• Nenhum resultado encontrado

1. CONHECIMENTO, DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA E TERMINOLOGIA

1.1.2. A COMUNIDADE CIENTÍFICA

Es gibt kein Wissen an sich, sondern nur ein wissendes Bewuβtsein (Felber, 2001:150).

O conhecimento não existe por si, advém de uma faculdade da mente humana. O conhecimento científico, em particular, é entendido como algo que pertence não a um indivíduo, mas a uma comunidade: “a comunidade assume-se com o direito exclusivo de produzir conhecimento científico, controlar a sua aceitação e, no momento presente, chegar mesmo a ensiná-lo” (Formosinho, 1992:193). A passagem de Eco que abaixo transcrevemos reitera a pertença do conhecimento a uma comunidade, a qual o adquiriu por via de uma formação específica em contexto académico e/ou profissional, desenvolvendo competências que lhe permitem não só aplicá-lo, como também dominar o seu discurso:

28

Está finalmente sentado diante do médico, e tenta explicar-lhe o que compreendeu naquela manhã: ‘J’ai mal au ventre’.

O médico compreendeu as palavras mas não se fia: não está seguro de que Sigma tenha indicado com as palavras certas a sensação precisa. Faz perguntas, nasce uma troca verbal, Sigma é levado a precisar o tipo de dor, a posição. O médico apalpa agora o estômago e o fígado de Sigma: algumas experiências tácteis têm para ele um significado que para outro não têm, porque estudou em livros que explicam como a uma certa experiência táctil deve corresponder uma dada alteração orgânica. O médico interpreta as sensações que Sigma teve (e que ele não sente) e compara-as às sensações tácteis que está a ter. Se os seus códigos de semiótica médica estão certos, as duas ordens de sensações deveriam corresponder (Eco, 1973:10).

Segundo Jesuíno, o termo comunidade científica é polissémico (1995:1). Em sentido lato, abrange a totalidade dos cientistas, que partilham um conjunto de valores, atitudes e normas. Em sentido restrito, refere-se ao conjunto de cientistas que pertence a um determinado país ou região, como a comunidade científica portuguesa, ou como um grupo de investigadores de uma mesma área de especialidade – a comunidade de biólogos, por exemplo (cf. Jesuíno, 1995:1). Nesta linha de conta, e de forma a evitar a geração de ambiguidade, no presente trabalho de investigação, usaremos o termo comunidade científica para nos referirmos à totalidade de cientistas, que partilham um conjunto de valores, atitudes e normas; o termo comunidade científica portuguesa para nos referirmos ao conjunto de cientistas de Portugal; e comunidade de nutricionistas para nos referirmos ao conjunto de cientistas desta que é a área de especialidade em estudo.

De acordo com Formosinho, foi nos meados do século XVII que a comunidade científica se estabeleceu nas Academias e, posteriormente, nas Universidades. Porém, anterior ao surgimento desta comunidade visível, existia uma comunidade invisível, para a comunicação do conhecimento científico. Estes investigadores transmitiam os resultados das suas investigações, quer oralmente, quer através de ‘cartas a amigos’ (1992:190-191). Hoje, o principal – mas não o único – veículo de comunicação, dentro de uma comunidade científica de uma

29

área de especialidade e entre comunidades científicas de diferentes áreas de especialidade, são as revistas científicas:

Oldenburg, em Março de 1665, associando-se às técnicas da imprensa, produziu a primeira revista científica (…). Desde então, mais de trezentos anos passaram, período durante o qual ocorreram revoluções tão significativas como a academização (século XIX) e a industrialização (século XX) da ciência, e a revista continua a ser ainda o maior veículo de comunicação da ciência e da tecnologia (Formosinho, 1992:191).

A comunidade científica, de acordo com Costa, é possuidora de um conjunto de conhecimentos específicos que permite a cada membro exercer, ensinar, discursar e escrever sobre a sua área (2001:57). A pertença de um indivíduo a uma comunidade científica implica que este possua, entre outras, competências cognitivas e discursivas específicas sobre uma determinada área do conhecimento. O texto – oral e escrito – constitui, indubitavelmente, o elo de ligação entre os membros dessa comunidade. Estes, para Costa, são simultaneamente produtores e receptores dos seus textos, os quais constituem não só um meio de perpetuação da memória científica da comunidade, como também uma forma de coesão interna: “os textos, através das relações sociais, conceptuais e linguísticas que nelas estão expressas, [são] um elo de ligação entre os seus membros” (Costa, 2005a).

Por dominarem conceptual e discursivamente a sua área de especialidade, consideraremos os membros que integram a comunidade de nutricionistas em Portugal, como especialistas, relativamente à investigação em Terminologia que desenvolvemos. Deste modo, os conteúdos a constar na base de dados terminológica sobre alimentos funcionais que propomos e apresentamos ao longo deste trabalho de investigação, e/ou que directa ou indirectamente contribuem para o seu desenvolvimento – referimo-nos especificamente à representação conceptual das Ciências da Nutrição –, serão alvo de proposta de validação, por parte desta comunidade científica específica.

30

Actualmente, a comunidade científica portuguesa encontra-se distribuída não só pelas universidades e pelos laboratórios e/ou unidades de investigação públicas ou privadas, como também pela indústria. De facto, como afirma Caraça: “na grande maioria dos países industrializados, mais de metade do esforço em I&D é da responsabilidade do sector das empresas” (2003:166).

As associações ou sociedades científicas, assim como outras instituições congéneres, têm como principal objectivo aproximar e fomentar o diálogo entre os membros da comunidade científica de cada área de especialidade, contribuindo não só para a coesão interna da mesma, como também para o seu avanço a nível científico.

Não podemos, no entanto, conceber a comunidade científica como uma massa homogénea. Apesar da partilha de objectivos comuns, cada membro possui em si, ou pode possuir, uma vontade heurística que o conduz à procura de produção de novo conhecimento, afastando-se, muitas das vezes, da visão partilhada pela comunidade. Porém, é esta dialéctica interna que leva à mudança e, consequentemente, às modificações epistemológicas no seio de uma comunidade.

Do mesmo modo, as supracitadas associações e sociedades visam crescentemente favorecer e facilitar o contacto com a sociedade. Efectivamente, a comunidade científica tende, crescentemente, a divulgar ciência ao cidadão, com o objectivo de dar a conhecer o seu trabalho e de tornar o conhecimento que produz acessível a este, desmistificando, assim, eventuais mitos em torno do conhecimento científico:

Já não faz sentido pensar-se na promoção da cultura científica e tecnológica dos cidadãos sem a contribuição da comunidade científica. Cada vez mais é defendido que a comunidade científica tem o dever de manter a sociedade informada do seu trabalho e de discutir as implicações da sua investigação (Araújo; Bettencourt- -Dias; Coutinho, 2006:1).

31

Subjacente a esta divulgação do conhecimento científico, está a vontade de incrementar o interesse pela ciência e a sua valorização, assim como conduzir à reflexão, à tomada de decisões e ao posicionamento crítico, por parte do cidadão, face à ciência e ao(s) seu(s) papel(eis).

Apesar da crescente fragmentação do conhecimento, cada vez menos a comunidade científica de cada área de especialidade tende a ser um sistema fechado, caracterizando-se por constituir um sistema aberto não só à sociedade, como vimos, mas também a comunidades científicas de outras áreas de especialidade, com as quais interage, partilhando teorias e/ou metodologias. Este crescente diálogo tem vindo a proporcionar o despoletar de comunidades heterogéneas, cujo trabalho em equipa é efectuado com base num mesmo denominador – a procura de respostas para problemas comuns. Deste modo, apresentaremos, seguidamente, algumas considerações acerca de duas tendências actuais na produção de conhecimento – a hiperespecialização e a interdisciplinaridade – para, posteriomente, nos centrarmos na sua divulgação à sociedade.