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PARTE II FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

CAPÍTULO 2 SENTIDOS E LIMITES DO PÚBLICO E DO PRIVADO

2.3 BIOPOLÍTICA: LIMITES E CONFLUÊNCIAS

Em um país regido pelo regime democrático, há condições a serem satisfeitas, ou seja, critérios democráticos mínimos a serem atendidos, além de instituições que assegurem o funcionamento do sistema e a demanda de participação efetiva dos cidadãos no governo e na vida política, de modo geral. A compreensão, sobre a responsabilidade e a ação do Estado, enquanto gestor do interesse público, incorpora reflexões intrínsecas a uma democracia representativa. Contudo, considerando-se que, no conjunto de sociedades democráticas, são variáveis as limitações e as tendências de alcance institucional, dada à historicidade e às particularidades da realidade vivida, a discussão é direcionada ao contexto democrático em que se insere esta tese, observando-se os limites e as possibilidades de aproximação conceitual.

Esta responsabilidade relaciona-se à legitimidade constitucional do Estado para regrar e controlar a vida social, estabelecendo os deveres e assegurando as liberdades individuais. Portanto, o Estado regula, também, o que se pode fazer individualmente ou em grupo, para pessoas físicas ou juridicamente constituídas. Como diz Foucault (2004, p. 88), na “arte liberal de governar, essa liberdade de comportamento está implicada, é convocada, tem-se necessidade dela, vai servir de reguladora, mas para tanto tem de ser produzida e tem de ser organizada”. Logo, a liberdade é produzida a cada instante, nos momentos em que o Estado arbitra a segurança e a liberdade, a partir do acionamento constante do sentido de perigo para colocar o indivíduo em permanente tensão em relação à vida, ao futuro, à realidade. Por isto, mesmo em um Estado de direito, com regência constitucional, a relação entre governo e sociedade não é isenta de tensionamentos. São constantes e renováveis as tensões, historicamente constituídas, que dinamizam e reorganizam as fronteiras entre as dimensões pública, relativa à responsabilidade do Estado pelo bem comum, e privada, relativas ao âmbito particular, à vida que se passa no âmbito familiar e íntimo.

Essas relações podem ser compreendidas a partir do uso axiológico dos termos, que conduz a duas concepções diversas da relação entre público e privado, definidas, segundo Bobbio (2001), como o primado do privado sobre o público e o primado do público sobre o privado. Neste sentido, o primado do privado sobre o público remete ao alargamento da esfera privada sobre a esfera pública (redução do Estado aos mínimos termos), ou seja, a maior autonomia da esfera privada (particular) do indivíduo frente ao Estado. Em contraponto, o primado do público sobre o privado representa a reação contra a concepção liberal do Estado e, consequentemente, a derrota do Estado mínimo. “Ele se funda sobre a contraposição do interesse coletivo ao interesse individual e sobre a necessária subordinação, até à eventual supressão, do segundo ao primeiro” (BOBBIO, 2001, p. 24), assumindo que o ente coletivo – a nação, a classe, o povo – deve prevalecer ao indivíduo, ou seja, como regra geral entre todas as teorias do primado do público, o todo deve vir antes das partes. Logicamente, na direção oposta, o primado do público sobre o privado significa o avanço da interferência do Estado, por meio da regulação, sobre o comportamento dos indivíduos e grupos infraestatais.

Está em oposição à emancipação da sociedade civil em relação ao Estado, conquistada pela classe burguesa, durante a constituição dos Estados democráticos modernos. Com isso, o primado do público sobre o privado é interpretado como a vitória da política sobre a economia, pois resulta da ampliação da intervenção do Estado na regulação da economia, em

movimentos que são denominados de “publicização do privado”27 e são característicos da

sociedades democráticas contemporâneas. Por outro lado, este processo é complicado pelo inverso, que representa “a revanche dos interesses privados através da formação dos grandes grupos que se servem dos aparatos públicos para o alcance dos próprios objetivos” (BOBBIO, 2001, p. 27).

Trata-se de relações que tornam cada vez mais fluidas as barreiras entre o público e o privado e, no limite, convergentes ou imperceptíveis. Para o Estado, este cenário conduz à sofisticação dos métodos de intervenção, que não se confunde com a tirania de regimes de governo não democráticos, cujo poder é absoluto e que tem como prática legítima a ocultação e a reserva de informações. Tendo-se como pressuposto a liberdade da economia, de um lado, e a igualdade democrática, de outro, o desafio está em definir até que ponto os interesses privados podem avançar sem que representem perigo ao interesse público, e vice-versa. Esse contexto será interpretado à luz da noção de biopolítica, com base em Foucault (2004).

O objetivo de Foucault (2004) é mostrar como o liberalismo fundamenta a inteligibilidade da biopolítica. A proposta esteve em revisar os pressupostos do liberalismo clássico, e em suas versões contemporâneas, o liberalismo alemão dos anos 1948-1962 (ordoliberalismo) e o neoliberalismo americano da Escola de Chicago, para então chegar à biopolítica. Assim, o termo surge com a reflexão sobre o Estado moderno, o qual acumula, ao longo dos séculos, funções governamentais de controle de fenômenos que tocam diferentes estágios da vida dos indivíduos e das populações, do nascimento à morte, “em uma palavra, assumiu a função de produção e reprodução da vida das populações” (CANDIDO, 2013, p. 149). Entende-se que tais funções seriam estritamente ligadas, e até justificadas, à premissa do interesse público.

A biopolítica consiste, então, enquanto elemento político estratégico, em um conjunto de biopoderes organizados em torno de distintos saberes28, sobretudo aqueles que permitem a

quantificação e organização e classificações estatísticas, que quantificam e categorizam a realidade. Objetiva o controle de processos biológicos coletivos, entre os quais estão a reprodução, a longevidade, a natalidade e a mortalidade (CANDIDO, 2013) e, intenta, suprir as limitações da descrição dos micropoderes, por meio dos dispositivos de controle do corpo e dos indivíduos. Estes, exemplificados por casas prisionais, escolas, fábricas, hospitais, forças

27 Neste sentido, traz-se a discussão acerca da biopolítica na Tragédia Kiss, onde economia e política cruzam-se no debate público e na constituição do acontecimento público.

28 Considera-se que estes distintos saberes cercam a Tragédia Kiss representados pelas instituições e áreas de conhecimentos envolvidos antes, durante e depois do acontecimento, como política, economia, segurança, comunicação. Estes são retratados neste estudo enquanto atores envolvidos no acontecimento.

armadas, etc., organizados em torno da adaptação da diversidade de homens aos aparelhos de produção. A serviço, portanto, da produção capitalista, não apenas no sentido econômico, mas do saber (nas escolas) e de forças de combate (nas forças armadas), por exemplo.

A política neoliberal não irá se ocupar dos efeitos maléficos da economia sobre a sociedade, a sua intervenção será sobre a sociedade, “para que os mecanismos concorrenciais, a cada instante e em cada ponto da espessura social, possam ter o papel de reguladores e é nisso que a sua intervenção vai possibilitar o que é o seu objetivo: a constituição de um regulador mercado geral da sociedade” (FOUCAULT, 2004, p.199). Não se trata, pois, de um governo preocupado estritamente com a economia, mas de um governo de sociedade. A sua ação sobre a sociedade está em tornar o mercado possível, submetendo-a a dinâmica concorrencial na instauração de uma ética social da empresa. Como referenciam Martins e Peixoto Junior (2009, p. 6), ao contrário da disciplina que atua sobre o indivíduo, “a biopolítica focaliza a massa humana: o que interessa são os processos de conjunto, suas modulações e as variáveis que os afetam”. Diz respeito à população; enquanto que, o poder disciplinar tem o corpo como alvo de domesticação.

Simboliza a transição do homem consumidor ao homem da produção e da empresa, por meio da ação sobre as unidades de base, na gestão das pequenas coisas, de modo que as práticas cotidianas, na família, na escola, na vizinhança, reproduzam as formas de empresa. O indivíduo passa à condição de capital humano, composto de elementos hereditários e de outros adquiridos. Por isso, os aprimoramentos na área da genética auxiliam, por exemplo, na prevenção de doenças, pela possibilidade de mapeamento do risco de se contrair alguma doença, em determinada fase da vida. Da mesma forma, interferir na geração de descendentes de casais que pertençam a algum grupo de risco em relação ao desenvolvimento de doenças hereditárias. Neste sentido, entram os métodos contraceptivos. Além disto, os elementos inatos são desenvolvidos durante a vida e exigem investimento afetivo, financeiro, cultural, educacional, todos decisivos na formação do capital humano.

Assim, a moldura social passa a ser o mercado, a concorrência. Na medida em que se estimula a concorrência, multiplicam-se os atritos da diversidade do “mercado”, o que implica na necessária arbitragem jurídica pelo Estado. A única forma de intervenção na economia e no mercado é por meio da lei. O Estado de direito tem como característica que toda a ação do poder público está emoldurada em pressupostos normativos, que a limitam previamente. Portanto, o Estado é obrigado pela lei formal. Por isto, sociedade empresarial e sociedade judiciária, diz Foucault (2004), são as duas faces de um mesmo fenômeno e implica na

necessária adaptação legislativa, em cada época, para assegurar a liberdade e a eficiência do mercado. Portanto, o imperativo do mercado não pode esbarrar na burocracia estatal.

Para a sociedade civil, os resultados do vínculo econômico levam a duas direções distintas. Em primeiro, une pela convergência de interesse. Em segundo, e contrariamente, é dissociativo, uma vez que os vínculos de “compaixão, de benevolência, do amor ao próximo, do sentimento de comunidade dos indivíduos um em relação aos outros” (FOUCAULT, 2004, p. 411) serão conflitivos com o econômico, que tende a tornar os indivíduos mais egoístas. No interior dela, configuram-se diferentes papéis entre os que lideram e os que se subordinam, entre os que emitem opiniões e os que se limitam a ouvi-las, o que sugere a formação espontânea de poder, sustentada pelas diferenças entre os indivíduos que a constituem. A moldura jurídica vem, por conseguinte, depois que as relações de poder já se estabeleciam.

Pode-se considerar que, nestas relações, os meios de comunicação, enquanto dispositivos mediadores entre os interesses políticos e econômicos com os cidadãos, atuam na legitimação estratégica por meio da difusão de elementos simbólicos orientados à produção e ao consumo de bens, em larga escala. Para além de uma estratégia estatal-governamental, a biopolítica incorpora entre os seus atores, inclusive, o próprio indivíduo, uma vez que, nele, são feitos investimentos para ampliar a sua competência profissional, a capacidade de produção, de inovação e de poder de consumo.

O homem, nesta lógica, transfigura-se em capital humano, que transcende a análise da questão da produtividade relacionada a investimentos em técnicas e tecnologias de produção e ao número de trabalhadores. Conduz, então, à qualificação de uma análise que não deve ser restrita à quantificação de dados estatísticos. Como diz Foucault (2004, p. 319), “é para esse lado, de fato, que se vê claramente que se orientam as políticas econômicas, mas também as políticas sociais, mas também as políticas culturais, as políticas educacionais, de todos os países desenvolvidos”. Trata-se, portanto, de finalidades convergentes, no atravessamento político-estratégico de múltiplos campos, por meio de instituições com menor legitimidade que o Estado, mas que não são isentas de poder.

Estas estratégias e interesses, mesmo que amplamente pulverizados, entretanto, não impedem crises de governabilidade, decorrentes das liberdades concedidas pelo Estado. Foucault (2004) reconhece esta possibilidade quando atenta para os resultados contrários aos objetivos inicialmente pretendidos em medidas adotadas pelo poder público. Assim, por exemplo, pode-se pensar, a desburocratização de processos estatais para deixar fluir a economia, com a flexibilização da lei, para agilizar a dinâmica concorrencial do mercado, e outros aspectos tangenciais serem negligenciados. Em havendo quaisquer consequências

problemáticas disto, é possível que emerjam revoltas com as práticas adotadas pelo Estado, gerando crise de governabilidade, quão mais grave o morbo ocasionado. Em momentos episódicos, como o escândalo político ou a tragédia, podem ser evidenciadas as fragilidades do controle, da regulamentação e da administração governamental. Porém, a mesma lei que antecede e emoldura a ação do Estado é a que pune, em havendo a transgressão.

Esses pressupostos teóricos esclarecem que se constitui, então, uma rede de saberes, com a centralidade do Estado de direito, que converge para a dinamicidade da economia, por meio da livre concorrência, para que, desde o indivíduo, que se insere nessa lógica enquanto indivíduo-empresa (FOUCAULT, 2004), predomine o imperativo do mercado. Neste sentido, compreende-se a recusa da velhice e o escamoteamento da morte – abordadas no capítulo cinco – ancoradas e sustentadas pela crença produzida da juventude – força de trabalho, capital humano – eterna.

Diante desses aspectos, na análise do acontecimento público Tragédia Kiss, que desequilibra as relações entre Estado e sociedade, pois tensiona a credibilidade de instituições e as estratégias estatais de controle. Originária de encontros nodais, de relações estabelecidas em torno de temas de interesse público, compreende-se a comunicação como

[...] espaço tensivo que gira ao redor do fosso-torto, [...], em que um acontecimento pode engendrar a política, a mudança, ou seja, a transformação de mundo a partir de uma descontinuidade efetiva, de uma singularidade definida como ente cujo pensamento não pode reduzir-se a seu contexto mundano (PRADO, 2015, p.119, grifos do autor).

Assim, por meio da comunicação e das dinâmicas sociais mobilizadas a partir do acontecimento trágico, pode-se apontar que, “há, por assim dizer, uma potência da infinitude nesse sofrimento de indeterminação, que as convocações biopolíticas e midiáticas buscam esconjurar, medicalizando todo sintoma que aponta para uma paixão desabilitadora do actante-do-capital-do-eu” (PRADO, 2015, p.120). Essas intervenções da biopolítica e da mídia tendem a ser reconhecidas a partir da esfera de visibilidade pública que visibiliza as ações e interesses das Redes de Comunicação Pública, temas abordados no próximo capítulo.