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A comunidade de Córregos

No documento IGOR SIMONI HOMEM DE CARVALHO (páginas 152-156)

Capítulo 3 O Assentamento Americana: histórico, concepção, aspectos sócio-econômicos e

3.1. História do Assentamento Americana

3.1.1. A comunidade de Córregos

Conforme visto, o Assentamento Americana tem origem no trabalho do CAA-NM sobre o modo de vida e produção dos Geraizeiros do Norte de Minas, primeiramente sistematizado no trabalho de Dayrell (1998). Tal trabalho partiu da feira livre de Porteirinha, onde famílias Geraizeiras vendiam seus produtos. Muitas dessas famílias vinham do município de Rio Pardo de Minas, como a comunidade Vereda Funda, cujas características e histórico de luta estão sistematizados nos trabalhos de Brito (2006) e Carrara (2007), e do município de Riacho dos Machados. Neste, está o Assentamento Tapera, primeira proposta de “Assentamento Geraizeiro” implantada com o apoio do CAA-NM em 1994, e cuja história está sistematizada no documento elaborado por Carrara, Dayrell & Souza (2003). Também em Riacho dos Machados, estão as comunidades de Estivinha e Córregos, origem da família Brito Ferreira, também pesquisada por Dayrell e que, posteriormente, viria a ter alguns de seus membros assentados no Assentamento Americana. A história de Córregos é, portanto, de grande importância para o entendimento da história e da concepção do Assentamento Americana.

A comunidade de Córregos começou com Saturnino Moreira Zupelio, que veio da Bahia e, como sitiante, ocupou um terreno devoluto na cabeceira do córrego Pau Preto,

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provavelmente em finais do século XIX. Desde então, Córregos se configurou como uma típica comunidade geraizeira, dotada de elementos característicos como a produção de rapadura e farinha, a adoção de variedades crioulas de milho e feijão, a criação de gado na solta, o extrativismo de frutas, plantas medicinais e lenha, o uso de áreas em comum e o cultivo em sistema rotativo de pousio. Nos anos 1990, um total de 13 famílias vivia em Córregos, sendo todas descendentes de Saturnino, que é avô do Sr. Geraldo Brito de Oliveira, pai dos irmãos Cristovino Ferreira Neto, João Altino Neto e Sebastião Brito de Oliveira, hoje assentados do Assentamento Americana.

A partir da década de 1970, foram chegando os “engenheiros” (agrimensores) abrindo picadas e medindo terras no território em que viviam, e em seguida as empresas, dentre elas a CVRD, comprando os direitos de posse de alguns moradores e cercandoáreas mais extensas. A comunidade de Córregos ficou “encurralada” pelas terras então dominadas pela CVRD, restando, em média, somente 1ha por família (DAYRELL, 1998;CAA-NM, 2005). Ficou evidente o contraste entre a vida anterior e posterior à chegada da “firma”:

A produção antigamente aqui era melhor que a de hoje. As terras eram mais fértil, chovia mais e, além disso, a gente era liberado. Quando a terra era pouca, a gente saía fora e achava um capão de mato, ia lá e fazia roça. No tempo do meu avô, era ele quem dominava, num tinha esse negócio de cerca (...). A terra era aberta. Era liberado, tirava lenha onde você quisesse, tirava madeira onde você quisesse, a roça onde você achasse (Assentado do Assentamento

Americana, antigo morador de Córregos, em depoimento a DAYRELL, 1998).

Em sua pesquisa, Dayrell observou a tradição pastoral da comunidade, tendo oportunidade de participar de um culto dominical na escola municipal de Córregos, com participação de 52 pessoas. A partir dos anos 1970, Córregos passou a ter, na CEB, um espaço de culto católico e de reflexão política, conforme explica Cristovino:

A CEB, além de rezar, era „fé e vida‟, duas coisas que falavam muito na CEB. Quer dizer, você tem fé espiritual, mas também social. Por exemplo, (se) eu sou trabalhador, sou sem-terra, eu tenho que arrumar um jeito de adquirir minha terra; (se) eu não posso comprar, porque sou pobre, então vamos organizar em movimento, vamos buscar nossa terra. Então a CEB tem muito isso. O trabalhador tá ganhando um salário mínimo miserável, trabalho escravo, a CEB ajuda a gente a despertar pra isso, que é o direito de ter um trabalho digno, uma casa pra morar e tudo. (...) Dizer que „ah, o sofrimento é coisa de Deus‟, não, Deus não quer isso. (Cristovino Ferreira Neto, antigo morador de

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O trabalho na CEB envolvia a CPT, que alimentava o debate e as ações em torno de questões políticas e sociais, levando muitas famílias a formarem associações e se filiarem aos STRs locais. Com a demanda por aprofundamento também nas questões técnicas agropecuárias, a CPT colocou a comunidade em contato com o CAA-NM, na década de 1990.

As práticas de manejo adotadas pelas famílias de Córregos, assim como pelos camponeses da região em geral, muitas vezes eram insustentáveis, se restritas a pequenas áreas. O sistema de queimadas para a abertura de roças poderia ser ecologicamente viável enquanto “a terra era aberta”, mas passou a ser fonte de degradação dos solos com o encurralamento de seus espaços de cultivo. Acobertura orgânica morta resultante de roçadas, podas e capinas, conhecida internacionalmente como “mulch”, e chamada no Norte de Minas de “cisco”, favorece os solos e os cultivos, na medida em que libera nutrientes (por meio da decomposição natural), aumenta a atividade biológica (por exemplo, alimentando minhocas) e conserva a umidade (ALTIERIet al., 1999; GLIESSMAN, 2002). Na agroecologia, a preservação do “cisco” no solo é de fundamental importância, mas para os Geraizeiros isso ainda não era claro.

Além da eliminação das queimadas, o CAA-NM transmitia outras orientações, como os cultivos em curvas de nível, a preservação da vegetação associada aos cursos d‟água e a adoção de sistemas agroflorestais (SAFs). Muitas vezes, essaspráticas entravam em confronto com o conhecimento tradicional local, mas passaram a ser adotadas de forma experimental pelas famílias. A partir de 1994, o CAA-NM iniciou o Programa de Formação de Monitores em Agroecologia, contando com a colaboração de profissionais de reconhecida experiência em práticas agroecológicas, como o agrônomo Ernst Götsch36, além dos técnicos do CAA-NM,

como oengenheiro florestal Álvaro Carrara. As turmas eram compostas por agricultores e agricultoras do Norte de Minas, dentre eles, os irmãos João Altino, Cristovino e Tião, que tornaram-se monitores e disseminadores deste “novo” conhecimento. A adoção de práticas agroecológicas em Córregos resultou na melhoria da conservação da água e da qualidade dos solos nos terrenos e, conseqüentemente, na melhoria dos cultivos, como observaram as próprias famílias.

36 Agrônomo, consultor e produtor de cacau no sul da Bahia, Ernst tem sido provavelmente o principal difusor dos SAFs pelo Brasil, ministrando cursos, prestando consultorias e recebendo visitas em sua própria unidade produtiva (MONTEIRO, 2010).

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Ao iniciar a pesquisa com os irmãos de Córregos, Dayrell foi apresentado também ao pai, Sr. Geraldo, que se tornou informante central de sua pesquisa:

Quando eu conversei com ele (Sr. Geraldo) pra mim ficou claro que (a pesquisa) tava no rumo certo, abriu mais essa percepção da dinâmica das comunidades geraizeiras, como elas estavam se organizando e ocupando os espaços que vão sobrando pra eles. (Dayrell, maio de 2010).

A pesquisa de Dayrell foi então assumindo um papel pró-ativo na comunidade, levantando as questões do extrativismo, do território e das possibilidades de luta pela terra, como informou o próprio pesquisador:

Durante o processo de pesquisa (eu pensava): qual a contribuição que vamos fazer, objetivamente, com o pessoal? Então durante o processo de pesquisa ficou muito claro o problema que eles estavam enfrentando com a Vale do Rio Doce ali no entorno, que impedia o extrativismo deles (...), então começamos a discutir essa questão.

Um dia eu acompanhei eles na coleta de lenha, me chamou muito a atenção, (...) eles indo pra coleta de lenha mas com receio da figura do capataz da firma, que ia chegar e impedir eles. Alguns (...) coletavam lenha escondido. (...) Essa tensão era sempre forte.

Nessa época começamos a discutir essa questão do território deles, a gente não chamava de território, mas da área de extrativismo deles. (...) Enquanto eu fazia a pesquisa, nós começamos a discutir com eles uma proposta pra eles começarem uma negociação com o Incra pra fazer um assentamento. (...) A gente não conhecia ainda assentamento agroextrativista, não tinha essa noção, tinha já uma coisa muito abstrata de reserva extrativista, foi 1994, 1995, era bem recente ainda... mas, de qualquer maneira, a gente chegou a fazer um levantamento de uma área, na verdade a área que seria de uso pra eles e tal. Então, uma forma de devolução da pesquisa foi de construir essa proposta.

(Dayrell).

O Assentamento de Córregos seria para 15 famílias, em uma área de 1.800ha. Os acampados chegaram a elaborar um regulamento do uso da área, que seria dividida em diferentes categorias: lavouras anuais e permanentes (13%), manejo agrossilvopastoril (25%), área de manejo extrativista (36%), e reserva legal (26%) (CAA-NM, 1998).

Iniciou-se então um diálogo com o Incra para a desapropriação da área e criação do Assentamento de Córregos. Uma vez que tal diálogo não resultou nem mesmo em alguma sinalização positiva por parte do Incra, os reivindicantes, liderados especialmente pelos irmãos Cristovino e João Altino, e apoiados pela CPT e pelo CAA-NM, decidiram realizar uma ocupação em uma das fazendas da CVRD, instalada em território tradicional da comunidade.

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Após serem despejadas, as famílias formaram um acampamento na beira da estrada, ficando aí alguns meses. Dayrell recorda que o acampamento tinha os barracos cobertos de palha, e que desde seu início os acampados plantaram muitas árvores frutíferas, inclusive nativas. A maioria das famílias era de Córregos, mas haviam algumas também de outras comunidades.

No período deste acampamento, surgiu a notícia da venda de fazendas da Vale na região; contudo, para frustração dos acampados, a fazenda reivindicada em Riacho dos Machados não entrou no leilão. O assessor da CPT, Alvimar Ribeiro, defendeu então que a melhor estratégia para a conquista de uma terra seria a ocupação de uma das fazendas colocada a leilão. Apesar de inicialmente decepcionados por não reconquistar seu território tradicional, as famílias acampadas e seus apoiadores foram convencidas a realizar uma ocupação na Fazenda Americana. Logo ficou claro que, aí, a possibilidade da conquista da terra era mais concreta.

Dayrell reforça a importância da experiência de Córregos na concepção e implantação do Assentamento Americana, efetivadas em seu PDA:

Então esse estudo que serviu de base pra fazermos a proposta (do Assentamento Americana) estava muito ancorado na discussão que havíamos feito em Córregos. Na experiência de Córregos a gente tentou construir o que seria uma proposta atualizada de assentamento, que desse possibilidade de sobrevivência das famílias e de preservação. (Dayrell).

Os irmãos Geraizeiros de Córregos compõem, hoje, o “núcleo-duro” do Grupo Agroextrativista do Cerrado e do próprio Assentamento Americana, desempenhando papel fundamental na história e concepção do Assentamento, na mobilização em torno do projeto agroecológico e extrativista, e até mesmo no estabelecimento de relações comunitárias no Assentamento, conforme será visto adiante.

No documento IGOR SIMONI HOMEM DE CARVALHO (páginas 152-156)