• Nenhum resultado encontrado

A concepção de surdez das produções acadêmicas

2 REFERENCIAL TEÓRICO

4 O ESTADO DO CONHECIMENTO DA PRODUÇÃO ACADÊMICA SOBRE A EDUCAÇÃO DE SURDOS

4.1 A concepção de surdez das produções acadêmicas

Como discorremos no referencial teórico, as discussões no âmbito da surdez fundamentam-se, especialmente, em uma perspectiva socioantropológica, em que a surdez é concebida segundo bases sociais, culturais e políticas, ou em uma perspectiva clínico- terapêutica, pautada, sobretudo, em princípios biológicos. Desse modo, examinamos as concepções de surdez presentes nas dissertações e teses, definindo as categorias: perspectiva socioantropológica e perspectiva clínico-terapêutica, a priori. Ressaltamos, contudo, que concordamos com Skliar (1999b, p. 10) ao afirmar que a surdez, atualmente, configura-se como um campo de representações complexas, “[...] que não pode ser facilmente delimitado ou distribuído em ‘modelos conceituais opostos’, tais como clínicos ou socioantropológicos”. Tais categorias são estabelecidas, portanto, de modo didaticamente simplificado.

A seguir, na tabela 7, apresentamos a distribuição das dissertações de acordo com a concepção de surdez adotada.

Tabela 7 - Concepção de surdez das dissertações de mestrado

Concepção de surdez Dissertações

Não foi possível identificar 7

Socioantropológica 42

Socioantropológica (Estudos Culturais/Estudos Surdos) 6

Socioantropológica (Estudos Surdos) 4

Socioantropológica (Estudos Culturais) 1

Clínico-terapêutica 1

Pós-estruturalista 1

Total 62

Observamos, conforme a tabela 7, que um número significativo de dissertações adotou uma perspectiva socioantropológica da surdez (n=53), entre as quais, alguns autores (n=11) sinalizaram, também, uma aproximação com os Estudos Culturais e/ou os Estudos Surdos. Somente uma dissertação adotou uma perspectiva clínico-terapêutica, e uma optou por uma vertente Pós-estruturalista. Em sete dissertações não foi possível identificar a concepção de surdez adotada.

Quanto à teses, seis adotaram uma perspectiva socioantropológica da surdez, e em uma produção não foi possível identificar a concepção de surdez adotada. Além disso, uma tese declarou assumir uma perspectiva socioantropológica e clínico-terapêutica, de modo concomitante, no entanto, conforme o referencial teórico adotado na presente pesquisa, consideramos que ambas perspectivas não são condizentes ou mesmo complementares.

Destacamos que embora a maior parte das dissertações e teses tenha deixado explícita a concepção de surdez adotada, em alguns estudos somente foi possível identificá-la por meio de elementos implícitos enfatizados pelo autor ao longo do texto e pelo referencial teórico empregado. Ainda, houve estudos em que não foi possível identificar a concepção de surdez adotada, mesmo considerando-se aspectos subjacentes.

O predomínio de uma perspectiva socioantropológica entre as dissertações e teses reflete as transformações nos modos de conceber o sujeito surdo e a surdez nas últimas décadas (SILVA, 2005; BITTENCOURT; MONTAGNOLI, 2007; SKLIAR, 2015). Em outras palavras, os resultados de estudos acerca das línguas de sinais, na década de 1960, atestando seu status linguístico, bem como, sobre aspectos do desenvolvimento do sujeito surdo e de suas especificidades linguísticas e culturais, unidos ao fortalecimento e atuação dos movimentos sociais surdos e à promulgação, nas últimas décadas, de políticas linguísticas e educacionais segundo uma perspectiva bilíngue, têm inserido a educação de surdos em um campo discursivo mais apropriado a sua condição linguística, cultural e comunitária. Também, conforme Lopes (2007, p. 31), especialmente a partir dos anos 2000, o aumento de pesquisadores atuantes no movimento social surdo e na academia tem influenciado a formulação de pesquisas “fortemente marcadas por atravessamentos linguísticos e embalados pela necessidade de difundir a educação de surdos a partir de bases sociais, culturais e políticas.”.

Em consonância com o referencial teórico adotado na presente pesquisa, podemos dizer que tais resultados exprimem um avanço nas concepções e discursos no âmbito das reflexões e discussões sobre a educação de surdos, historicamente permeada por uma ideologia clínica dominante, cujas práticas, segundo Skliar (2015), produziram efeitos

devastadores, como um fracasso escolar massivo, comprometendo, também, o desenvolvimento de linguagem, a construção de identidades surdas, o exercício de cidadania, a inserção no mundo do trabalho, entre outros.

No entanto, Skliar (2015, p. 8) ressalta que “[...] o abandono progressivo da ideologia clínica dominante e a aproximação aos paradigmas socioculturais, não podem ser considerados, por si só, como suficientes para afirmar a existência de um novo olhar educacional.”. Sob essa ótica, e para além de um distanciamento de modelos clínico- terapêuticos, é necessário considerar o quanto os modelos educacionais têm se aproximado - de fato - de concepções sociais, antropológicas e culturais da surdez. O trecho que segue permite elucidar tal argumento,

[...] ainda que o modelo clínico seja entendido como o disciplinamento do comportamento e do corpo para produzir surdos aceitáveis para a sociedade dos ouvintes, em algumas representações ilusoriamente antropológicas o discurso parece ser ou é o mesmo. A língua de sinais é, para ambos os casos, um meio eficaz para resolver a questão da oralidade dos surdos, mas não, por exemplo, um caminho para a construção de uma política das identidades surdas. Também sabemos que determinadas representações sobre a educação bilíngue [...] podem se constituir numa ferramenta conservadora e politicamente eficaz para reproduzir uma ideologia e uma prática orientada para o monolinguismo: utilizar a primeira língua do aluno para ‘acabar’ rapidamente com ela, com o objetivo de ‘alcançar’ a língua oficial. (SKLIAR, 2015, p. 10, negrito nosso).

Nessa perspectiva, Silva (2005), em seu estudo sobre as representações do surdo na família e na escola, aponta que os novos ventos que movimentaram e fragmentaram os discursos dominantes, as antigas certezas, chegam ainda de modo muito tímido à escola e pouco têm afetado as representações e as práticas no contexto educacional e familiar.

Por fim, não podemos deixar de considerar que o termo de busca utilizado, “educação de surdos”, em consonância com o referencial teórico da presente pesquisa, privilegiou um conjunto de produções que orientaram suas investigações segundo uma perspectiva socioantropológica da surdez, pois, como vimos, a designação “surdo” apresenta uma conotação fortemente arraigada a uma concepção de surdez pautada em paradigmas sociais, culturais e linguísticos, excluindo assim, boa parte das produções que basearam-se em uma perspectiva clínico-terapêutica, a qual apresenta uma visão voltada ao déficit biológico, à patologia, segundo um discurso de cura, de reabilitação, e em que comumente encontramos designações relacionadas à deficiência auditiva e suas derivações (GESSER, 2008). Em outras palavras, podemos dizer que os termos surdez/surdo(s)/surda(s) envolvem práticas

culturais “[...] que partem de referentes surdos de formas de ser [...]”, já os termos deficiência auditiva/deficiente(s) auditivo(s)/deficiente(s) auditiva(s) envolvem práticas também culturais, “[...] mas que partem de referentes ouvintes de formas de ser” (LOPES, 2012, p. 242). Isso posto, concordamos com Bisol, Simioni e Sperb (2008), com base em Johnstone (2001), ao afirmarem que os conceitos que os pesquisadores apresentam acerca de seu objeto de estudo delimitam o estilo e o caráter de suas investigações.