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A repetição e seus destinos na obra de Freud

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Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica

A repetição e seus destinos na obra de Freud

Diego Frichs Antonello

2011

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UFRJ

A repetição e seus destinos na obra de Freud

Diego Frichs Antonello

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós- graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Teoria Psicanalítica.

Orientadora: Regina Herzog

Rio de Janeiro

Fevereiro/2011

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A repetição e seus destinos na obra de Freud

Diego Frichs Antonello

Orientadora: Regina Herzog

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos à obtenção do título de Mestre em Teoria Psicanalítica.

Aprovada por:

____________________________________

Profa. Dra. Regina Herzog

____________________________________

Prof. Dr. Ricardo Salztrager

____________________________________

Profa. Dra. Maria Isabel de Andrade Fortes

Rio de Janeiro

Fevereiro/2011

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Antonello, Diego Frichs

A repetição e seus destinos na obra de Freud.

Diego Frichs Antonello. Rio de Janeiro: UFRJ/IP, 2011 120 f.; 29,7 cm

Orientadora: Regina Herzog

Dissertação (Mestrado) – UFRJ/IP/Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, 2011.

Referências Bibliográficas: f. 116-120.

1. Compulsão à repetição. 2. Trauma. 3. Dor. 4. Psicanálise. 5.

Dissertação (Mestrado). I. Herzog, Regina. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro/ Instituto de Psicologia/ Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica. III. Título

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Dedicatória

À Patrícia Paraboni e Marilú.

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Agradecimentos

A Regina Herzog pelo acolhimento, gentileza, paciência e aposta neste trabalho. Contar com sua orientação foi fundamental para a realização desta dissertação.

À professora Isabel Fortes e ao professor Joel Birman pelas valiosas contribuições no exame de qualificação.

À CAPES pelo financiamento desta pesquisa.

Aos professores das disciplinas cursadas durante o mestrado, pelas enriquecedoras contribuições.

Aos companheiros de equipe de pesquisa e do NEPECC.

Aos demais amigos que foram muito importantes durante esse período, em especial Maiquel, Camila, Marcos e Raquel.

À Marilú pelo incentivo, apoio e amizade fundamentais para chegar até aqui.

À minha esposa, Patrícia Paraboni, pelo amor e apoio recebidos.

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Resumo

A repetição e seus destinos na obra de Freud

Diego Frichs Antonello

Orientadora: Regina Herzog

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Teoria Psicanalítica.

O objetivo da presente dissertação é realizar um mapeamento do conceito de repetição na obra freudiana. Buscaremos mostrar como a repetição atravessa o pensamento freudiano correlacionando-a com os conceitos fundamentais da psicanálise.

Iniciamos com o Projeto de 1895, articulando a repetição com a vivência de dor e a vivência de satisfação, mostrando, no primeiro caso, indícios de uma repetição dolorosa fora do princípio de prazer e, no segundo o fundamento do psiquismo da primeira tópica balizado pelo princípio de prazer.

No segundo capítulo veremos como a repetição ganha o estatuto de conceito em 1914, onde é revelada pela transferência como o retorno do recalcado.

Frente a complicações teóricas e novos indícios clínicos, Freud vai problematizar a ideia do princípio de prazer como exclusivo no funcionamento do psiquismo, passando a conferir uma importância capital à compulsão à repetição em 1920.

A partir daí, vários temas presentes no Projeto de 1895 são retomados, dando um lugar de destaque à questão da dor e do trauma, conforme será indicado no último capítulo.

Palavras-chaves: Repetição – Dimensão Representacional – Dor – Trauma – Psicanálise.

Rio de Janeiro

Fevereiro/2011

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Abstract

Repetition and its destinies in Freud's work

Diego Frichs Antonello

Tutor: Regina Herzog

Abstract of the Dissertation presented to the Post-graduation Programme of Psychoanalytic Theory, Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, as a part of the requisite for obtaining the Master's Degree in Psychoanalytic Theory.

The objective of this dissertation is to achieve a mapping of the concept of repetition in Freud‟s work. We try to demonstrate how repetition crosses the Freudian thinking, relating it to the fundamental concepts of psychoanalysis.

We begin with the “Project for a scientific psychology” (1895), articulating repetition with the experience of pain and the experience of satisfaction, showing, in the first case, hints of a painful repetition beyond the pleasure principle, and in the second case, the psyche‟s ground in the first topic, marked by the pleasure principle.

In the second chapter we‟ll see how repetition gains the status of concept in 1914, where it is revealed by the transference as the return of the repressed.

Facing theoretical difficulties and new clinical hints, Freud will discuss the idea of the pleasure principle as being exclusive in psychical functioning, and giving crucial importance to repetition compulsion in 1920.

Since then many themes from 1895 “Project” were studied again, emphasizing the issue of pain and trauma, as we will show in the last chapter.

Keywords: Repetition – Representation – Pain – Trauma – Psychoanalysis.

Rio de Janeiro

February/2011

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Sumário

Introdução

...10

Capítulo I – O Projeto de 1895 e a repetição

...15

I.1 – O estatuto do Projeto de 1895 na obra freudiana...16

I.2 – O aparato neuronal: concebido para dominar as excitações...20

I.3 – A repetição e a facilitação...23

I.4 – O problema da repetição da dor...30

I.5 – O tempo da repetição...35

I.6 – A vivência original de satisfação e o abandono da vivência de dor...41

Capítulo II – O retorno do recalcado – repetição do sexual

...45

II.1 – A transferência e a resistência...46

II.2 – A repetição do sexual e presentificação do desprazer...52

II.3 – O caso Dora – uma lição clínica...56

II.4 – A repetição e a rememoração...60

II.5 – A pulsão e a repetição...64

II.6 – A passagem ao ato e os limites do princípio de prazer...69

Capítulo III – Os limites da representação

...76

III.1 – A repetição do desprazer...77

III.2 – Redefinindo o trauma...79

III.3 – O eu em ruínas...86

III.4 – A compulsão à repetição...89

III.5 – O limite da representação...93

III.6 – Como proceder frente ao irrepresentável...99

Considerações finais

...107

Referências Bibliográficas

...116

(10)

A presente dissertação é um estudo acerca da repetição na obra de Freud. O objetivo é realizar um mapeamento do conceito de repetição, buscando apontar seu desdobramento, impasses e relevância no desenvolvimento da elaboração teórico-clínica freudiana. Desde o início dos seus escritos Freud procura estabelecer um diálogo entre as observações clínicas com a teoria, ou melhor, a teoria aos poucos vai sendo tecida a partir das descobertas e confirmações das hipóteses levantadas através do tratamento dos casos de neurose. Desta maneira, estudar a repetição na obra de Freud é tentar compreender o movimento que este conceito suscitou, por meio da clínica, no pensamento freudiano. Através dos exemplos clínicos que percorrem vários momentos de sua obra, notamos a presença maciça da repetição, tornando-se uma peça fundamental no direcionamento, na construção e articulação dos demais conceitos psicanalíticos.

A questão da repetição pode ser articulada com uma gama de figuras e conceitos, tais como: vivência de dor, inconsciente, pulsão, representação, transferência, resistência, dentre outros. No presente trabalho estes serão abordados na medida em que possam balizar o nosso entendimento acerca da repetição. Assim, o eixo de leituras está concentrado, principalmente em textos como: Projeto para uma psicologia cientifica (FREUD, 1895[1950]/1996), os artigos sobre técnica (Id., 1912-14/1996), os artigos metapsicológicos (Id., 1914-1915/1996) e o Além do princípio de prazer (Id., 1920/2006).

Junto a isso buscamos suporte em comentadores da obra de Freud que se dedicam ao mesmo tema.

Destacaremos três momentos distintos em relação ao aparecimento da repetição. No primeiro, o Projeto de 1895 um texto apócrifo, negado pelo seu autor, mas que traz uma importante contribuição a respeito da repetição. A vivência de dor nos dá alguns indícios de um processo repetitivo desprazeroso que continua a ocorrer até que o eu possa dominar toda a energia que rompeu o escudo protetor do aparato neuronal. Para tanto a cada nova repetição a energia indomada (processo primário), isto é, que não foi imediatamente mediada pelo eu, tem uma parcela dominada pelos contra-investimentos egóicos. Essa repetição ocorre até que a energia livre seja subsumida ao processo secundário, mesmo que tais repetições sejam dolorosas.

A vivência da dor traz um problema de difícil solução para Freud – porque o aparato neuronal, que procura ficar longe de tensões, repete uma vivência de dor? Freud, neste

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período, não consegue resolver o impasse. A dor, além disso, traz uma ameaça de regressão ao aparato neuronal, uma vez que a passagem de grandes quantidades pelos neurônios psi () destroem as barreiras de contato, característica que os diferenciam dos neurônios phi (). Frente a essas dificuldades, dentre outras, Freud abandona o Projeto de 1895. Abandono que dará à questão da repetição da vivência dolorosa uma longa incubação até ser novamente evocada em 1920 no artigo que marca a virada tópica – Além do princípio de Prazer, no qual temas referentes ao Projeto de 1895 são retomados.

A publicação da Interpretação dos Sonhos (FREUD, 1900/1996) marca o abandono da vivência de dor em prol da vivência de satisfação como fundamento de um aparato psíquico regido pelo princípio de prazer. A partir deste texto Freud postula o princípio de prazer com fundamento do psiquismo. Com esse princípio como regulador do funcionamento das atividades psíquicas há uma fuga do estímulo e as representações desprazerosas têm de antemão seu acesso barrado à consciência. De forma que não mais é mencionado um funcionamento repetitivo que surge como consequência da vivência de dor. Nesta perspectiva, na concepção de aparato psíquico de 1900 não há lugar para um tipo de funcionamento primário que conduz a reativação de experiências desprazerosas.

Sobre esse assunto Caropreso e Simanke (2006) afirmam que os processos primários, a partir de 1900, possuem a capacidade de inibir a ocupação destas representações. A partir daí Freud irá priorizar o conceito de defesa do eu contra desejos inconscientes motivados pelas pulsões sexuais, onde o conceito de recalque, formação de compromisso, retorno do recalcado ganham destaque no que diz respeito à repetição.

Em um segundo momento, abordaremos a repetição articulada com conceitos fundamentais da psicanálise: inconsciente, recalque, transferência e pulsão. O caso Dora nos permite destacar a presença de uma repetição proveniente de desejos edípicos há muito recalcados, repetição que ocorre via transferência na qual o analista é identificado com uma outra pessoa da vida do analisando. Por meio da transferência é possível observar, no período de 1900 até 1920, a repetição maciça do sexual, observada na clínica como o retorno do recalcado.

Buscamos, assim, destacar a articulação entre repetição e transferência, que seguirá toda reflexão freudiana sobre a técnica no curso das análises. O retorno do recalcado marcará justamente à volta daquilo que não é possível recordar, retornando sob efeito da dimensão amorosa que faz parte do jogo transferencial. O analista é tomado como objeto

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da fantasia do paciente, fornecendo, deste modo, condições ideais para que a repetição dos conteúdos recalcados ocorra em uma mise en scène.

Finalmente, no artigo “Recordar, repetir e elaborar” (FREUD, 1914/1996) a repetição ganha um estatuto de conceito. Freud é forçado a reconhecer a repetição incorporada à relação transferencial como um modo do paciente recordar, não em palavras, mas em atos. No lugar de construir uma narrativa verbal o paciente inicia uma dramatização/atuação com o analista, envolvendo o desejo sexual que teve a descarga barrada pelo eu. Nesse sentido um eficiente manejo transferencial é a solução freudiana para impedir a repetição e possibilitar preencher as lacunas da memória provocadas pelo processo de recalcamento.

A partir de 1915 inicia-se uma predominância do pulsional sobre o campo do representacional, como decorrentes dos impasses teórico-clínicos com relação à dominância do princípio de prazer no psiquismo. No âmago desta problemática a repetição começa a mostrar a insuficiência do método interpretativo, explicitado por casos clínicos difíceis, nos quais nota-se a presença de uma forma de repetição diferente do retorno do recalcado. A constatação de uma repetição que excede o acting-out, mostrando-se muito mais como uma espécie de explosão energética sem mediação egóica, a qual o paciente não consegue fazer associações que visem trazer à tona conteúdos representacionais reprimidos, balançam a hegemonia de uma teoria de aparato psíquico sustentado pelo princípio de prazer.

Em um terceiro momento da presente dissertação mostraremos como a postulação da segunda tópica marca essa dificuldade, caracterizada por uma falha em dominar o excesso pulsional. A repetição retorna à pena de Freud com grande força a partir de 1920, agora sob a forma de uma compulsão à repetição, diferindo conceitualmente da repetição apresentada em 1914. Contudo, para ser mais preciso, cabe lembrar que ela já se encontra presente em 1919 no artigo “O Estranho”, no qual há uma expansão do conceito de repetição e a prefiguração de um algo que escapa a dominância do princípio de prazer, e que será desenvolvido em 1920.

Pressionado pelo conceito de narcisismo (que colocou em cheque o dualismo pulsional da primeira tópica), o excesso pulsional, a repetição (que apontava para uma descarga sem simbolização) e o aparecimento de casos mais graves de neuroses provenientes da primeira grande guerra, Freud inicia uma reformulação tópica. Tal medida coloca um fim na dominância estrita do princípio de prazer enquanto regulador do

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funcionamento do aparato psíquico. Temos na figura da compulsão a repetição a presença do fator energético que não pôde ser assimilado pelo aparato devido ao seu excesso; nesta perspectiva a compulsão à repetição é colocada em ação como medida defensiva para que o excesso pulsional seja de alguma forma contido e tal energia possa ser dominada.

No artigo Além do princípio de prazer (1920/1996) Freud retoma vários conceitos do Projeto de 1895. Após longos 25 anos, a repetição dolorosa é retomada sob a forma de uma compulsão à repetição, em outro nível conceitual, que denota um funcionamento do aparato psíquico além do princípio de prazer. A energia livre (indomada) tal como no Projeto de 1895, não tem mais a possibilidade de inibir em sua origem processos desprazerosos.

Para tanto, conforme veremos neste capítulo, há uma redefinição da teoria do trauma, que retoma alguns aspectos da teoria da sedução. A compulsão à repetição coloca em evidência a presença de uma energia que não pode ser dominada e, por isso, é irrepresentável; em outros termos, incapaz de ser simbolizada pelo sujeito. Simbolizar significa que a energia pulsional foi amarrada em representações, mas para isso é preciso que o eu, reservatório libidinal, tenha energia quiescente para fazer frente à energia que o invade. Toda vez que ocorre uma falha em dominar o excesso pulsional inicia-se um processo repetitivo, que não envolve qualquer possibilidade de prazer. Esse processo é denominado por Freud de compulsão à repetição.

A repetição funcionou como um motor para as reflexões de Freud, devido aos questionamentos que suscitou, percorrendo sua obra, mesmo que de forma silenciosa, nos momentos mais marcantes da formulação do arcabouço teórico da psicanálise. A compulsão à repetição evidenciará quão sensível é o lugar do sujeito, constituído narcisicamente, diante dessa força que o obriga a repetir contra sua vontade; é precisamente por essa obrigação que o sujeito reencontra a impotência dos primeiros anos de vida. Para discutir a questão da impotência a qual o trauma lança o sujeito, impossibilitado de agir ante o impacto do excesso pulsional, buscamos auxílio em Walter Benjamin e comentadores de sua obra. A este respeito Benjamin refere uma narrativa fragmentária, muito diferente da narrativa tradicional, no que tange aos sobreviventes dos acontecimentos traumáticos.

Segundo Seligmann-Silva (2008), nesta narrativa fragmentária encontramos o desejo de renascer, que consiste em um trabalho de religamento ao mundo, a que podemos remeter a manifestação da pulsão de vida. Mesmo assim, a narrativa proposta por

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Benjamin denota a dificuldade de encontrar na linguagem uma forma de traduzir o excesso vivido, como se as palavras ficassem aquém da realidade experienciada; é aí que a imaginação é chamada em auxílio do simbólico, “o trauma encontra na imaginação um meio para sua narração” (Id., Ibid., p. 70). Tendo em vista estas questões evocamos a figura do narrador caracterizado por Walter Benjamim como sucateiro, o qual em meio às sucatas recolhe os cacos, fragmentos para formar um todo organizado. Deste modo remetemos a Freud (1937/1996), em uma alusão muito próxima do narrador sucateiro, na qual afirma que a tarefa do analista, frente à dificuldade do paciente em traduzir o traumático em palavras, se aproxima de arqueólogo escavando fragmentos do passado, ou seja: é preciso construir aquilo que não pode encontrar expressão pelas vias normais de narração.

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Neste capítulo temos como objetivo destacar que a ideia de um excesso que escapa ao princípio de prazer já se encontrava presente na vivência de dor do Projeto de 1895.

Neste texto pré-psicanalítico a dor aparece como uma falha dos dispositivos de proteção do aparato neuronal e aponta para um processo que mesmo envolvendo o desprazer continua se repetindo, de acordo com a indicação de Caropreso & Simanke (2006). Dessa forma propomos mostrar como a repetição, mais especificamente a repetição da experiência dolorosa, já faz uma importante questão para temas que serão tratados somente 25 anos mais tarde no artigo “Além do princípio de prazer” (FREUD, 1920/2006). Para tanto vamos começar por situar o lugar que o Projeto ocupa no arcabouço teórico da psicanálise, uma vez que esse texto foi desconsiderado por Freud, sendo publicado apenas nos anos 50, mais de uma década após sua morte.

Veremos que enquanto a vivência de dor nos coloca na trilha da compulsão à repetição, a vivência de satisfação nos coloca na pista de um processo repetitivo que envolve a busca de prazer. Entendemos que essas duas vivências se configuram como fatores de grande relevância para a questão da repetição, tema dessa dissertação. Nesta perspectiva o resíduo da vivência de satisfação é chamado estado desiderativo e visa reproduzir uma identidade perceptiva, ou seja, repetir a vivência de satisfação original, que envolveu um decréscimo da excitação e foi sentido como prazer. É a vivência de satisfação que ganha relevo a partir de 1900 com a publicação da „Interpretação dos sonhos‟, neste artigo Freud retoma o exemplo descrito no Projeto: o choro do bebê, causado pela fome, é apaziguado pelo cuidador; e quando volta a ter fome o aparato procura repetir a experiência primária de satisfação, na qual obteve prazer através da descarga das excitações.

Freud se serve da vivência de satisfação para fundamentar a tese de que todo sonho é uma realização de desejo. A partir disso a vivência de dor é desconsiderada e relegada ao limbo, sendo retomada em 1920 no artigo „Além do Princípio de Prazer‟ ao tratar da compulsão à repetição. Entretanto repetição da vivência de dor trouxe um problema de difícil resolução no Projeto, obrigando Freud a efetuar um “malabarismo” teórico para explicar como o aparato neuronal dará conta do montante de excitação envolvendo esse

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processo; além disso esta vivência estaria no cerne dos pesadelos que não está bem diferenciado dos sonhos de angústia na „Interpretação dos Sonhos‟ (Id., 1900/1996).

I.1. O estatuto do Projeto de 1895 na obra freudiana.

O „Projeto para uma psicologia científica‟ (Id., 1895[1950]/1996, op. cit.) é uma tentativa de trazer para o plano científico o que se apresentava na clínica pré-psicanalítica em seu início vienense, especialmente nos estudos realizados sobre a histeria. Nesta perturbação psíquica os sintomas se manifestavam, principalmente, sob a forma de ideias excessivamente intensas “nas quais (...) a característica quantitativa emerge com mais clareza do que seria normal” (FREUD, 1895[1950]/1996, op. cit., p. 347).

A época que antecede a escrita do Projeto favoreceu a Alemanha como lugar propício para pesquisas psicológicas. Neste país, recém unificado em 1870, a ciência incluía inúmeras áreas de conhecimento desde fonética até arqueologia, entre outras, permitindo aos pesquisadores alemães aplicar seus estudos utilizando-se dos saberes de vários campos na pesquisa da vida mental. Segundo Schultz & Schultz (1981) o início do século XIX foi seguido de uma onda de reformas educacionais nas universidades alemãs.

Surgia um novo tipo de instituição, bastante diferente da clássica universidade européia, tendo como propósito principal a liberdade acadêmica e a pesquisa. “Os alunos podiam escolher os cursos e não tinham um currículo rígido como estorvo. Essa liberdade também se estendia à consideração de novas ciências como a psicologia” (Id., Ibid., p. 60-61).

No centro dessa efervescência cultural encontrava-se Freud, que utilizou conceitos de várias áreas tais como a medicina, biologia, fisiologia e física para redigir o manuscrito de 1895. Nesse esboço Freud nos apresenta um aparato neuronal fantástico, que ultrapassa a finalidade de promover uma psicologia como ciência natural propósito que estampa os primeiros parágrafos do texto.

Tendo em vista essa finalidade a posição adotada por Freud no Projeto é a marca do Zeitgeist corrente na metade do século XIX, ou seja, um embate “entre as ciências do espírito ou morais (Geistwissenschaften), que visam compreender, e as ciências naturais (Naturwissenschaften) que procuram explicar” (GABBI Jr., 2003, p. 19). Freud busca apresentar empiricamente o funcionamento da mente humana de acordo com uma descrição baseada, principalmente, na física e fisiologia de sua época. Embora suas elaborações transcendam o modelo neurológico corrente e nem sempre fique restrito ao

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modelo científico, esse ir além da “psicologia como uma ciência natural” faz com que o Projeto traga uma importante contribuição metapsicológica e contenha alguns germens de conceitos que serão retomados e desenvolvidos posteriormente.

Freud foi influenciado por diversos autores, dentre eles cabe citar Gustav Theodor Fechner, que propunha uma relação quantitativa entre mente e corpo. Esse autor procurou solucionar a questão do vínculo mente/corpo através da analogia quantitativa entre uma sensação mental e um estímulo material. Freud também trabalhou no laboratório de pesquisas neurológicas de Theodor Meynert, seu professor de neuro-anatomia na Universidade de Viena. A esse propósito Garcia-Roza (1991) indica que Meynert se encontrava ligado a tradição cientificista e positivista que remonta, através de Fechner, a Herbart. Este último buscava uma abordagem matemática da psicologia, defendendo a ideia de uma psicologia baseada na experiência científica de caráter quantitativo. “Esta última característica será retomada por Fechner e transformada por Freud, na proposta inicial do Projeto de 1895” (Id., Ibid., p. 74).

Em meados de 1886, Freud viajou à Paris para exercer a função de neuro-patologista na Salpêtrière sob o comando de Jean-Martin Charcot, um dos mais renomados clínicos franceses que alcançou sucesso no terreno da psiquiatria na segunda metade do século XIX. Foi durante esse estágio, impulsionado pelas descobertas de Charcot, que Freud descobre a histeria. Tal doença impunha aos psiquiatras uma grande dificuldade para circunscrever suas causas anatomo-patológicas. Por esse motivo Land (1993) considera que a histeria contrariava um dos principais paradigmas da época: a causalidade. Os sintomas histéricos contrariavam o método anatomo-clínico, pois não havia relação entre a entidade nosológica e uma lesão corpórea visível. Assim a histeria foi tachada como uma simulação, ficando fora do mundo científico e da nosologia psiquiátrica durante boa parte do século XIX.

Nosso objetivo, com essa exposição é o de ressaltar que Freud cresceu em um ambiente fisiológico, marcado pelo modelo da causalidade. Esse modelo vigorava no meio científico desde o século XVIII, se expressando pela ideia de que toda lesão era a garantia empírica que confirmava a existência de uma entidade nosológica, se havia um sintoma a causa remetia a algum mau funcionamento de um tecido ou órgão do corpo. Dentro desse quadro a histeria deixava muito a desejar.

Charcot trouxe a histeria para o interior da nosologia psiquiátrica, mas isso não significa uma ruptura com a tradição vigente; o que ele fez foi encontrar um ponto de

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fixação exterior (no corpo do histérico), que pudesse assegurar a análise dos sintomas, garantindo a inauguração “da entidade nosológica histérica (...). Este ponto de fixação espacial foi encontrado na categoria renovada do psíquico, tomado como uma função do cérebro” (Id., ibid., p. 15). Com isso Charcot remaneja a localização da área de lesão e concebe uma nova organização espacial. Assim apoiado na técnica hipnótica, a qual era eficaz em recriar e suspender os sintomas histéricos, Charcot consegue estabelecer um acesso ao lugar entendido como psíquico. Notemos que a idéia de lesão é mantida, pois se tornava claro que era a nível das representações, em um sistema nervoso fisiologicamente alterado, que se devia procurar o fenômeno; a originalidade de Charcot foi encontrar um

“lugar” para o psíquico alcançado através do método hipnótico mantendo-se, portanto, dentro do padrão científico corrente.

Conforme relata Gay (1989) foram os avanços realizados nas pesquisas de Charcot acerca da histeria tanto em homens (o que já era uma grande novidade) como em mulheres e o resgate da hipnose, frequentemente usada pelos charlatães, transformando-a num tratamento para as doenças mentais, que a classificaram como uma verdadeira enfermidade. Tudo isso impressionou o jovem Freud de tal modo que o afastou do microscópio e da neuropatologia, nas seis semanas em que trabalhou no laboratório patológico do mestre francês.

Desta maneira podemos compreender melhor a frase que abre o texto do Manuscrito:

“prover uma psicologia que seja uma ciência natural: isto é, representar os processos psíquicos como estados quantitativamente determinados de partículas materiais especificáveis, (...) tornando-os livres de contradição” (FREUD, 1895[1950]/1996, op. cit., p. 347). Essa frase carrega a influência do cientificismo da época e contém uma herança das vivências na Salpêtrière e das pesquisas como neuropatologista. Neste sentido pesa sobre o Projeto, tanto a expectativa de Freud em estabelecer um lugar na anatomia cerebral para o psíquico, como uma ruptura com a ordem causal-anatômica, conseguindo visualizar, dentro do saber contemporâneo vigente, o psíquico “como uma espécie de materialidade, que podia possuir a mesma dignidade de avalista da verdade que a dimensão orgânica”

(LAND, 1993, op. cit., p. 17). Desta forma o psíquico seria concebido como uma espécie de “tecido nervoso”, acessível ao pesquisador através do método hipnótico, técnica da pressão na testa, interpretação dos sonhos – técnicas que atribuíssem certa positividade ao seu acesso e pudessem produzir material clínico para conferir legitimidade a esse empreendimento.

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Foi durante os meses de setembro e meados de outubro de 1895 que o texto do Projeto ganhou forma, embora grande parte dele tivesse sido redigido durante a viagem de trem de Berlim à Viena, após Freud visitar seu amigo Wilhelm Fliess. Nesse período Freud, tomado de uma febril criatividade, coloca no papel sua “Psicologia para Neurólogos”; a troca de correspondência com Fliess atesta, inicialmente, a euforia de uma grande descoberta. No entanto, em novembro toda euforia desaparece, dando lugar à frustração e muitas dúvidas sobre as ideias propostas no texto: “ele se sentia como deve se sentir um explorador que apostou tudo o que tinha numa promissora trilha que, ao final, não leva a lugar nenhum” (GAY, 1989, op. cit., p. 87).

Frente a isso o Projeto é relegado ao esquecimento por seu autor e, só veio ao conhecimento do público em 1950, 55 anos após sua redação. Nesse meio tempo todo edifício teórico da psicanálise havia sido construído sem levá-lo em conta. O Projeto permaneceu conhecido apenas por Fliess e muito depois por Marie Bonaparte, ou seja, esse texto foi excluído do conhecimento até dos discípulos mais chegados de Freud.

O manuscrito tornou-se parte integrante das obras psicológicas de Freud publicadas graças aos esforços de Marie Bonaparte, princesa da Grécia e Dinamarca. Na verdade o manuscrito passou por uma pequena aventura antes de chegar às mãos de sua salvadora.

Toda correspondência trocada entre Freud e Fliess foi vendida pela esposa de Fliess ao livreiro Reinhold Stahl. Informada que as cartas estavam com o livreiro, Marie Bonaparte as compra deparando-se com esse texto inédito. Freud ao saber que sua ex-paciente estava de posse do Projeto tenta reavê-lo de toda forma, mas ele permanece seguro nas mãos da princesa que havia passado apuros em manter o manuscrito a salvo da Gestapo, a qual já tinha queimado, em praça pública, os livros de Freud e de muitos outros autores.

O dia 10 de maio de 1933 marcou o auge da perseguição dos nazistas aos intelectuais, principalmente aos escritores. Pilhas e pilhas de livros arderam nas praças de várias cidades alemãs. Os nazistas colocavam em ação a chamada “limpeza da literatura”.

Freud, Albert Einstein e Thomas Mann foram alguns dos intelectuais perseguidos que tiveram seus escritos queimados pelo terceiro reich, por serem considerados ofensivos aos padrões impostos pelo regime nazista.

De acordo com Garcia-Roza (1991, op. cit.), o fato de Freud abandonar o Projeto de 1895 concede a este texto um estatuto peculiar em relação ao restante da obra. Neste apócrifo existem vários elementos conceituais importantes, que serão retomados, aos poucos, conforme o avanço da trama conceitual de Freud: ideias como a de “tela protetora

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(proteção anti-estímulo), ou ainda da noção de ligação (Bindung)” (Id., Ibid., p. 70) e a questão da vivência de dor, que nos coloca frente a um problema da repetição da dor.

Todos serão retomados após 25 anos, tendo a compulsão à repetição como peça chave que leva Freud a reorganizar sua teoria e apresentar: o conceito de pulsão de morte. Sem contar ainda, um breve esboço de sua teoria dos sonhos, uma genealogia do eu, o caso Emma que exemplifica o „a posteriori‟ e a primeira teoria do trauma, entre outros importantes conceitos. De forma que nos parece pertinente usar o Projeto como uma fonte de pesquisa e traçar paralelos com outros textos que nos são caros para tratar da repetição na obra de Freud.

I.2. O aparato neuronal: concebido para dominar as excitações

No Projeto de 1895 Freud postula um princípio fundamental e originário de toda atividade nervosa: o princípio de inércia, segundo o qual a tendência do aparato neuronal é libertar-se de toda excitação que lhe chega; “Um sistema nervoso primário se vale dessa quantidade adquirida, para descarregá-la nos mecanismos musculares (...) desse modo fica livre de estímulos. Essa descarga representa a função primária do sistema” (FREUD, 1895[1950]/1996, op. cit., p. 348). A esta função soma-se outra, a função secundária, na qual o aparato procura conservar as vias de descarga que lhe permitem afastar-se das fontes de excitação. Haveria então, além da tentativa de livrar-se de toda excitação, uma fuga do estímulo.

Contudo esta fuga não é efetiva com relação às excitações endógenas das quais o organismo não pode atuar de forma evasiva como o faz com os estímulos externos. Tais excitações têm por características serem constantes e imperativas; se confirmando como os motivos das grandes necessidades: fome, respiração e sexualidade. Estas necessidades são satisfeitas por meio de uma ação específica e para realizá-la é preciso um refinamento no processo de descarga.

Nessa perspectiva os estímulos endógenos imporiam ao aparato neuronal a substituição do princípio de inércia pela tendência a manter a quantidade neuronal constante, em um nível mínimo necessário para a ação específica ser realizada. A estrutura do sistema neuronal elaborada por Freud teria como finalidade manter afastada a quantidade, enquanto sua função principal seria descarregá-la quando o nível constante da energia do aparato fosse alterado, buscando voltar sempre a um ponto de equilíbrio. Em

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outros termos é preciso manter a quantidade em um mínimo aceitável e constante, livre de oscilações, evitando o acúmulo energético e o consequente desprazer.

Cabe ressaltar que no Projeto (Id., Ibid.) Freud utilizou “estimulações endógenas” (p.

348), como termo precursor do conceito de pulsão, para designar uma fonte de estimulação interna e constante, que impulsiona o aparato a organizar-se de forma a lidar melhor com a excitação produzida; o que já aponta para um futuro aparato psíquico gerado com a função de dominar uma força que ameaça invadi-lo. O aparato neuronal do Projeto de 1895 é pensado como um lugar onde se dará um destino para a energia que lhe chega, seja interna ou externa. Para isso Freud constrói uma complexa rede neuronal na tentativa de elucidar como essa energia é trabalhada e escoada para fora do aparato. Nessa empreitada Freud esbarra em algumas dificuldades, sobretudo a repetição da vivência dolorosa que será destacada no decorrer do texto.

A seguir Freud (Ibid.) descreve os neurônios como aptos para receber excitações por meio dos dendritos que são descarregadas através de um cilindro axial. Nestes termos o neurônio pode estar “catexizado, cheio de determinada Qn (quantidade), ao passo que, em outras circunstâncias, ele pode estar vazio” (Id., Ibid., p. 350). Esta passagem corrobora a ideia de que o aparato foi pensado com a finalidade de dominar as excitações, ideia que irá se manter na obra de Freud, uma vez que o aspecto quantitativo é expressado na concepção de investimento (catexia) dos neurônios. Estes devem se haver com as quantidades que lhe chegam, levando sempre em conta a tendência à constância. Não devemos reduzir o aparato neuronal como um simples condutor de energia: é a capacidade de armazenar essa energia que o dota da função de memória e o distingue de um funcionamento visando apenas à descarga. Em outros termos, a capacidade de armazenar informações o torna mais complexo e, é dessa capacidade que podemos começar a tecer nossa discussão sobre a repetição.

O próximo passo, então, é distinguir os sistemas de neurônios do Projeto em permeáveis, chamados de phi (), os quais não retêm qualquer quantidade; e os neurônios impermeáveis, chamados psi (), que por sua vez retêm e são modificados com a passagem de certa quantidade. Com isso é destacada uma dimensão automática do funcionamento do aparato e do próprio humano, uma vez que a consciência não exerce influência direta sobre os dois sistemas neuronais onde ocorre grande parte dos processos psíquicos; a consciência será incluída dentro de um terceiro sistema chamado ômega (ω), conforme veremos adiante.

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A independência dos outros sistemas em relação à consciência marca a originalidade do pensamento freudiano, frente à tradição cartesiana onde o eu e a consciência possuem um lugar central (Pilão, 2009). A grande novidade do aparato neuronal no Projeto de 1895 se refere a processos que fogem ao alcance do eu, “Freud alarga a dimensão psíquica (...) ao apresentar o funcionamento mental marcado por um desconhecimento daquele de cuja mente falamos (...) anunciando a radicalidade do que está por vir com o advento (...) do inconsciente” (Id., Ibid., p. 18).

Apesar das diferenças conceituais, Descartes propôs um interessante modelo de memória baseado também na fisiologia e, na qual a percepção desempenha uma função fundamental. Para Descartes, explica Donatelli (2003), os objetos ao excitarem o corpo, com intensidade variável, deixam vestígios na superfície do cérebro, que são comparados às dobras feitas quando se amassa um papel; isso significa que são traçadas figuras na superfície cerebral que condizem aos respectivos objetos.

Há um complexo esquema envolvendo a fisiologia e a física da época, que explica como essas imagens são conduzidas e reproduzidas dentro do sistema nervoso. Bem como também presente nesta concepção cartesiana a idéia de vasos comunicantes. Para o que diz respeito aos nossos propósitos queremos chamar atenção para esse modelo de memória pensado como vestígios traçados no cérebro (há uma clara referência a uma impressão quantitativa na formação dos traços) que conservam uma relação com os objetos percebidos de tal modo que eles podem ser evocados novamente, por meio de uma nova percepção ou sem a presença dos objetos. Neste ponto Descartes, na carta a Mesland de 1644, vai além e apresenta uma memória intelectual: há vestígios (traços) deixados „no pensamento‟ que podem ser evocados e modificados independente das coisas materiais:

“as quimeras” (DESCARTES, 1641/1996, p. 280), por exemplo, são ficções criadas pelo espírito através da imaginação (fantasia). Uma visão bastante diversa da memória material, que não se reduz a uma abordagem mecanicista, na qual os traços na superfície do cérebro dependem sempre do fator externo. Essa explanação visa apenas mostrar que Freud pode ter usado modelos já existentes para desenvolver alguns dos conceitos do Projeto de 1895.

Voltemos ao aparato neuronal. Os neurônios que podem ser ocupados, os psi (), levam Freud a supor que no ponto de contato entre eles existam resistências, as barreiras de contato. Essas barreiras são modificadas quando atravessadas por certa quantidade. Tal hipótese possibilita introduzir a noção de memória no Projeto, posto que para Freud

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(1895[1950]/1996, op. cit.), era essencial que uma teoria psicológica fornecesse uma explicação para a memória.

I.3. Repetição e facilitação

As barreiras de contato são descritas no Manuscrito conforme o “grau de facilitação.

Pode-se, então dizer: a memória está representada pelas facilitações existentes entre os neurônios ” (Id., ibid., p. 352). Notemos que o grau de resistência existente nas barreiras de contato não são idênticos, pois se fossem não haveria necessidade de caminhos preferenciais a serem seguidos, conforme a exigência da função secundária e da própria memória. “Por isso, pode-se dizer de maneira ainda mais correta que a memória está representada pelas diferenças nas facilitações entre os neurônios ” (loc. cit.), ou seja, a existência da memória se deve à capacidade do neurônio ser modificado pela passagem da excitação. É pela magnitude da impressão que a memória é, então, constituída, deixando um traço ou uma marca atrás de si nos neurônios psi ().

Derrida (1995) ressalta que para pensar as barreiras de contato é preciso supor uma certa violência da quantidade que passa por tais barreiras. O sistema de neurônios psi () – devido a sua principal característica: a impermeabilidade – oporia resistência à passagem da excitação. Mas devido à magnitude da corrente excitativa, sendo mais forte que a oposição oferecida pelas barreiras de contato, a excitação forçaria passagem e deixaria impressões nestas barreiras “oferecendo uma possibilidade de se representar à memória”

(Id., Ibid., p. 185). Assim Freud, ao dispor o aparato neuronal estratificado, composto por diferentes sistemas de neurônios (permeáveis e impermeáveis), abre caminho para explicar o funcionamento da memória.

A memória é definida como a capacidade de um neurônio psi (), ou um conjunto de neurônios, ser permanentemente modificado pela passagem da quantidade. É pela força, ou melhor, pela violência dessa quantidade, que se constituirá uma memória. Esta configuração denota a presença de certo excesso para efetuar os traços que formarão a memória. Nesta perspectiva a construção enquanto traços ou marcas se diferenciarão de acordo com a magnitude da impressão envolvida em cada caso.

A memória neuronal tem como finalidade dispor e indicar caminhos facilitados nos quais a quantidade pode escoar de uma forma rápida pela malha neuronal, uma vez que

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toda quantidade que ultrapasse o limite da constância é sentida como desprazer. O fato de poder escolher caminhos mais eficientes para chegar à descarga se deve às informações guardadas nos neurônios psi (), garantindo assim a realização da ação especifica, pelo cumprimento da exigência da função primária e secundária do aparato neuronal. Levando em conta esses aspectos observamos que alguns caminhos serão escolhidos em detrimento de outros, o que faz pensar que a repetição tem um lugar fundamental para a manutenção do equilíbrio de forças dentro do aparato neuronal. Justamente porque os caminhos mais facilitados na trama neuronal ao serem repetidos criam um sistema de diferenças buscando, assim, cumprir a exigência principal imposta ao organismo como um todo: ficar livre das quantidades. A repetição de caminhos facilitados determina, portanto, que a condução da quantidade nos neurônios psi () é seletiva.

Além disso, Freud (1895[1950]/1996, op. cit.) chama atenção para a atração que os neurônios facilitados exercem entre si, caracterizada por uma lei atuante entre esses neurônios chamada de „associação por simultaneidade‟. Segundo essa lei a quantidade passaria mais facilmente de neurônio investido para outro também investido, do que para um neurônio que não sofresse qualquer investimento. Essa norma determina a escolha de caminhos no sistema de neurônios psi () e confirma a hipótese de que a repetição tem um papel fundamental para garantir a manutenção do montante quantitativo em níveis constantes.

As barreiras de contanto se caracterizam pela capacidade de reter, podendo receber mais informações advindas das impressões calcadas sobre sua superfície. Como reter informações sem perder o frescor? Se o acúmulo de impressões fosse consciente logo ficaria saturado e não poderia receber novas excitações, o que levou Freud a pensar que memória e consciência são incompatíveis. Certamente esta não é uma questão simples de ser respondida: No artigo: Uma nota sobre „Bloco Mágico‟ (1925[1924]/1996) Freud propõe considerar que a consciência desaparece quando o investimento é retirado dela e os traços duráveis se inscrevem no inconsciente.

Contudo se no lugar de escrever normalmente, no celulóide transparente da superfície do bloco mágico, o estilete é apoiado com demasiada força ocorre ou união prolongada entre as duas camadas, folha de celulóide transparente e o papel encerado fino1,

1 Cabe lembrar que a disposição das camadas descritas no artigo Sobre o Bloco Mágico (1925[1924]/1996) é a seguinte: Primeiro há uma folha transparente onde é feita a escrita com o estilete; segundo um papel encerado e por último a prancha de resina.

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ou uma ruptura em ambos. Como consequência deste excesso de força aplicado sob o bloco, ele não funciona como deveria. A camada celulóide atua como um escudo protetor para o papel encerado; nessa metáfora podemos observar que se o escudo é rompido há um prejuízo nas camadas subsequentes, ou seja, sem filtragem da quantidade a função de escrita, do traço, é perdida, dando lugar a impressões mais fortes: as marcas.

Cabe fazer uma distinção entre estas duas figuras: traço e marca. Para isso nos servimos das indicações referidas por Knobloch (1998). Distinguir esses dois conceitos, segundo a autora, é fazer referência à memória, pois as representações que serão

“constitutivas do inconsciente não são senão traços mnemônicos investidos e protegidos pelo recalcamento” (p. 85), justamente porque os traços estariam sujeitos a um “rearranjo”, usando o termo de Freud da Carta 52 (1896/1996), na medida em que novas circunstâncias fossem agregadas à memória. Com isso fica destacada a importante tese de Freud de que a memória se desdobra em vários tempos, ou seja, ela pode sofrer retranscrições ou rearranjos dos traços que a compõem.

Com relação a diferença entre traço e marca deve-se considerar que para se transformar em um traço ou uma marca é necessário antes de tudo que uma impressão tenha força suficiente para causar alguma sensação no psiquismo; a impressão é “anterior à inscrição e posterior à sensação” (GARCIA-ROZA, 1995, p. 53). O traço é impressão que será presentificada pela lembrança, ou seja, implica uma inscrição na cadeia de representantes, sendo capaz de associar-se a outros traços. Quanto à marca, trata-se de um tipo de impressão que não participa da cadeia de representação, não podendo ser evocada como uma lembrança, “mas como fator energético. Não se trata, portanto, de representação, mas de expressão de pura intensidade” (KNOBLOCH, 1998, op. cit., p. 89), que será apresentada, e não representada, no aparato sob a forma de uma repetição desprazerosa a qual o eu não consegue fazer frente por ultrapassar a sua capacidade de contenção. Esta tese encontrará eco nas elaborações teóricas da virada de 1920 no artigo Além do princípio de prazer, mais especificamente com relação à compulsão à repetição das neuroses traumáticas.

A Carta 52 (FREUD, 1896/1996 op. cit.) amplia a noção de memória presente no Projeto de 1895 inserindo um complexo sistema de retranscrições. Neste novo esquema a memória está sujeita a reordenamentos segundo novas articulações: os acontecimentos psíquicos ficam gravados na memória através dos traços mnêmicos, podendo ser reativados por efeito de um novo investimento. “O traço começa a tornar-se escritura” (p. 192) nos

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avisa Derrida (1995, op. cit.) sobre a nova concepção da memória da Carta 52 (FREUD, 1896/1996 op. cit.). Estas considerações demonstram uma metamorfose que avança sobre as formulações realizadas no Projeto de 1895 e estão a meio caminho do capítulo 7 da Interpretação dos Sonhos (FREUD, 1900/1996), onde é operada a “passagem do modelo isomórfico para um modelo abstrato de aparelho psíquico” (GARCIA-ROZA, 1998, op.

cit., p. 203), capítulo no qual a metamorfose será completada.

Na carta 52 (FREUD, 1896/1996 op. cit.) Freud nos apresenta a noção de inscrição e, um novo e mais refinado esquema gráfico: os neurônios onde se originam as percepções (Wahrnehmungen), a consciência se liga a estes neurônios, mas não retém nenhum traço mnêmico do que aconteceu. Ao passo que nos signos de percepção (Wahrnehmungszeichen) do sistema psi () acontecem as primeiras inscrições destas percepções, inacessíveis à consciência e orientadas pelas associações por simultaneidade, onde ocorre o primeiro registro mnêmico. No próximo registro, o inconsciente ou inconsciência (Unbewusstsein), ocorre a segunda transcrição ordenada não mais pelas associações por simultaneidade, mas provavelmente por associações de causalidade;

também inacessíveis à consciência. O registro seguinte chama-se pré-consciência (Vorbewusstsein), no final ocorre a terceira retranscrição ligada a imagens verbais (representação-palavra) e correspondendo ao nosso eu, o que torna o acesso ao consciente possível de acordo com certas regras.

Notemos que há uma sucessão de transcrições realizadas em diferentes registros;

cada transcrição ordena o material psíquico de acordo com uma nova lógica, de forma que a cada nova transcrição a anterior é inibida e apartada da quantidade vigente. Caso ocorra uma falha na tradução isso significa que algo precisou ser recalcado; ou seja, o recalque caracteriza-se por uma recusa em efetuar a tradução, pois se fosse completada geraria desprazer. Nestes casos o processo de tradução teria início, mas seria interrompido devido à emissão de desprazer. Concepção que nos indica uma forma de defesa do aparato psíquico contra o desprazer.

A partir do material apresentado na Carta 52 (Id., 1896/1996 op. cit.) o aparato psíquico passa a ser concebido em diferentes camadas pelas quais o material mnêmico o atravessa. Esta disposição denota o contraste entre os signos de percepção, por um lado e, os registros da inconsciência e da pré-consciência, por outro. Tal diferença implicará que teremos: (1) as marcas não ligadas às representações, ou seja, elas não sofreram processos de reordenamento, mantendo-se praticamente da mesma forma de quando foram

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constituídas e, (2) traços que sofreram retranscrições podem advir à consciência, desde que não despertem desprazer, já que fazem parte da cadeia de representações-palavras (Saltztrager, 2006). Freud concentra esse novo esquema em torno de noções como signo, inscrição e transcrição, que “estão muito mais próximas da linguagem e da escrita do que dos neurônios da formulação anterior” (GARCIA-ROZA, 1998, op. cit., p. 200).

Neste contexto Derrida (1995 op. cit.) pontua que o “conteúdo do aparelho psíquico será representado por uma máquina de escrita” (p. 183). A partir da carta 52 (FREUD, 1896/1996 op. cit.), o que irá se apresentar como conteúdo do aparelho psíquico são os signos, que serão inscritos e retranscritos, o que indica os diferentes períodos da vida nos quais o material é acessado, sendo que cada novo acesso implica uma nova transcrição. Por intermédio destas observações destacamos no aparato psíquico a presença de um sistema de repetições ordenado pela diferença. O recordado, então, não coincide com o acontecimento em si, mas é um produto de várias retranscrições.

A Carta 52 (Id., ibid.) traz, ainda, uma importante questão sobre a repetição ao tratar das marcas psíquicas. As marcas caracterizam-se por não sofrer nenhuma tradução.

Diferente do recalcamento que é uma „falha na tradução‟ as marcas são „falhas (falta) de tradução‟, persistindo inalteradas no aparato psíquico; nestes casos a excitação é manejada segundo as “leis psicológicas vigentes no período anterior e consoante as vias abertas nessa época. Assim, persiste um anacronismo: numa determinada região ainda vigoram os

„fueros‟, estamos em presença de sobrevivências” (Id., Ibid., p. 283).

Os „fueros‟ constituem um termo tomado de empréstimo de uma antiga lei espanhola aplicada em províncias conquistadas ou vilarejos que não possuíam senhorios; tal lei buscava regular a vida local, mantendo os costumes e tradições destes sítios e, estabelecendo um conjunto de normas jurídicas, para garantir privilégios perpétuos à coroa sobre esta região (BARRERO GARCÍA, 1985). De acordo com Salztrager (2006, op. cit.) os „fueros‟ são impressões psíquicas desregradas que não estão articuladas em uma trama de facilitações e, portanto, não sofrem todo procedimento descrito na Carta 52 (FREUD, 1896/1996, op. cit.), subsistindo como marcas psíquicas. Tal como os “fueros” da lei espanhola, recolhiam os costumes da cada localidade onde eram aplicados e mantinham-se,

„strictu sensu’, fora da política feudal vigente, as marcas mantêm-se fora dos sistemas de representações e das regras aplicadas à estas, subsistindo no aparato psíquico segundo outra determinação. Daí, a impossibilidade de mudanças de cenários ou personagens em seus conteúdos, característica dos sonhos das neuroses traumáticas. “A ausência de

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ligações diretas com a representação-palavra do registro da pré-consciência também explicaria o fato de elas consistirem em algo que não pode ser expresso pela fala”

(SALZTRAGER, 2006, op. cit., p. 93), o que nos remete a pensar que os “fueros”

funcionam de acordo com o mecanismo de compulsão à repetição.

Voltemos à atenção para a primeira definição da memória, do Projeto de 1895, que destaca as repetições de vias através das quais são eleitos os caminhos preferenciais, visando o melhor escoamento da excitação. Sabemos que a facilitação depende da magnitude da quantidade que passa pelo neurônio e do número de vezes que esse processo acontece. Essas trilhas preferenciais são vias de descarga que interrompem a circulação da excitação no interior do aparato neuronal e, por isso, são repetidas quando há aumento de excitação. Segundo Santos (2006) essas repetições irão criar um sistema de diferenças, fundamental para orientar as vias facilitadoras do escoamento da quantidade que chega ao aparato: essa é a função da memória - repetir.

De acordo com Garcia-Roza (1991, op. cit.) as facilitações formam caminhos privilegiados entrecruzando-se em uma complexa rede, de tal forma que a repetição exata do mesmo caminho seja difícil de acontecer: a memória não é, pois, “a reprodução mecânica e idêntica de um traço concebido como algo imutável, mas uma memória constituída pela diferença de caminhos eles mesmos móveis” (Id., Ibid., p. 100). Assim podemos afirmar que o traço como memória neuronal não poderia ser acessado de uma maneira „pura‟, o traço não é entendido na concepção do Projeto de 1895 como algo sempre idêntico, mas como diferença; neste contexto podemos entender o sentido da afirmação de Freud de que a memória é representada pelas diferenças nas facilitações dos neurônios psi ().

Por estas razões, Derrida (1995, op. cit.) pontua que a memória tal como descrita no Projeto de 1895 é marcada pela diferença, e na configuração apresentada por Freud neste texto a repetição já existe como possibilidade originária, uma vez que os caminhos mais facilitados são repetidos para o escoamento da energia. A resistência oferecida pelos neurônios psi () contra as quantidades só é possível se as barreiras de contato aguentarem as invasões ou “se repetir originariamente” (Id., Ibid., p. 187). Isso porque não há outro meio de conter a efração do para-excitação a não ser repetindo a vivência dolorosa, até que o aparato neuronal ganhe domínio sobre a energia indomada; para isso se faz necessário diluí-la em parcelas que serão escoadas através da trama neuronal, a cada repetição uma nova parcela da quantidade é dominada. A vida já está ameaçada pela irrupção das

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quantidades desde a sua concepção; frente a isso é preciso criar uma rede de facilitações para garantir a sobrevivência, ou seja, saber como escoar a quantidade de forma eficiente.

Contudo criar facilitações implica necessariamente a dor: “não há facilitação sem um começo de dor” (loc. cit.), o que nos conduz a questão da relação entre dor e repetição.

O aparato neuronal pressionado pelas urgências da vida é obrigado a arranjar meios de manter reservas de quantidade com a finalidade de realizar a descarga via ação específica, eis aí a mola pulsional “verdadeiro motor do progresso” (FREUD, 1915/2006, p. 147) do sistema nervoso; para tanto precisou complexificar-se em uma trama ou rede neuronal e evoluir suas células matrizes, os neurônios, de permeáveis para impermeáveis.

Desse modo o aparato neuronal foi constituindo-se de forma a evitar grandes acúmulos energéticos. Para tal intento conta com as barreiras de contato e os caminhos facilitados, mas no final das contas o aparato, mesmo em sua complexidade, serve à função primária.

Garcia-Roza (1998, op. cit.) explica que a memória e a repetição, não são secundárias em relação à descarga que é a função primordial tanto do aparato neuronal, como de todo o organismo, “ou, dito de outra maneira, não há primeiro a descarga (que seria “natural”) e depois a repetição, entendida esta última como uma espécie de memória natural” (Id., Ibid., p. 206). A memória é constituída pela diferença, contida na possibilidade dos vários trilhamentos existentes entre os neurônios psi (), nisto implica que repetição e diferença já existem como possibilidade desde o começo.

Derrida (1995 op. cit.) vê nessa construção do aparato nervoso a condição para afirmar que a vida, afinal, é a morte e, a “repetição e o para além do princípio de prazer são originários e congenitais àquilo mesmo que transgridem” (Id., Ibid., p. 188), a saber: que as facilitações, assim como todo aparato, servem a função primária. Tal fato “impede-nos já de ficar surpreendidos com o Além do princípio de prazer” (loc. cit.). As barreiras de contato não são acrescentadas à vida para mantê-las, pois no fundo visam seguir a inércia, as exigências da vida fazem o aparato tomar um caminho mais amplo, mas que no fim se dirige ao propósito de toda vida: a morte, como será abordado no “Além do princípio de prazer” (FREUD, 1920, op. cit.).

Freud pensou o aparelho neuronal de maneira que as grandes quantidades externas estivessem afastadas de phi () e, mais ainda, de psi (), devido ao escudo protetor dos órgãos dos sentidos que filtram a quantidade provinda do exterior, e pela conexão indireta de psi () com o mundo externo. Contudo há um fenômeno que corresponde à falha destes

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dispositivos de proteção, uma vez que tais dispositivos têm um limite de eficiência: trata-se da dor.

I.4. O problema da repetição da dor

A dor consiste em grandes quantidades de excitação veiculada pelos neurônios phi () fazendo irrupção – sem a mediação do escudo protetor – nos neurônios psi () que a recebe como se fosse atingido por uma grande descarga elétrica, tal a magnitude de sua força. Esta energia invasora desestabiliza a organização do aparato, deixando facilitações permanentes atrás de si em psi (). “A dor aciona tanto o sistema phi () como o psi (), não há nenhum obstáculo à sua condução, e ela é o mais imperativo de todos os processos.

Os neurônios psi () parecem, pois, permeáveis a ela” (Id., 1895[1950]/1996, op. cit., p.359).

Na primeira parte do Projeto de 1895 o capítulo 6 é dedicado a questão da dor e o capítulo 12, à vivência de dor; entre esses dois capítulos Freud introduz o sistema neuronal responsável pela percepção-consciência: sistema ômega (ω). Tal sistema tem como função fornecer signos de qualidade à psi (); além da qualidade, exibe algo muito diferente: as sensações de prazer e desprazer. O desprazer é identificado por um aumento da quantidade de excitação em psi (), já o prazer é identificado com a descarga da excitação. No caso da dor produz-se, em primeiro lugar, um aumento considerável da excitação em psi (), sentido como desprazer; em segundo, uma inclinação para a descarga e, em terceiro, uma facilitação entre os caminhos de eliminação e a representação do objeto hostil que provocou a dor.

A partir destes investimentos energéticos Freud procura, utilizando-se dos exemplos ocorridos na vivência de dor e de satisfação, não medir a quantidade, mas exemplificar e entender como ocorre a descarga da excitação, e os efeitos que a passagem da quantidade provoca no aparato (HERZOG, 2001). A respeito disso Freud no Rascunho E (Junho de 1894/1996) afirma que a angústia surge por transformação da tensão sexual acumulada;

esse acúmulo se deve ao fato da descarga não ter sido realizada, e o represamento deste excesso tem como consequência a neurose de angústia; nesse sentido Freud considerou fundamental entender como o aparato neuronal é capaz de transmitir e transformar a

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energia que circula pelos neurônios, ou seja, compreender economicamente as forças que atuam no aparato nervoso.

Neste ponto são introduzidas duas idéias que visam responder aos modos de condução da energia no aparato e que serão retomadas na virada de 1920: o processo primário e secundário. O processo primário é regido pelo princípio de inércia e diz respeito à forma de condução da energia que tende a descarga pela via mais facilitada sem sofrer inibição ou processamento; já no processo secundário há um retardamento da energia, ela sofre uma mediação por parte do eu para que o aparelho não invista, automaticamente, de forma muito intensa na representação-lembrança do objeto hostil, no caso da vivência de dor; e de desejo, no caso da vivência de satisfação.

De acordo com a indicação de Caropreso & Simanke (2006, op. cit.) notamos que seguir o caminho mais facilitado é um fator mecânico dos processos nervosos, pois as facilitações são pontos de menor resistência à condução da energia, conforme a exigência da função primária. Desse modo a energia do processo primário, que tem a característica de livre mobilidade, poderia conduzir à reativação de representações que mesmo em sua origem, produziram desprazer, o que ocorreria, sobretudo nos processos derivados da vivência de dor. Para evitá-la é necessária a ligação, a partir do eu, dessa quantidade que irrompe em estado livre. Configura-se, aí, a função do eu: mediar a energia livre que irrompe no aparato neuronal, em outras palavras: evitar que certos caminhos sejam tomados.

Para que isso ocorra é necessária a realização de um trabalho sobre as excitações, ou seja, é preciso uma dominação prévia destas energias, esse domínio permite que elas sejam inscritas como representações. Caso esse domínio não ocorra, as excitações persistem como “fueros” ou marcas, que remetem para algo que escapa ao domínio do eu, logo, estão fora do campo das representações, e não podem ser atualizadas pela lembrança. Isso significa que há experiências não-inscritas, mas impressas, que ultrapassam a capacidade do aparato de dominá-las, permanecendo como pura intensidade e aparecendo sob uma repetição compulsiva do evento doloroso.

Freud (1895[1950]/1996, op. cit.) afirma: “se a imagem recordativa do objeto hostil for de alguma forma ocupada de novo, por exemplo por uma nova percepção” (p. 372), surge um estado que não é dor (dor sempre pressupõe a irrupção de uma quantidade proveniente do exterior), mas guarda semelhança com ela: o desprazer; e, junto a isso, uma defesa contra essa sensação. De acordo com Aubert (1996) dor não é desprazer, mesmo

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partilhando com o afeto sua característica quantitativa. A repetição da experiência que envolveu a dor representa ao nível das lembranças um desprazer emanando internamente, resultante da ação dos neurônios secretores que após receber uma excitação “engendram no interior do corpo alguma coisa que age como um estímulo sobre as vias endógenas de condução resultando em psi ()” (Id., Ibid., p. 101)2. A dor passa a ser vista como o protótipo do afeto: uma descarga interna secretória que aumentando o nível em psi () conduzem a uma determinada ação para a descarga.

“Portanto, resta apenas supor que, por meio da ocupação de recordações, seja liberado desprazer desde o interior do corpo” (FREUD, 1895[1950/1996, op. cit., p. 372).

Como não há uma excitação externa que pudesse explicar o aumento do nível energético em psi () Freud aposta em uma solução química: os neurônios secretores. Tais neurônios, uma vez estimulados, provocariam a liberação de quantidade, endógena, portanto, aumentando o nível de psi (). Os neurônios secretores são ativados pelo reinvestimento da imagem do objeto hostil devido à facilitação criada na vivência de dor. Dessa forma o desprazer tem origem dupla na vivência de dor: externa, causada pelo objeto hostil, e interna, provocada pelos neurônios secretores. A associação entre os neurônios secretores e a recordação do objeto hostil consiste no caminho de eliminação da vivência de dor, de modo que o desprazer é liberado no afeto.

Nesse sentido Pontalis (2005) afirma que Freud em 1895, opõe vivência da dor e vivência de satisfação. Assim, o par de opostos criados não é, “como seria de se esperar prazer-desprazer [Lust – Unlust], mas de um lado prazer-desprazer (...), e, por outro dor”

(Id., Ibid., p.267). Esse autor, com relação a estas configurações, percebe um dualismo antagônico, entre essas duas vivências, tão fundamental quanto os futuros dualismos pulsionais que marcarão a obra de Freud. Essa visão é baseada no fato de que as vivências de prazer e dor são vivências corporais, que se inscrevem no corpo do indivíduo, provocando prazer, no caso da vivência de satisfação, e dor, na vivência de dor. A dor se caracteriza essencialmente por um fenômeno de ruptura das barreiras de contato, seguido por uma descarga no interior do corpo: “A dor é violação; ela supõe a existência de limites:

limites do corpo, limites do eu; ela produz uma descarga interna, que poderíamos chamar de efeito de implosão” (Id., Ibid., p. 268).

2 Tradução nossa.

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