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PARTE III – VISIBILIDADE E PERMANENCIA DO ACONTECIMENTO

CAPÍTULO 5 – METODOLOGIA

5.1 MÉTODO GENEALÓGICO E PESQUISA DOCUMENTAL

A pesquisa histórico–descritiva desenvolvida a partir do método genealógico e de pesquisa documental visa a reconstituição e análise das redes comunicação pública instauradas no acontecimento público Tragédia Kiss, observando-se a visibilidade e o debate promovidos. O método genealógico adequa-se à análise das redes, visto que enfatiza a

abertura, o sentido inacabado, própria do hipertexto, das relações contemporâneas em rede e da pluralidade de vozes que compõem o debate público. Ademais, próprio à análise de um acontecimento público originário da morte coletiva, que mobiliza Estado, mídia e sociedade e permite ver a diversidade de atores comunicantes e a atividade das Redes de Comunicação Pública.

Neste sentido, salienta-se que o acontecimento público é situado social e historicamente, tem poder hermenêutico e que, em razão disso, pode-se, nesse momento, analisá-lo em sua tessitura, em seus pontos centrais e periféricos, no que tange a comunicação pública e o que a envolve. Ao mesmo tempo em que ele lança ao debate público temas de interesse público ligados a sua especificidade, aciona outros que convergem para ele e que pertencem a campos distintos.

Reconhecer essa tessitura e a complexidade da constituição histórica de um acontecimento é próprio do método genealógico, criado por Nietzsche no fim do século XIX e desenvolvido posteriormente por Michel Foucault, que pressupõe que sentidos, valores e crenças, bem como acontecimentos, são produções culturais e intencionais, cuja dinamicidade é constitutiva e processual.

A genealogia permite um caminho não linear, que se opõe à pesquisa de origem e à causalidade, uma análise multifocal, de forma a

[...] marcar a singularidade dos acontecimentos, longe de toda finalidade monótona; espreitá-los lá onde menos se os esperava e naquilo que é tido como não possuindo história – os sentimentos, o amor [...]; apreender seu retorno [...] para reencontrar as diferentes cenas onde eles desempenharam papeis distintos; e até definir o ponto de sua lacuna, o momento em que eles não aconteceram (FOUCAULT, 2014, p. 15). Neste caso, na análise da comunicação pública e dos sentidos em disputa, trata-se de relações de poder entre os atores da rede, que disputam versões para alcançar a credibilidade dos públicos e a opinião pública. Estes atores, que serão identificados, constituem – tem-se como premissa - o acontecimento público Tragédia Kiss.

Tendo-se como horizonte as tentativas de exercício de poder, através do debate público, trata-se da comunicação, as estratégias para a obtenção de visibilidade e proposição de sentidos, que, apropriados por outros atores após alcançarem a esfera de visibilidade pública, podem ser resignificados e reinseridos no debate, em argumentos – e visibilidades – convergentes ou conflitivos ao que o antecede. Compreende-se, assim, que as relações comunicativas constituem-se pela luta constante entre atores e a defesa de seus interesses, os

quais são tensionados mutuamente, com força e intensidade variável, conforme a relação com o tema ou motivo que os aproxima.

Nesta direção, a análise parte em direção aos processos comunicacionais para alcançar os atores que constituem as Redes de Comunicação Pública que se originam do acontecimento e cujo debate propiciado incide sobre ele. A análise genealógica pressupõe a decifração de correlações, pois o “roteiro da investigação compõe-se de dois passos fundamentais: 1) a identificação de componentes situacionais, de condições presentes, e 2) a interrogação sistemática de como este estado presente chegou a ser” (THIRY-CHERQUES, 2010, p. 237). Neste estudo, a análise identifica que os processos comunicacionais contemplam dados sobre o passado da boate Kiss - revelados após o incêndio - e a sequência de micro-acontecimentos posteriores. Portanto, entende-se que as redes de comunicação abordam assuntos anteriores à tragédia, tematização remissiva - como a concessão de alvarás e a fiscalização de prefeitura municipal e Corpo de Bombeiros - e que antecedem o marco zero, bem como de temas relativos ao que ocorre após o 27 de janeiro de 2013.

Interessam as recorrências, as negociações, os interesses em jogo, não a linearidade ou as progressões do fato, pois se ocupa “[...] não do que aconteceu, da história, mas do que nos aconteceu, do que aconteceu ao objeto. [...] A cada vez temos que superar o “trauma do referente” (THIRY-CHERQUES, 2010, p. 235). A genealogia é analítica, não interpretativa, pois descreve a história das interpretações, a partir da elucidação de condicionamentos e regras dos discursos e suas práticas. Assim, há ênfase ao não discursivo, às instituições e aos atores que controlam o acontecimento, nas rupturas e nas regras que o constituem (THIRY- CHERQUES, 2010).

A adoção do método genealógico, do sentido de poder de Foucault (2014) e da noção de rede de comunicação pública de Weber (2007), conduz a análise a uma perspectiva complexa, que possibilita reconhecer os diversos atores que participam da constituição do acontecimento, sem influências verticalizadas ou a cristalização de sentidos hegemônicos. O poder em Foucault (2014) não é determinado por estruturas ou institucionalidades, não é central ou estável, ele é dinâmico.

Ele deve ser procurado no entorno das instituições usualmente reconhecidas como centros de poder. Entende-se que ele é radial e que é possível identificar os pontos tensionais e alcançar os sentidos periféricos e de exercício de poder, porque “se produz a cada instante, em todos os pontos, ou melhor, em toda relação entre um ponto e outro” (FOUCAULT, 2014, p. 101). O poder é efeito, consequência, pois resulta do encadeamento e da mobilidade das partes que o produzem, dos fluxos, das estratégias e dos pontos de vista diversos que

tensionam-se. O poder é pulverizado e exercido por vários pontos de uma rede (FOUCAULT, 2014).

A partir destes pressupostos, o diálogo proposto com a noção de Redes de Comunicação Pública (WEBER, 2007) está em alcançar um caminho analítico que permita compreender o encadeamento sistêmico de fatos, atores, estratégias e sentidos, em processos comunicacionais ligados ao interesse público e à constituição do acontecimento público. Envolve disputas, fluxos e forças multilaterais, que irradiam em direção à opinião pública – não sem resistências ou condicionamentos – em mídias hegemônicas e alternativas, mas que intencionam fazer ver e fazer crer, nos termos de Landowski (1997), para a obtenção de credibilidade e para reverberar no debate público.

Na rede de comunicação pública (WEBER, 2007), a convergência ou o compartilhamento de pontos-de-vista entre atores distintos pode resultar em um ganho de visibilidade, como forma de compensação à assimetria entre os atores e competências técnicas e comunicacionais, involuntária ou voluntariamente. Por isso, busca-se materialidades comunicacionais diversas, reunidas na pesquisa documental, que permitam ilustrar como as relações de poder são disseminadas e estabelecidas em uma rede abrangente de atores e de arenas, através da comunicação pública, na busca por visibilidade e credibilidade.

São hipertextos, textos e imagens de jornais impressos, mídias alternativas (como cartazes, pinturas e grafitismos), produtos audiovisuais, sites de redes digitais, entre outras. Entende-se que esse conjunto permite identificar os pontos nevrálgicos do acontecimento, limítrofes entre interesses públicos e privados, que desencadeiam respostas e reações dos atores envolvidos, constituindo a rede de comunicação pública e o próprio acontecimento público.

Se a rede das relações de poder forma um tecido espesso que atravessa os aparelhos e as instituições, a disseminação dos pontos de resistência ao exercício do poder também atravessa as estratificações sociais e as unidades individuais. Articulados, estes pontos de resistência tem potencial de desencadear reconfigurações, remissões aos fatos passados e ressignificações destes, iluminando invisibilidades e auscultando silenciamentos, “cutucando” as lacunas e o inexplicável, mantendo-se, em aberto, o horizonte de possíveis. Interessa-nos, menos, a interpretação dos discursos, e, mais, evidenciar os atores e a configuração da comunicação pública em rede, na constituição do acontecimento público. Não se trata, portanto, de sair em busca de quem estaria “por trás” das táticas e estratégias que perpassam o social e o comunicacional. Trata-se, antes, de identificar como se constitui a dinâmica

comunicacional sobre o acontecimento público, que incide sobre ele e sobre os atores envolvidos.

Como observa Ferraz (2013), há outra pista relevante para o trabalho genealógico: operar não mais com a via de mão única causa-efeito, mas com a lógica efeito-instrumento. Nessa linha, meios de comunicação e tecnologias, por exemplo, deixariam de ser tratados como causas ou como efeitos de determinadas mutações historicamente assinaláveis. Remeteriam, antes, a um complexo tecido histórico-cultural de que são, ao mesmo tempo, expressões e instrumentos.

Diante desses pressupostos, organizou-se a pesquisa documental, desenvolvida a partir de três diretrizes, segundo categorização de Lakatos e Marconi (1996): a) escritos ou não, b) primários ou secundários, c) contemporâneos ou referentes a retrospectivas. Nesta tese, são reunidos e analisados documentos destas três categorias. Para Gil (2010), é considerado documento inclusive um “objeto que possa contribuir para a investigação de determinado fato ou fenômeno” (2010, p. 147) e os classifica em registros cursivos, episódicos e privados e também em dados encontrados.

[...] a pesquisa documental tradicionalmente vale-se dos registros cursivos, que são persistentes e continuados. [...] registros episódicos e privados, constituídos principalmente por documentos pessoais e por imagens visuais produzidas pelos meios de comunicação de massa. E [...] dados encontrados, que são constituídos não apenas por objetos materiais, mas também por vestígios físicos produzidos por erosão [...] (GIL, 2010, p. 147, grifos do autor).

Segundo ele, são relevantes, para a pesquisa social, os documentos de comunicação de massa como fonte de dados, pois permitem “conhecer os mais variados aspectos da sociedade atual e também lidar com o passado histórico. Neste último caso, com eficiência maior que a obtida com a utilização de qualquer outra fonte de dados” (GIL, 2010, p. 151). Compreende- se, na mesma direção, que, para a constituição e a análise do acontecimento público Tragédia Kiss, os meios de comunicação massivos fornecem subsídios para a tarefa de bricolagem, de encadeamento e tessitura dos pontos que são fundamentais para a análise aqui proposta, que está em realizar a genealogia do acontecimento público Tragédia Kiss.

Porém, em complemento, são fundamentais, também, na Tragédia Kiss, documentos disponibilizados por atores institucionais, da sociedade, da política, da ciência, da religião e do mercado; e em outros espaços de visibilidade, presenciais (como cultos e congressos) ou mediados, quando disponibilizados em portais, blogs e sites de redes sociais, na mídia digital, ou em mídias radicais alternativas (grafites, cartazes, charges, pinturas, camisetas), periféricas

em relação às mídias massivas. Estas últimas, ligadas, principalmente, às mobilizações sociais e à experiência de quem é atingido direta ou indiretamente pelo acontecimento e sofre as consequências da sua irrupção. Contemporâneos ou retrospectivos, os documentos reunidos estão listados no subcapítulo 5.2 (quadro 2), acerca dos procedimentos metodológicos.