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PARTE II FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

CAPÍTULO 3 VISIBILIDADE E COMUNICAÇÃO PÚBLICA

3.1 MEDIAÇÃO DO PÚBLICO E DO PRIVADO

3.1.2 A Comunicação e os públicos

Nesta seção é discutida a relevância da comunicação pública, no âmbito do espaço público, cuja participação dos públicos, enquanto forma de sociabilidade, é decisiva para a configuração da opinião pública. Busca-se um horizonte conceitual, que baliza a crítica sobre as práticas comunicacionais que abordam temas fundados no interesse público desencadeadas pelo acontecimento público Tragédia Kiss, estabelecidas pelos atores direta ou indiretamente envolvidos pelo incêndio. Nestes múltiplos protagonismos, são acionados os vários sentidos do público já discutidos neste capítulo, bem como os tensionamentos aos domínios que cada um deles delimita.

A concepção de público (TARDE, 1992), é edificada na contraposição com outra sociabilidade paradigmática, a multidão. Ao contrário desta, que se caracteriza pela presencialidade, a proximidade física entre os seus membros, Tarde (1992, p. 33) diz que a formação do público supõe “a evolução mental e social bem mais avançada do que a formação de uma multidão. A sugestibilidade puramente ideal, o contágio sem contato que esse agrupamento puramente abstrato, porém tão real, supõe”, prevê o distanciamento físico, uma vez que a vinculação se dá pelo interesse comum em um mesmo elemento simbólico, o que não se confunde com concordância. Para Tarde (1992), o público poderia ser qualificado como uma multidão espiritualizada, superior, que resulta de um processo evolutivo da vida social.

A sua irrupção e força política data da segunda metade do século XVIII, com a Revolução, na França, assim como o advento do jornalismo. A expansão indefinida, com o aperfeiçoamento dos meios de transporte e dos meios de comunicação, consolida-se no século seguinte. Desde então, a tendência de transfiguração de todos os grupos sociais em público, o público religioso (nascido nas igrejas), o estético (nascido nas escolas de arte), o científico (nascido nas universidades), o partidário (relativo aos partidos políticos) conduziria à intelectualização, pois a sua ação é mais inteligente e esclarecida que a das multidões. Para o bem e para o mal.

Para Esteves (2011), que fundamenta a sua definição de público a partir de Tarde (1992), a comunicação está ao centro da formação dos públicos, externamente, no âmbito do espaço público, para que os temas estejam disponíveis e acessíveis, e internamente, para que as opiniões sejam expostas e os vínculos estabelecidos. Nesta direção, salienta a centralidade da comunicação pública, que se realiza no nível de espaço público e é “veiculada pela (ou para a) opinião pública” (ESTEVES, 2011, p. 146).

O surgimento dos públicos modernos se deve, em grande medida, ao desenvolvimento dos meios de comunicação e à constituição de redes e fluxos de informação e comunicação que viabilizaram a oferta regular de informações e, consequentemente, o “encontro” entre sujeitos espacial e temporalmente dispersos (ESTEVES, 2011). Os meios de comunicação não estão na origem dos públicos, mas eles adquirem centralidade no estabelecimento da base simbólica dos públicos e, consequentemente, do espaço público, até os dias de hoje.

Segundo Esteves (2011), a função política dos públicos tem a sua afirmação no momento de maior maturidade do espaço público moderno, com a construção de um estatuto ético-moral, composto por normas sociais, que se quer projetado sobre a política. Em outros termos, entende-se que o espaço público é o âmbito de construção e de representação da vontade coletiva perante o Estado, expressa pela opinião pública. É, também, o domínio de vigilância e de controle da ação do Estado, contra a arbitrariedade e o segredo nas instâncias políticas decisórias.

Isto impõe desafios à reflexão sobre a função política do espaço público contemporâneo, que conduzem a duas dimensões: a) dimensão ético-moral fática e, b) normativa ou ideal (ESTEVES, 2011). A primeira dá-se a ver, ainda que circunstancialmente, sempre que a comunicação pública, no espaço público, constitui a opinião pública (vontade política dos cidadãos). No plano normativo, a da vontade coletiva no espaço público, está ancorada em três pilares: publicidade, crítica e debate. A publicidade está ligada à visibilidade, dar a conhecer algo, tornando-se um princípio democrático. A crítica é garantia ética de justiça no que diz respeito aos consensos alcançados em nível da comunicação pública. Ela torna possível a afirmação de uma opinião pública qualificada e com caráter vinculativo. Por fim, o debate é a troca pública de razões para a constituição da opinião pública e depende de publicidade e da crítica para a efetividade da sua dinâmica.

Da relação entre os quatro termos - público, comunicação pública, espaço público e opinião pública -, pode-se sintetizar a “especificidade política fundamental das sociedades modernas, ligada à ideia de democracia, sobretudo, a democracia concebida em termos deliberativos, fundamentada no princípio ético-moral da produção de razões que justificam cada decisão” (ESTEVES, 2011, p. 184).

Esta orientação normativa encontra resistências na dimensão fática ou empírica do presente. Enquanto prática social ocorre quando a comunicação pública se assume como o verdadeiro exercício cívico, ou seja, quando o espaço público se apresenta como um espaço de cidadania e, a opinião pública, como um reflexo desta no que diz respeito à formação da vontade política. No entanto, dada à diversidade de atores e de interesses, públicos e privados,

que participam e concorrem no espaço público, essas situações são esporádicas. Neste cenário, a dimensão normativa permite a reflexão crítica sobre os princípios que norteiam a constituição do espaço público e da opinião pública contemporânea, bem como situar a relevância dos públicos enquanto forma de sociabilidade.

Com este sentido, os públicos adquirem relevo, nas sociedades modernas, por sua capacidade de organização e de ação social, pois impulsionadores das transformações que levaram à formação desta mesma modernidade, ao tocarem as estruturas sociais e os quadros de referência tradicionais, como a igreja, a economia, a escola e a política. O poder transformador se aplica, historicamente, a circunstâncias específicas, pois as ações dos públicos podem ter um caráter apenas contingencial. Mesmo assim, ainda que, hoje, exista o distanciamento entre a dimensão conceitual e a factual dos públicos, mantém-se o seu protagonismo potencial, circundado pela dispersão física e caráter simbólico (ESTEVES, 2011).

Tais características do público, dispersão física e caráter simbólico, tratam respectivamente das relações estabelecidas sem a necessidade de compartilhamento do mesmo espaço físico e do interesse por um tema, enquanto elemento simbólico que mobiliza os indivíduos a formarem o público e que o diferencia dos demais públicos, que coexistem como atores no espaço público e estão organizados em torno de outras pautas como meio- ambiente, educação e segurança. É “uma coletividade puramente espiritual, como uma disseminação de indivíduos fisicamente separados e cuja coesão é inteiramente mental” (TARDE, 1992, p. 30).

Mas é determinante, no público, a influência social, o sentimento de que a vontade é partilhada por um grande número de pessoas. A influência, sem que se perceba, do invisível contágio do público do qual se faz parte, em torno de temas da atualidade, está entendida como o que está “na moda”, tenha sentido de urgência na imprensa, ainda que sejam fatos antigos.

Diante da dispersão física e conexão simbólica, a comunicação está no centro da sua formação, ressalta Esteves (2011, p. 153), porque toda “espiritualidade dos públicos gira em torno de uma certa comunhão de ideias cuja formação ocorre no quadro de um processo de comunicação constante”. Ela é, em última análise, a sua razão de ser e, a coesão, depende de uma rede de fluxos de informação e de relações comunicacionais que permitam o estabelecimento e a consolidação dos vínculos sociais. Daí que, ao contrário da multidão, é possível pertencer a vários públicos, e o que os difere é o que corresponde “à natureza de seu

objetivo ou de sua fé”, pois “uma fé comum ou um objetivo comum os comove ou os move em conjunto” (TARDE, 1992, p. 53).

Assim, a individualidade é preservada, na mediação entre o privado (privativo, particular) e o público (ligado ao interesse comum), que se dá pela exposição da subjetividade individual em prol da coletividade. Além disto, o indivíduo tem o poder de escolha de afiliação e desfiliação a qualquer tempo, devido ao princípio da abertura dos públicos (ESTEVES, 2011).

Com as sociedades organizadas em torno dos media, estes passam a canalizar as disputas em torno dos temas de interesse público, tensionando as possibilidades de constituição dos públicos e de acesso a esta esfera de visibilidade, considerando-se a organização corporativa dos media, a diversidade de temas que concorrem pela notícia e a assimetria entre as fontes e atores que participam da comunicação pública29. A comunicação

em rede ainda potencializa as possibilidades de controle da informação circulante, para os grupos políticos e econômicos, hegemônicos, mas são criadas novas oportunidades de divulgação e de compartilhamento de informações, assim como novos dispositivos de sociabilidade pelos públicos. Em tempos de conectividade em escala global os temas e a mobilização social podem alcançar escalas sem precedentes.

Quão mais ativas, amplas e velozes são as redes de circulação de informação, maior a uniformidade da agenda, em escalas cada vez maiores e, consequentemente, o potencial de que os mesmos temas reverberem, concomitantemente, em todos os locais. Com isto, é possível falar em públicos locais, restritos a uma região específica, em virtude da particularidade do tema que os une, e em públicos nacionais, quando os temas são de concernência de toda a nação, como aqueles que são circunscritos na esfera decisória do poder federal ou fatos episódicos que se tornam problemas públicos (BABO-LANÇA, 2007), como tragédias ou catástrofes da natureza. Nestes casos, são temas que permanecem por mais tempo na agenda midiática.

29 É ilustrativa, neste sentido, a distinção entre públicos fortes e fracos, referida por Maia (2008), com base em Fraser (1992), quanto ao acesso desigual aos media. Os públicos fortes têm maior poder de agendar os meios de comunicação de massa, pois detêm estruturas profissionais voltadas a influenciar o debate na esfera pública informal, visando apoio a políticas públicas ou vantagens eleitorais. Já os cidadãos ou os atores coletivos da sociedade civil, não possuem a mesma organização, profissionalização e recursos financeiros para negociar espaços midiáticos.