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PARTE II FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

CAPÍTULO 4 – ACONTECIMENTO PÚBLICO E MORTE COLETIVA

4.3 ACONTECIMENTO MIDIÁTICO

Quando ocorre um acontecimento emerge, o primeiro esforço da mídia está em “informar sobre aquilo que passou e sobre as consequências imediatas para as pessoas mais particularmente afetadas” (SCANNEL, 2009, p. 37). Aí está, para Charaudeau (2011, p. 71), o primeiro paradoxo37 da nossa relação com o mundo “é quando o vemos na sua

instantaneidade que mais nos escapa o seu significado”. Como diz Dayan (2011), entram em ação as performances de jornalistas e dos públicos, que buscam identificar o acontecimento, reconhecê-lo e inseri-lo em um “mapa cognitivo”. Devido à convulsão de imagens vindas de fontes que testemunharam o caso, os jornalistas ficam em situação de recepção siderada, a exemplo dos espectadores. As performances se assemelham neste aspecto, mas diferem em relação à visibilidade. A do jornalista é explícita, enquanto à do espectador, não. Aos poucos, é midiatizado e passa a ter inserções ao vivo.

A tragédia viaja o mundo e, instantaneamente, passa a ser possível “vivenciá-la”, com, pelo menos duas formas de distanciamento. Segundo Silverstone (2009, p. 167), a primeira distância é a “a que separa o acontecimento da sua representação, a realidade da sua imagem”. E o segundo distanciamento “separa a imagem das realidades da vida quotidiana, nas quais essas imagens se refletem e são absorvidas (ou não) noutro fluxo, a continuidade rigorosa da rotina quotidiana” (SILVERSTONE, 2009, p. 167), que já não é mais o que era.

Com a imagem da televisão, principalmente, que nos toma sempre de surpresa, e choca a todos em cheio (NORA, 1974) é possível a sensação de participar. É uma participação sem participação, mistura entre intimidade e distância, enquanto meio para vivenciar a

37 Segundo Charaudeau (2011), há um segundo paradoxo relativo à percepção de uma mudança no mundo pela televisão, pois quando “creio que a televisão me mostra os acontecimentos do mundo, é ainda de mim que se trata” (p. 72). Juntam-se aí, a ininteligibilidade do acontecimento, manifesto materialmente e percebido na sua instantaneidade, e a ininteligibilidade do meio transmissão que, enquanto medium, leva o telespectador para o outro lado do espelho, refletindo-lhe. Neste caso, o paradoxo se refere ao fato de o espectador, enquanto parte do mundo material e simbólico refletido pela tela e percebido por ele.

história contemporânea. Hoje, complementada principalmente pelas tecnologias de comunicação digital, a convergência midiática e a sociabilidade mediada por esses dispositivos, a participação é reconduzida à outra dimensão, para além da perspectiva contemplativa.

A força do acontecimento, sobretudo as catástrofes, é capaz de alterar a sequência da programação midiática. Como diz Silverstone (2009, p. 164), “só as catástrofes podem interromper o fluxo e a ordem da representação mediática. Só as interrupções desta ordem e deste fluxo podem ser consideradas catástrofes”. Por todos os sentidos que aciona e atores que mobiliza, elas podem ser relacionadas à definição de Nora (1974, p. 246) como

[...] aqueles (acontecimentos) em que os factos se furtam e apelam para a crítica da informação, a confrontação das testemunhas, a dissipação do segredo mantido pelos desmentidos oficiais, o pôr em causa de princípios que fazem apelo à inteligência e à reflexão, apelo obrigado a um acontecimento prévio que só a imprensa escrita pode fornecer e recordar.

Com isso, o acontecimento não está integralmente contido na imprensa escrita, mas destaca a relevância desta em alguns episódios particulares, assim como o rádio, com a palavra falada, e a televisão, com a imagem.

Charaudeau (2013) aborda a construção do acontecimento midiático a partir da relação dialética entre dois processos: transformação e transação. Em primeiro, a transformação constitui-se da passagem do mundo a descrever, “o mundo-objeto”, ao mundo midiático construído, a notícia ou objeto-sentido. Em segundo, ao processo de transação “consiste, para a instância midiática, em construir a notícia em função de como ela imagina a instância receptora, a qual, por sua vez, reinterpreta a notícia à sua maneira” (CHARAUDEAU, 2013, p. 114). Extraído em seu “estado bruto”, ele é organizado e “midiatizado”, tornando-se elemento de sentido para o enunciador e para o sujeito postulado, o enunciatário.

Como diz Nora (1974, p. 247), “os mass media transformam em actos aquilo que poderia ser apenas palavra no ar”, e, considera-se complementar que a mídia é capaz de constituir uma realidade própria, mas “isto não quer dizer que todo e qualquer acontecimento seja um mero artefato midiático, independente da dinâmica social, e sim que a mídia também produz efeitos de real” (SODRÉ, 2009, p. 25).

Neste processo, a produção do significado depende de uma dupla leitura, uma dupla construção: daquele que publiciza a versão que dele faz, a mídia e o jornalismo, sobretudo; e daquele que o interpreta.

Mortos são mortos, [...] mas sua significação evenemencial, o fato de que esses mortos sejam designados como parte de um ‘genocídio’, de uma ‘purificação étnica’, de uma ‘solução final’, de que sejam declarados ‘vítimas do destino’ (catástrofe natural) ou da ‘maldade humana’ (crime), depende do olhar que o sujeito humano lança sobre esse fato, ou seja, as redes que ele estabelece, através de sua própria experiência, entre diversos sistemas de pensamento e de crenças (CHARAUDEAU, 2013, p. 99).

Nesta perspectiva, o autor considera a causalidade do acontecimento como fenômeno que se impõe ao sujeito que narra, que o interpreta e o constitui em discurso, orientado ao outro, a quem postula. Porém, destaca que o acontecimento é sempre uma construção, ligada ao universo do discurso, e que a sua interpretação varia conforme o olhar de quem o recebe.

A seleção e a construção dos acontecimentos ocorrem segundo o seu potencial de atualidade, de socialidade e de imprevisibilidade. O primeiro relacionado à imediaticidade, à urgência e à proximidade espacial; o segundo, vinculado à expectativa da audiência (plural), responde à condição de pregnância do receptor; e, o terceiro, corresponde à surpresa, ao inesperado, que perturba o sistema de expectativas do consumidor da informação (CHARAUDEAU, 2013).

Interessa ao autor, o processo evenemencial do acontecimento, que se estrutura em três pilares: uma modificação no mundo fenomenal (desequilíbrio); a percepção dessa mudança pelos sujeitos por ela implicados (efeito de saliência) e que essa percepção “se inscreva numa rede coerente de significações sociais por um efeito de pregnância” (CHARAUDEAU, 2013, p. 100). Contempla, respectivamente: uma modificação nos seres implicados pelo acontecimento, a passagem de um estado A para um estado B, provocando a instabilidade em relação aos sistemas que fundam a ordem/convicção; a percepção de um sujeito capaz de identificar o que provoca o “efeito de saliência” no estado regular do mundo; e, por último, que a significação da mudança seja notável “para o sujeito como ser social”, que a interpreta e a problematiza a partir de um conjunto de causalidades que justificam a sua ocorrência.

A isto implica um “ato de intervenção deste sujeito que atenda a um novo desejo de reorganização do mundo, através de uma recategorização semântica” (CHARAUDEAU, 2013, p. 100), que gera novas saliências: modificação, correção, preenchimento de lacunas dos sistemas de inteligibilidades já existentes, acréscimo de novos.

Para Arquembourg (2011, p. 113), além dos efeitos de sentido do discurso midiático, ressalta que é necessário unir as abordagens que “fazem dos acontecimentos, por um lado, objectos da realidade e, por outro, produtos de fabrico mediático”. Ela diz que, no sentido existencial, os acontecimentos “não aderem de forma perfeita aos contornos nem à temporalidade dos acontecimentos mediáticos. Sobretudo, excedem o tempo da presença dos

públicos e, mais do que se darem a ver, escondem-se no coração das imagens, mas a sua presença está nelas inscrita” (ARQUEMBOURG, 2011, p. 118). Ou seja, nem consumados no real, nem somente produto de uma construção exclusiva do campo midiático. Às rupturas que ocasiona, é correlato um índice de indeterminação, que é atenuado aos poucos, com um trabalho de determinação que mobiliza diversos atores, sobretudo na mídia e no jornalismo.

Desse trabalho investigativo, novos elementos são incorporados, desencadeando novos sentidos, ações e reações, que ampliam o horizonte de possíveis. O esforço passa a ser, neste cenário, apoderar-se e fechá-lo o mais depressa possível e, “neste jogo, alguns actores são mais fortes ou mais autorizados do que outros” (ARQUEMBOURG, 2011, p. 114). E as autoridades Estatais, quando se trata de problemas públicos, assumem este protagonismo, mas é uma tarefa que nunca se completa. Em sentido oposto ao trabalho de encerramento do sentido de atores autorizados, está o aparecimento dos imprevisíveis inerentes a qualquer acontecimento, que podem restaurar a desordem e a instabilidade aparentemente controladas, ou, inaugurar outras fontes de instabilidade. Daí, a permanência de acontecimentos complexos como o atentado terrorista, de 11 de setembro, nos Estados Unidos.