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PARTE II FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

CAPÍTULO 4 – ACONTECIMENTO PÚBLICO E MORTE COLETIVA

4.4 A CONSTRUÇÃO JORNALÍSTICA DO ACONTECIMENTO

Neste subcapítulo, acerca do jornalismo e acontecimento jornalístico, abordam-se os critérios que definem a noticiabilidade ou não, as fontes da notícia e a atuação estratégica em busca da geração de notícias. Entende-se que, enquanto prática com legitimidade social, os noticiários são alvo de disputas entre os atores que participam da rede comunicação pública, ao mesmo tempo em que detém autonomia para investigar, informar e expressar opiniões sobre os fatos. Por isso, torna-se necessário conhecer as rotinas de produção e as condições de acesso à visibilidade jornalística, tendo-se os procedimentos mais ou menos estandartizados da produção cotidiana.

Conforme Franciscato (2005), a seleção dos fatos cotidianos passa pelos “critérios de noticiabilidade”. Eles designam “um conjunto de referências estáveis na rotina jornalística de trabalho que, analisadas em sua regularidade, revelariam a noticiabilidade de um evento” (FRANCISCATO, 2005, p. 171). A partir deles, a compreensão do objeto notícia se tornou mais precisa. Ainda assim, pondera o autor, a notícia corresponde a expectativas “e influências de ordem cultural, expressiva e emotiva por parte do público ao qual se destina” (idem, p. 172), o que torna a tarefa mais complexa do que a relação de critérios estandardizados e incide sobre a credibilidade da instituição jornalística.

Traquina (2002, p. 194) diz que “os critérios substantivos dos valores-notícia [...], implicam um pressuposto sobre a natureza consensual da sociedade”, que os próprios valores- notícia contribuem para forjar. Logo, remete à ideia de nação, de unidade, e ganha sentido político ao subjugar as diferenças estruturais entre grupos sociais distintos e “sem este conhecimento consensual de fundo, nem os jornalistas nem os leitores poderiam reconhecer o primeiro plano das notícias” (idem, ibidem). A partir dele, tem-se a noção do que é crime, do que é conflitivo, do que é transgressivo.

São elementos estruturais de fundo que permitem definir o que é legítimo e ilegítimo, a norma e o desvio. Neste sentido, “dentro desta esfera, os jornalistas não se sentem compelidos a apresentar pontos de vista opostos e, na verdade, sentem frequentemente como sua responsabilidade agir como advogados ou protectores cerimoniais de valores de consenso” (TRAQUINA, 2002, p. 195).

Ligados aos valores-notícia estão os aspectos contextuais da construção da notícia, e que não dizem respeito, portanto, às características do acontecimento. O primeiro deles é a disponibilidade, isto é, a facilidade de realizar a cobertura do acontecimento quanto à logística de pessoal e equipamentos, bem como à capacidade de investimento da empresa jornalística. O segundo aspecto é o equilíbrio, que está em avaliar se já há algo novo a dizer sobre um assunto já coberto pela empresa jornalística. O terceiro valor-notícia relativo ao contexto é a visualidade, que é a existência e a qualidade de imagens do acontecimento. O quarto é a concorrência de outras empresas jornalísticas, o que leva à busca pela exclusividade, de mostrar o que o outro ou os outros veículos não têm, o que dá maior valor-notícia ao assunto. Por outro lado, é necessário ter também o que os outros têm, para não permitir a exclusividade do concorrente. Por fim, o critério do dia noticioso.

Os acontecimentos do dia competem pela notícia, o que leva aos critérios de seleção. Estes são os valores-notícia utilizados para selecionar, entre os acontecimentos do dia, aqueles que serão noticiados e os que serão esquecidos. Em alguns dias ou épocas, há mais a dizer do que em outros. Entre os critérios de seleção, a morte está entre os que alcançam o consenso da comunidade jornalística, pois, como sintetiza Traquina (2002, p.187), “onde há morte, há jornalistas”.

Os valores-notícia são construções culturais compartilhadas entre os profissionais. Porém, há aspectos relativos à política editorial da empresa que são decisivos para a seleção dos acontecimentos e alocação da notícia no jornal, como, por exemplo, a criação de caderno específico sobre o assunto. Eles não são imutáveis e estão sujeitos às condições sócio- históricas em que se insere a organização jornalística e são sensíveis à política editorial da

organização. E não há regras que indiquem quais devem se sobrepor às demais. Tais critérios tendem a delimitar os contornos do acontecimento em questão.

As definições do que é notícia estão inseridas historicamente, e a definição de noticiabilidade de um acontecimento ou de um assunto implica um esboço da compreensão contemporânea do significado dos acontecimentos como regras do comportamento humano e institucional (TRAQUINA, 2002, p. 203).

Rodrigues (1993) diz que, do ponto de vista jornalístico, previsibilidade de acontecer e probabilidade de se tornar notícia, são grandezas inversamente proporcionais. Nas palavras do autor, “o acontecimento é imprevisível, irrompe acidentalmente à superfície epidérmica dos corpos como reflexo inesperado, como efeito sem causa, como puro atributo” (RODRIGUES, 1993, p. 29), enquanto que o previsível está relacionado ao racional, à sucessão monótona das causas, regido por regularidades e por leis. Nesta perspectiva, a probabilidade de ocorrência é o elemento que distingue o acontecimento jornalístico da infinidade de acontecimentos possíveis.

Ele é, portanto, digno de ser notado, segundo registros de notabilidade, entre os quais estão, segundo Rodrigues (1993), a falha, o excesso e a inversão. A primeira, relacionado aos equívocos ou à insuficiência no funcionamento normal e regular dos sujeitos envolvidos, como, por exemplo, quando os sistemas de segurança não impedem a irrupção de uma tragédia. Em segundo, caracterizado pelas marcas excessivas derivadas do funcionamento ou da insuficiência dos corpos envolvidos. Assim, relacionado ao primeiro, o número elevado de mortes derivado da insuficiência dos sistemas de segurança, permite ilustrar este registro. Em terceiro, o registro da inversão corresponde aos acontecimentos subversivos, em que os acontecimentos contrariam as expectativas, como, por exemplo, a morte, de jovens, em uma noite de festa.

Segundo Sodré (2009, p. 59), o fato bruto e o acontecimento jornalístico se distinguem, sobretudo, porque este é configurado depois daquele, “quando se produz o trabalho logotécnico de determinação das circunstâncias – apuração dos detalhes, realização de entrevistas, portanto, mobilização de parcelas do público, que são também ‘atores’ do acontecimento”. Para se tornarem notícia, as informações são submetidas ao crivo da produção jornalística, com protocolos destinados a lhe conferir um efeito de verdade junto aos espectadores, em acontecimentos não testemunhados. Devido à confiança atribuída aos relatos em primeira pessoa, há o esforço das equipes de televisão de se deslocar até o local e, de lá, relatar o que se passa (SCANNEL, 2009).

Benetti (2012) pontua a especificidade do acontecimento jornalístico, que, para a autora, não se confunde com o acontecimento midiático, que é mais amplo, pois contempla modalidades que incluem a ficção; enquanto que a produção da notícia deve estar ancorada na realidade. Na mesma direção, Sodré (2009) reconhece a especificidade da notícia, que é constituída, para além dos profissionais midiáticos, de atores extramidiáticos, como fontes oficiais e atores especializados em áreas específicas, “que bem podem ser vistos como personagens de um enredo em busca de verossimilhança” (SODRÉ, 2009, p.41).

Entretanto, ele reconhece a presença de elementos ficcionais no discurso jornalístico. Não se trata, pois, de “manipulações deliberadas, nem de mentiras, mas de interpretações que podem muitas vezes lançar mão de recursos típicos da ficção literária, com vistas à criação de uma atmosfera semântica mais compreensiva” (SODRÉ, 2009, p. 15). Mesmo com o pressuposto histórico da neutralidade, a notícia não prescinde do apelo emocional contido nos estereótipos “que derivam das ficcionalizações ou dos resíduos míticos” (SODRÉ, 2009, p. 16). Segundo ele, a parte excessiva do acontecimento o leva por meio da narrativa “para algumas das águas turvas de onde surge a ficção” (idem, ibidem).

As fontes prestam um serviço ao público e ao jornalismo, ao oferecerem a notícia. Em entrevista coletiva ou em almoço com os setoristas de um veículo de imprensa, “os meios pegam essa notícia e se encarregam de lhe dar forma adequada e difundi-la” (GOMIS, 2004, p. 104). O aspecto testemunhal tem incidência sobre o valor de verdade das informações, pois só quem presenciou pode relatar o que se passara de fato. Além disto, tem incidência moral e comunicativa, pois a quem testemunhou é conferido o direito de avaliar, de opinar e de julgar o que se passara.

Pedemonte (2010) observa a influência de atores extramidiáticos sobre o jornalismo, estabelecendo-se relações de poder, em torno do “controle” do acontecimento jornalístico. São os casos cuja representação nos media traz à tona um conflito estrutural latente, que até então era encoberto por um discurso público dominante que sustenta a existência de um conflito conjuntural. Este tensiona o sistema político, mas a sua resolução é mais simples, em curto prazo, por meio de decisões políticas ou pela extinção natural das suas causas. Já o conflito estrutural se inscreve na estrutura social como um elemento constitutivo, só corrigido com a modificação do sistema, pelo enfrentamento entre grupos sociais e políticos. Portanto, vinculado a crises institucionais e políticas, com resolução em longo prazo. Quando se trata de um assunto controverso, a prática profissional manda que se “ouça todos os lados”, isto é, que se compile o maior número possível de versões (SODRÉ, 2009).

É determinante, nesse processo, a permanência jornalística do acontecimento – pela acumulação de experiências semelhantes, opiniões de especialistas e as conversas geradas a partir do tema – que remete a outra agenda, mais abstrata e permanente - levam à passagem de protagonistas individualizados a institucionais, de causas facilmente detectáveis ou explícitas à dificuldade de defini-las e, acima de tudo, da curta duração ao longo prazo (PEDEMONTE, 2010).

É a abertura do horizonte de possíveis, o caráter incontrolável do acontecimento. Quão mais visível e em movimento, maior o seu poder de revelação e as consequências que podem resultar. A centralidade do jornalismo nesse processo está na sua credibilidade, que

[...] sustenta, portanto, o conhecimento jornalístico, não com a garantia da verdade lógica, e sim com a caução da veracidade, entendida como verossimilhança ou como um apego, uma inclinação, para a verdade consensualmente estabelecida em torno do fato – uma verdade “prática”, portanto, referente à ação humana no espaço social (SODRÉ, 2009, p. 48).

Considera-se que acontecimento jornalístico é um fato marcado, “portanto, mais determinado para o sistema da informação pública do que outros existentes” (SODRÉ, 2009, p. 75), o que significa que têm poder de noticiabilidade, ancorado em valores-notícia, estes que o são “na medida em que há algum consenso sobre eles como critérios de localização e descrição de fatos, marcados em função das exigências gestionárias da cidade” (idem, p. 76). Os fatos não marcados têm menor potencial de se tornarem notícia.

Nem tudo no mundo jornalístico é ruptura, mas a referência a uma normalidade é um referente fundamental. O inesperado é o momento mágico para os jornalistas e “estar no centro do vulcão da cobertura jornalística de um acontecimento inesperado corresponde a um momento histórico da carreira que os jornalistas podem contar aos netos” (TRAQUINA, 2002, p. 205). Para o autor, os acontecimentos excepcionais são tipificados como mega- acontecimentos, que alcançam um consenso quanto à noticiabilidade. Eles alteram a rotina de produção, mudam as características editoriais, mobilizam as equipes, geram boletins com notícias atualizadas constantemente.