teatro. Ele nos convida a refletir sobre o vazio do espaço da encenação e de como, por meio dos movimentos do ator, esse espaço vai sendo preenchido por máscaras e signos utilizados pelo interprete, que desempenha o papel de uma personagem que desempenha um papel. Compreende ainda o filósofo que a história é um teatro em que o trágico e o cômico, na repetição, fornecem aos “atores” e “heróis” condições para produzir, na história, algo efetivamente novo.

Expõe ainda Deleuze que o escritor e linguista romeno Pio Servien destingiu a linguagem lírica da linguagem da ciência com justeza, compreendendo que, enquanto a linguagem da ciência é dominada pelo símbolo da igualdade, e, portanto, pode ser substituída, na lírica, cada termo é insubstituível e, portanto, só pode ser repetido. Para o filosofo, a repetição se manifesta como caráter autônomo e afirmativo da singularidade, ou seja, como diferença última. Diante do exposto, concluo que sim: a diferença na repetição encontra lugar fértil no seio da atividade teatral.

Findada a exposição sobre os aspectos teóricos que permeiam a escrita desta tese, o próximo passo consistirá em debruçar-me sobre os processos de construção dos espetáculos do grupo de teatro Os Imaginários. No capítulo que se segue, trato exatamente sobre o desenvolvimento do espetáculo Ciranda de histórias, revelando aspectos de seu processo de construção, tomando como objeto de análise, em primeiro plano, seus aspectos visuais, desde a concepção até o que foi entregue ao público como produto final.

2 GRUPO DE TEATRO OS IMAGINÁRIOS – ORIGEM

O grupo de teatro Os Imaginários pode ser considerado um grupo de categoria contingente, já que, desde seu surgimento no ano de 2007, não mantém um número permanente de membros em seu elenco. Em seus quatros espetáculos, o elenco foi composto basicamente por novos atores e poucos remanescentes. O primeiro elenco foi composto por alunos da primeira turma do sistema modular de ensino implantado em 2004 e atualmente extinto na Escola de Teatro da UFBA.

O que torna possível definir o grupo na categoria contingencial é que, por manter sua base vinculada à Universidade por meio da Escola de Teatro e ao Núcleo de Plástica e Cena, ele é composto especialmente por professores, alunos e ex-alunos pesquisadores da Escola de Teatro e da Escola de Belas Artes da UFBA, estando suas produções relacionadas aos desejos e anseios desses pesquisadores.

Os Imaginários se definem enquanto ensino-pesquisa-extensão a partir de um lugar institucional permanente, pelo meu vínculo de professora, mas aberto, pois acolhe artistas pesquisadores em suas passagens e interesses contingenciais. (RANGEL, 2015, p. 36)

Sob a coordenação da professora Sonia Rangel, ligada à Escola de Teatro e à Escola de Belas Artes da UFBA, o elenco do grupo de teatro Os Imaginários mantém uma base estável e instável, pois a permanência dos membros está relacionada à sua permanência nos cursos de graduação e de pós-graduação das escolas citadas e também ao desejo de ex-alunos de continuar suas pesquisas relacionadas ao imaginário e aos processos de criação.

A atriz e pesquisadora Yarasarrath Lyra é um exemplo de membro que, após o vínculo universitário, continua no grupo até o presente. Ela iniciou no grupo ainda na graduação, como pesquisadora voluntária do PIBIC (2009), realizou seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) tendo as formas animadas como recurso metodológico para o ensino de teatro para pessoas da terceira idade, e concluiu seu mestrado tratando de sua experiência como atriz e animadora do espetáculo Protocolo Lunar. As temáticas referentes ao teatro de formas animadas, característica presente nos espetáculos do grupo, é também objeto de estudo da atriz e pesquisadora.

2.1 O TEATRO DE FORMAS ANIMADAS NO CURRÍCULO MODULAR DE