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4 – A compulsão à repetição

Capítulo III – Os limites da representação

III. 4 – A compulsão à repetição

O eu é concebido narcisicamente como uma totalidade. A possibilidade de efração do invólucro que o define como algo coeso representada por um perigo interno, mas sentido como real é projetado ao exterior como angústia de castração. A fim de sustentar essa unidade, o eu se empenha em manter-se constantemente investido de certo potencial energético. É a manutenção desse investimento que pode contrabalancear as tentativas de rupturas provenientes de seu exterior, essa preocupação do eu com sua segurança enquanto integridade remete a uma ameaça de desestruturação pelas forças pulsionais.

Os exemplos apresentados por Freud (1920/2006, op. cit.) – sonhos das neuroses traumáticas, as neuroses de transferência, neuroses de destino e brincadeira infantil – apontam para a presença de uma compulsão à repetição. Em todos podemos notar a reprodução de uma experiência dolorosa, o que dificulta concebê-los como submetidos ao princípio de prazer. Por um lado, os sonhos das neuroses traumáticas se repetem em um esforço para que o eu esteja agora apto a dominar o excessivo e inesperado afluxo de excitações, buscando, então, preservar a vida; por outro lado notamos a presença de uma força que coage na direção da evacuação total da tensão, demonstrando que o fim último não é o de restaurar a vida, mas o retorno à inércia total.

Na verdade, trata-se da ação das pulsões. As pulsões não trabalham em prol da manutenção do equilíbrio psíquico ou do organismo. A pulsão (Trieb) é uma força que coloca o sujeito em movimento e, tem por característica a pressão (Drang) - um impulso avassalador - enquanto a compulsão (Zwang) designa algo imposto ou forçado, que é o resultado de um “conflito pulsional que se instala e submete o sujeito a um cerceamento, impondo-lhe uma direção. O Trieb impulsiona e Zwang força e faz sofrer” (HANNS, 1996, p.108). Desta forma a compulsão à repetição (Wiederholungszwang)13 tem um grau altamente pulsional ao se apresentar como uma compulsão (Zwang), ressaltando uma característica fundamental da pulsão: a insistência.

13 Wiederholen – ir buscar novamente; repetir. Zwang – compulsão, forçado, obrigação, pressão.

No artigo Além do princípio do prazer a expressão wiederholungszwang e a palavra zwang são usadas quase como sinônimos de Drang e Trieb. Segundo Hanns (1996, op., cit.), Freud procura ressaltar o caráter avassalador ao qual o sujeito sucumbe, condenado a realizar a pulsão para além de sua vontade.

O antigo lugar ocupado pelo trauma sexual factual cede espaço para a pulsão, mais especificamente a pulsão de morte. O primeiro modelo do trauma caracterizava-se pela falta de preparo do sujeito frente ao ataque sexual, que não o compreendia devido à tenra idade. A experiência traumática, então, ficava no sujeito como um “corpo estranho”

(FREUD, 1895[1950]/1996, op. cit.), estranho ao eu, incapaz de traduzir tal evento. Em termos energéticos significa que a energia pulsional deste encontro não pode ser ligada pelo eu, o que de fato acontece com os eventos edípicos. O trauma ocorria „a posteriori‟, somente após o advento da puberdade, que provocava a lembrança da experiência sofrida.

Em 1920 o segundo modelo do trauma segue esse padrão do despreparo do sujeito, mas agora, ante o excesso pulsional.

A pulsão, nessa perspectiva, se faz perceber através de traumas, traduzidos por uma tensão que desequilibra a constância energética vigente no eu: “uma pulsão seria, portanto, uma força impelente [Drang] interna ao organismo vivo que visa a restabelecer um estado anterior que o ser vivo precisou abandonar devido à influência de forças perturbadoras externas” (FREUD, 1920/2006, op. cit., p. 160). De acordo com Laplanche (1988), o primeiro trauma, a que Freud se refere, é o nascimento da vida e, não do indivíduo humano – “a primeira pulsão aparecendo no momento em que surge essa vida que é a elevação da tensão em relação ao estado inorgânico nada mais é do que a pulsão de morte” (p. 124).

Essa primeira pulsão tem sua gênese de uma maneira semelhante como à formação da consciência, descrita no “Além do princípio de prazer” (1920/2006, op. cit.). A consciência teve sua origem de uma parte, mais externa, que morre para proteger a parte interna, garantindo a vida; com a pulsão ocorre algo parecido, mas de forma inversa. A semelhança entre ambas é a importância do fator defensivo contra a tensão, implicada na mudança do inerte para a vida. Assim, devido às perturbações externas, cria-se a consciência e, junto a isso, uma tendência a retornar a um estado anterior – a pulsão de morte.

Foi a presença da compulsão à repetição nas análises e neuroses traumáticas que colocou Freud no caminho da pulsão de morte. A partir daí foi possível estabelecer que o objetivo da natureza conservadora das pulsões é alcançar um estado inicial, que todo ser vivo foi obrigado a abandonar, e ao qual deseja retornar, “todo ser vivo morre, ou seja, retorna ao estado inorgânico devido a razões internas, então podemos dizer que o objetivo de toda vida é a morte” (Id., Ibid., p. 161). A tendência da pulsão de morte é o retorno, à inércia, visando anular a vida e voltar ao inorgânico e não a constância tão prezada pelo eu.

Freud, assim, estabelece o vínculo entre pulsão e repetição, e aproxima ambas da radicalidade da noção de inércia, o que vai ser confirmado através da postulação de um masoquismo primário. Apresentada, a partir de 1920, como princípio de Nirvana, Freud retoma do Projeto de 1895 um princípio econômico fundamental para o funcionamento do aparato neuronal: o princípio de inércia. O „princípio de Nirvana‟ (FREUD, 1924/1996) pertence ao domínio da pulsão de morte que, no sujeito, sofre uma transformação pela ação libidinal, tornando-se princípio de prazer e este, por sua vez pela influência do mundo externo em princípio de realidade.

Freud (1920/2006, op. cit.) assimila a pulsão de auto-conservação às pulsões sexuais ou de vida, embora hesite em um primeiro momento e chega a colocar a pulsão de auto-conservação do lado da pulsão de morte. Contudo as pulsões de vida também são conservadoras, uma vez que repetem os caminhos necessários à preservação da vida, buscando a fusão com outro organismo para originar uma nova vida. O que vemos, portanto, em ambas as pulsões deste novo dualismo de 1920 é uma tendência conservadora de retornar, repetir caminhos já traçados:

esse grupo de pulsões (vida) é tão conservador quanto as outras pulsões (morte), pois visam à volta a estados arcaicos da substância viva; mas, de outro ponto de vista, elas são ainda mais conservadoras, já que se mostram particularmente resistentes às forças externas. Além disso, também são conservadoras em um sentido bem amplo, na medida em que preservam a vida por períodos mais longos (Id., Ibid., p. 163).

Junto ao dualismo da nova tópica, há um outro importante: a polaridade revelada pelos investimentos objetais – amor (ternura) e o ódio (agressão). É a partir do eu que os objetos são investidos, o masoquismo ou o redirecionamento da pulsão contra o próprio eu seria um retorno a uma fase anterior desse intricamento pulsional dirigido para os objetos.

Foi o sadismo (FREUD, 1915/2006, op. cit.) direcionado aos objetos que permitiu comprovar que tanto o amor como a destruição podem recair sobre o mesmo objeto e, também podem voltar-se para o eu.

Freud (1924/1996, op. cit.) desenvolve esta questão em “O problema econômico do masoquismo” apontando o eu como primeiro objeto da pulsão de morte. Essa questão nos interessa, especialmente, porque o masoquismo apresenta-se como um fenômeno no qual o princípio de prazer não está em ação. “Se o sofrimento e o desprazer podem não ser simplesmente advertências, mas, em realidade, objetivos, o princípio de prazer é paralisado – é como se o vigia de nossa vida mental fosse colocado fora de ação por uma droga” (p.

117).

O eu somente poderá se formar enquanto unidade se a pulsão de morte for ligada, caso contrário nunca chegaria a existir. Freud postula, assim, um masoquismo primário, estado no qual a pulsão de morte é dirigida para o próprio sujeito, mas ligada pela libido em um intricamento pulsional. Este intricamento deve ser pensado inicialmente a partir do laço libidinal entre mãe e filho, pois é a mãe quem se encarrega de ligar a pulsão de morte pela libido investida na criança, já que a criança não pode fazer isso por si mesma. Origina-se daí, a partir do outro, um núcleo masoquista primário/originário no eu, que asOrigina-segura ao eu a possibilidade de receber e guardar determinada quantidade de energia.

A possibilidade de tolerar certa excitação assegurada pelo masoquismo primário permite o desenvolvimento da vida psíquica. Esse núcleo masoquista permite um eu em estado ligado (constantemente investido) e como reservatório libidinal. Se não fosse um masoquismo original qualquer tensão seria sentida como insuportável pelo eu. De certa forma, encontra aqui seu eco, a dor apontada por Derrida (1995, op. cit.) como necessariamente presente na formação dos traços mnêmicos nas barreiras de contato no Projeto de 1895, a capacidade de suportar uma certa tensão possibilita reter determinada quantidade energética necessária para a manutenção da vida. São as excitações despertadas pela mãe no corpo do bebê que possibilitam a construção do corpo pulsional e de uma imagem corporal unificada com a qual o bebê vem a se identificar, fundando um eu.

Aubert (1996, op. cit.) propõe que uma experiência de dor seria paradigmática do narcisismo e da constituição da ideia de corpo próprio. A dor permite a ligação de certas representações, garantidas por percepções externas às sensações e afetos (internos). Tal ligação funcionaria como experiência de unificação na vida do aparelho psíquico, a partir da qual ele vem aceder a uma auto-percepção de sua organização. Assim sendo, para a autora, a dor seria uma forma depurada do sentimento de ser, já que possibilita a emergência da consciência de um eu-corporal.

A perda do seio (na mesma perspectiva da saída de cena da mãe no Fort-Da) é que permite o eu-realidade nascer, garantindo para o sujeito uma distinção em relação ao objeto. Já o narcisismo é a potencialização imaginária do eu-prazer, é o ideal auto-suficiente, regido pelo princípio de prazer. A perda do objeto original vai funcionar como prova de uma realidade externa. A carência de satisfação, proveniente da ausência do objeto, obriga, aos poucos, o “sistema fechado” no qual o bebê se encontra, a reconhecer a presença de uma alteridade/exterioridade. A dor presente em toda experiência de perda objetal será marcada pela repetição, pois o objetivo da prova de realidade é reencontrar o

objeto original de satisfação perdido. Frente a esse desamparo pelo qual toda perda objetal lança o sujeito, se apresenta a noção de trauma.

Nesse sentido Barrois (1998, op. cit.) afirma que o trauma se faz acompanhar da sombra do desamparo, explicitado através do silêncio que segue os sobreviventes de experiências limites, silêncio apontado por Ferenczi na forma do irrepresentável e, sobretudo, por Freud com a introdução do conceito de pulsão de morte em 1920. De forma que o trauma, revelado cruamente pela compulsão à repetição toca os limites do analisável.

A compulsão à repetição revela mais claramente a pulsão de morte, destacando a presença no eu de uma energia diferente da libido. Nesse caso o princípio de prazer seria uma tendência, como destacamos no início do capítulo, a serviço de uma função mais ampla e primitiva – fazer com que o aparato psíquico fique livre de toda energia.

Assim sendo a compulsão a repetição coloca um limite à rememoração e ao método interpretativo centrado na idéia de representação. Somos sujeitos interpretativos devido à capacidade egóica de promover a ligação da energia pulsional em representações, permitindo que uma trama de traduções sucessivas possam se constituir. A compulsão à repetição levanta uma outra face do aparato psíquico fora do campo representacional, ainda que em alguns casos possa contribuir para sua instauração. Nas análises foram notadas situações nas quais os pacientes agem a dor, esclarece Knobloch (1998, op. cit.) “não por formação de compromisso, mas por uma impossibilidade de representação, por um excesso pulsional em que o trabalho do pensamento não poderá acontecer” (p. 81).