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1. Rangel, Sonia, 1948 Crítica e interpretação 2 Criação (Literária, artística, etc.) 3 Poesia

1.4 PALAVRA É IMAGEM

O texto dramático ainda é, no geral, a base para o desenvolvimento de um espetáculo teatral. Boa parte desses textos já traz em suas cenas e situações dramáticas, também nas rubricas, as indicações e propostas de visualidade, em especial, para a cenografia. Como já referenciado, é no texto que os profissionais dos elementos visuais buscam informações como fonte primária de inspiração para o desenvolvimento de seus trabalhos. Poucas são as produções que fazem uso dos elementos visuais como ponto de partida para a construção de um espetáculo. É reconhecível que a presença visual do objeto ou do boneco em cena não é suficiente para manter a atenção do espectador, afinal, em cena tudo deve funcionar em uníssono. Um lindo cenário, um figurino impecável, objetos e bonecos bem- acabados podem representar um bom trabalho do artista visual, mas, se não dialogarem com o espetáculo, tornam-se apenas uma bela distração.

Para encontrar respostas e afinidades sobre o quanto palavra é imagem, passei a me debruçar sobre o pensamento de alguns artistas e pensadores do teatro que enfatizam a importância do texto dramático com suas imagens como elemento

de inspiração para seus trabalhos, pois esperava que, com esses artistas, encontraria pistas que revelassem suas escolhas visuais e também aproximações com a visualidade do grupo em estudo, e a especificidade da poética para a cena. Assim, trago, nesta subparte, aproximações com Pamela Howard e Peter Brook, partindo da revelação de Rangel de que sua poética geral tem origem primária nos poemas, ou seja, nas palavras, e é por meio dos poemas que temas e imagens são deflagrados.

A cenógrafa inglesa Pamela Howard (2015) em sua obra O que é cenografia? expõe que revelar o que há por trás do texto e da história, por meio da cenografia, é, para si mesma, uma ambição. Ela compreende que a linguagem é fundamental para o teatro. Defende que a disposição de um espaço potente e belo contribuirá para que o espectador entenda melhor o espetáculo e que as pistas para a construção desse espaço podem estar contidas nas palavras presentes no texto dramático.

Ao descrever seu processo criativo, Howard (2015) propõe que o texto seja lido diversas vezes. Para ela, a primeira leitura deverá ser feita de maneira livre, sem nenhuma ideia prévia, deixando que “as palavras cantem e falem por si mesmas em relação à vida” (p. 62). Cada leitura necessitará ter um objetivo diferente. A leitura inicial, por exemplo, deverá deixar de lado o espaço geográfico proposto pelo autor, pois o cenógrafo-leitor deverá criar seu próprio espaço, numa espécie de mapa em que a história e as personagens se apresentem.

Nessas leituras cuidadosas do texto, clássico ou novo, para teatros com proscênios ou espaços abertos, escuto o som das palavras, a musicalidade do texto, o timbre e a textura da fala, tentando decidir sozinha o que torna aquela peça diferente de qualquer outra; por exemplo a diferença entre uma peça de Ibsen e uma de Beckett. (p. 62).

As palavras, segundo Howard, têm som, e o texto propõe uma musicalidade. Ainda para a cenógrafa, a percepção do som da palavra está bem próxima da percepção da cor. Nesse sentido, quando ela está compreendendo as imagens por meio das palavras, está automaticamente também construindo mentalmente uma escala de cores, numa fusão perceptiva entre palavra, som e imagem.

Em seu processo com o texto, Howard, quando possível, realiza uma leitura em voz alta, na presença dos atores e do diretor, para, juntos, construírem uma lista de ações de cada personagem. Essa lista resulta num storyboard, de desenhos

simples que ilustram o desenvolvimento das ações na peça. Desse storyboard resultará um quadro geral, desenhado numa única folha, seguido de uma planilha com informações sobre cada personagem. A lista também contribui para que o cenógrafo desenvolva uma gênese de cada personagem e, consequentemente, construa um projeto de figurino.

O diretor Peter Brook (2011), ao discorrer sobre uma de suas remontagens do espetáculo A tempestade de Shakespeare, peça que ele afirma conhecer muito bem, revela que, ao final da leitura, pensou na cenografia inspirada num jardim japonês, abandonando todo o aspecto espetacular de sua primeira montagem. “Quando terminei de ler a peça, rascunhei no verso da última página o esboço de um jardim zen, como o de Quioto, onde uma ilha é sugerida por uma rocha e a água por pedrinhas secas” (p. 90).

Após várias tentativas para se chegar a uma cenografia ideal para a peça, Brook é enfático em afirmar que “a própria peça é um desafio que ajuda nesta tarefa. A qualidade da obra e o enigma que encerra fazem dela um juiz implacável” (p. 93). Para ele, o rigor da obra escrita já é suficiente, e coisas supérfluas devem ser descartadas. “No caso de A tempestade, a qualidade do texto é tamanha que qualquer invenção ou adorno parecem desnecessários e até vulgares” (Idem). Mas chama atenção para a tentação das resoluções simplistas, expondo que o texto, em si mesmo, é só um texto. Portanto, faz-se necessário manter o senso crítico, na convicção de que o caminho mais simples, às vezes, é o mais difícil de se chegar.

São aqui apresentadas duas maneiras distintas de se lidar com o texto em busca da melhor resolução visual para um espetáculo de teatro. No caso de Howard, percebemos o encanto em vasculhar o texto em busca de pistas e toda uma carpintaria para se chegar a uma síntese do que a peça necessita para se mostrar visualmente. Em relação a Brook – que não é cenógrafo, mas que, no caso de A tempestade, esteve atuando ao lado da cenógrafa Chloé Obolensky durante todo o processo –, percebe-se a necessidade de retornar ao texto para, junto a ele, interpretar qual a melhor maneira de apresentá-lo visualmente ao público. É possível compreender que as palavras são carregadas de imagens, e cabe a cada um decifrá-las. No caso dos artistas da visualidade, cabe despertar para o valor de se pensar por imagens.

Ao tratar a palavra como imagem, aproximo-me do poeta Manuel de Barros (2015, p. 72) quando escreve que “Imagens são palavras que nos faltaram”, e que a

“poesia é a ocupação da palavra pela Imagem” e “da Imagem pelo Ser”. O poema Despalavra (Ibid., p.117) ilustra bem como, na poesia, se dá a ocupação da palavra pela imagem. Ele expõe como a palavra revela a imagem, enquanto a imagem é revelada pela palavra:

Hoje eu atingi o reino das imagens, o reino das despalavras. Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades humanas. Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades de pássaros. Daqui vem que todas as pedras podem ter qualidades de sapo. Daqui vem que todos os poetas podem ter qualidades de árvore. Daqui vem que todos os poetas podem arborizar os pássaros. Daqui vem que todos os poetas podem humanizar as águas

Daqui vem que todos os poetas devem aumentar o mundo com suas metáforas.

Que os poetas podem ser pré-coisas, pré-vermes, podem ser pré-musgos. Daqui vem que todos os poetas podem compreender o mundo sem conceitos.

Que os poetas podem refazer o mundo por imagens, por eflúvios, por afeto.

Ainda no campo das palavras, outro mecanismo auxiliar reflexivo sobre as visualidades de Os Imaginários foi debruçar-me sobre a noção de espaço e tempo pela via da teoria do cronotopo de Mikhail Bakhtin.

O filósofo, pensador e teórico da cultura europeia Mikhail Bakhtin (1998) apropria-se do termo cronotopo, advindo da matemática, com base na teoria da relatividade (Einstein), para tratar da indissociabilidade do espaço e do tempo na literatura. O termo passa a ser utilizado como uma categoria conteudístico-formal da literatura, para tratar da fusão dos indícios espaciais e temporais. Dessa maneira, “aqui o tempo condensa-se, comprime-se, torna-se artisticamente visível; o próprio espaço intensifica-se, penetra no movimento do tempo, do enredo e da história” (p. 211). Da fusão entre espaço e tempo surge o cronotopo artístico.

O cronotopo, na literatura, é responsável por caracterizar os gêneros, tendo como princípio condutor o tempo. É também pelo cronotopo que a imagem do indivíduo, na literatura, é estabelecida. Bakhtin, ao tratar do romance grego, em especial do romance de “Aventura de provações”, durante os séculos II-VI de nossa era, aponta alguns cronotopos existentes nesses romances: a aventura, a estrada, o mundo estrangeiro, o mar, o encontro, etc.

O conceito de cronotopo ultrapassou o limite da matemática, para a literatura e o cinema e, neste trabalho, passo a aproximá-lo do teatro para, por meio da leitura dos textos dramáticos dos espetáculos de Os Imaginários, investigar o cronotopo base de cada espetáculo, com o intuito de perceber se é possível criar um

paralelo entre o tempo e o espaço apresentados no texto escrito com o espaço da cena.

Quero ainda discorrer sobre a importância da fotografia também como texto, pois considero que é possível atribuir a ela uma capacidade de registar o enquadramento visual de determinado acontecimento num instante do tempo, oportunizando a leitura, no futuro, sobre o fragmento de um instante do passado.