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A concepção de propriedade intelectual e sua importância para a organização

PARTE II: COLABORAÇÃO EM MASSA E O PARADOXO DA PROPRIEDADE

CAPÍTULO 5 – A QUESTÃO DA PROPRIEDADE INTELECTUAL NO CASO DA

5.1 A concepção de propriedade intelectual e sua importância para a organização

software livre

No início dos anos 1980, quando começou a se popularizar o hábito das empresas de “encapsular” os programas de computador via copyrights e patentes, negando o acesso a seu código fonte, emergiu um sentimento de desconforto entre as comunidades de programadores que, desde seus primórdios, possuíam uma cultura de compartilhamento e troca de informações.

Stallman, pioneiro do software livre e criador da FSF, foi um dos primeiros a se preocupar com essa perda de acesso aos códigos-fontes dos programas e com os desdobramentos que isso causaria na cultura da programação. Ele expressa sua indignação no filme Revolution OS (um documentário sobre o Linux), e afirma:

[...] para ter um dos modernos computadores da época, que era começo dos anos 1980, você teria que obter um sistema operacional proprietário. Os desenvolvedores desses sistemas não os compartilhavam com outras pessoas, em vez disso, eles tentavam controlar os usuários, dominar os usuários, restringi-los. Diziam: “se você pegar o sistema, você tem que assinar uma promessa que não vai compartilhar com ninguém”. E para mim isso era essencialmente uma promessa para ser uma má pessoa, para trair o resto do mundo, me retirar da sociedade, de uma comunidade cooperativa. E eu já havia experimentado o que acontece quando outras pessoas fazem isso conosco, quando eles se recusam a compartilhar conosco. Porque eles haviam assinado esses contratos. E isso feriu todo o laboratório, nos impedindo de fazer as coisas úteis que fazíamos antes. Então eu simplesmente não ia fazer aquilo. Eu pensei: isto está errado! Eu não vou viver dessa forma. (REVOLUTION OS; 2014)

De acordo com Coleman (2010, p.135), “no período em que Stallman iniciou a sua cruzada pelo Software Livre, ele tinha apenas uma vaga noção de como o copyright e as patentes funcionavam” pois as leis de propriedade intelectual, ainda que fortes e presentes, estavam apenas “fazendo a sua entrada no mundo do software” (idem) e ainda não eram globais. A partir de 1984, cresceram muito tanto as ações em favor do software livre quanto os mecanismos de proteção à propriedade intelectual.

A radicalização da propriedade intelectual foi acompanhada pela estratégia de negócio do campo ao qual o software livre se opõe, convencionado de software proprietário. Esse modelo estabeleceu uma lógica de utilização da tecnologia baseada em segredo e reserva de mercado. Segredo, por estabelecer uma relação unidirecional com os utilizadores do software, a partir das licenças de uso das ferramentas, sem possibilidade de acesso aos seus construtos originais. Reserva de mercado, pois tem se utilizado de instrumentos legais, como patentes, para estabelecer áreas restritas a partir

de uma descrição jurídica aplicada a um campo técnico. (SOLAGNA &MURILLO, 2011)

À medida em que foram crescendo os mecanismos de proteção à propriedade intelectual, eles também foram ficando mais sofisticados. As organizações comerciais, por exemplo, passaram a trabalhar junto com as agências federais “para assegurar o cumprimento das leis de combate à pirataria e aos hakers” (COLEMAN, 2010, p.140). Em 1992, uma lei norte-americana passou a classificar determinado conjunto de infrações ao copyright como delitos graves.

Ao tornar infrações ao copyright delitos graves, os autores da lei e os lobistas argumentavam pela inclusão de órgãos do governo federal no combate global à pirataria. Não era mais uma mera transgressão, a violação das leis de PI aproximou-se do equivalente a crimes graves. As organizações de comércio também lançaram campanhas de educação moral sobre os malefícios da pirataria. Por fim, eles pressionaram agressivamente pela inclusão de itens relacionados à propriedade intelectual em tratados de comércio multilateral dos anos 90, especialmente no TRIPS. Em 1994, o TRIPS foi incorporado ao GATT e passou, em 1995, a fazer parte de seu substituto mais robusto, a Organização Mundial do Comércio. Neste período, este tratado representava as mudanças mais drásticas nas leis de PI, já que era exigida de todas as nações-membro a adoção futura de um único padrão jurídico, derivado fundamentalmente de princípios do Direito norte-americano. (COLEMAN, 2010, p.140)

Paradoxalmente, ao mesmo tempo que o regime de propriedade intelectual ia se tornando mais restritivo e mais poderoso, o conhecimento sobre sua forma de funcionamento ia se tornando mais público e, portanto, mais exposto a críticas. No filme Revolution OS, Bruce Perens, um dos autores da definição de código aberto, expressa sua visão sobre os problemas causados pelos excessos de controle que o avanço nas leis de propriedade intelectual trouxe. Ele afirma que:

Código aberto é um modo das pessoas colaborarem com os softwares sem serem perturbados com todos os problemas de propriedade intelectual, tendo que negociar contratos toda vez que compra pedaços de software, ter um monte de advogados envolvidos. No geral, nós apenas queremos que o software funcione e queremos poder ter pessoas contribuindo com ajustes para ele, etc. Então, nós meio que sacrificamos alguns dos direitos de propriedade intelectual e apenas deixamos que o mundo inteiro use o software. (REVOLUTION OS; 2014)

A despeito de, no início, o movimento em prol do software livre ser extremamente ideologizado (voltaremos a falar sobre isso ainda nesse capítulo), a partir de 1998 cresceu uma consciência legal entre os hackers e o software livre se desenvolveu, entrando definitivamente no circuito comercial, passando a movimentar uma indústria milionária. Antes de enveredar pela história do triunfo do software livre no domínio corporativo, convém entender como a ideia de “que a propriedade

intelectual era indispensável para qualquer grande corporação de tecnologia fazer dinheiro” (COLEMAN, 2010, p.141) começou a ruir.

É preciso deixar claro, logo no início dessa discussão, que a lógica de organização de uma produção colaborativa como a do software livre – apesar de se dar dentro dos limites da sociedade capitalista e ser viabilizada por técnicas que são fruto do avanço das forças capitalistas de produção – é, de fato, incompatível com ideia de que a propriedade intelectual é o motor das inovações e, portanto, fundamental para o desenvolvimento da indústria da informática. Nesse sentido, Tapscott e Williams destacam:

Tudo começa com o modo como as empresas de código aberto pensam a respeito dos softwares e dos modelos de negócios usados para cria-los. A colaboração não é uma reflexão tardia; ela é incorporada ao software desde o início. ‘No mundo do código aberto’, diz Polese, ‘cada pequeno componente é criado para fazer parte de um sistema mais amplo. Quando se sentam para criar um componente ou um projeto, os programadores começam pensando em como ele vai interagir com todas as outras partes já existentes. Portanto, é uma maneira muito diferente de abordar a programação de um software e a criação de uma empresa no mundo do software’. (TAPSCOTT&WILLIAMS, 2007, p.114)

As diferenças entre o modo de produção de software proprietário e o modo de produção de software livre são mesmo evidentes. A indústria de software proprietário pretende, sobretudo, “capturar o cliente, prendê-lo à sua plataforma e isolar a concorrência” (TAPSCOTT&WILLIAMS, 2007, p.114). Trata-se de uma lógica de exclusão, de cerceamento, de estabelecimento de mecanismos que regulem a circulação do produto e o acesso a ele. A propriedade intelectual ergue muros em volta de uma mercadoria que se tornou essencial, hoje, a todos os ramos da produção e aos consumidores em geral.

‘Código aberto significa derrubar esses muros’, diz Polese, ‘e procurar ativamente, desde o início, maneiras para fazer o software funcionar melhor com o software de todas as outras pessoas. Isto está gerando uma nova e enorme onda de inovação, e os softwares estão melhorando muito rapidamente. Há mais pessoas trabalhando com o código aberto, usando-o e participando da sua criação, e mais ênfase é colocada na colaboração e na integração’. (POLESE apud TAPSCOTT&WILLIAMS, 2007, p.115) A questão da participação dos usuários e do grau de segurança oferecido pelos sistemas é outro ponto importante que é diretamente relacionado à questão da propriedade intelectual. Para Silveira (2010), o software livre é mais confiável que o software proprietário, justamente, por ser aberto:

O fato de ser aberto não significa que ele seja frágil, pelo contrário, é robusto, forte. O fato de ser aberto possibilita que todos saibam o grau de

segurança desse algoritmo. Tanto eu como qualquer pessoa pode olhar o algoritmo e descobrir falhas. Falando no caso dos softwares: não é o fato de eu ter acesso ao seu código-fonte que ele se torna violável; na prática, isso possibilitará vigilância sobre o programa. O usuário sempre vai ter liberdade plena sobre o código do software. Ao contrário do software proprietário, no qual só o dono sabe as rotinas daquele programa, porque ele só entrega o código-executável e não o código-fonte. O usuário nunca vai poder auditar o software, nunca vai poder descobrir se há erros, portas de entrada escondidas, fragilidades muito graves, etc. Sobre o livre, por exemplo, a cada versão do Linux existe um processo de “debugagem”, retirada de erros, que é feito coletivamente. Muitas pessoas olham e têm condição de agir e consertar aquele erro. São olhos de culturas diferentes que podem ver coisas muito diferentes. O que é aberto é o código-fonte, uma vez que copiado e transformado em código-executável, não há como quebrar, na verdade, ele tem uma solidez muito grande. Um código-fonte fechado é para o usuário uma incógnita, e por usuário entenda-se o governo, empresas. [...] O modelo de código fechado é, por definição, inseguro; eu falo do modelo. Isso não quer dizer que todo software livre é seguro, mas, sim, o seu modelo. (SILVEIRA, 2010)

Uma questão relevante emerge, então: se o software livre é mais seguro, se é elaborado de forma mais eficiente, se (conforme vimos no capítulo anterior) seus custos de produção são menores, e se os resultados que oferece podem ser usufruídos por um número maior de pessoas, então, como o software proprietário poderá continuar a concorrer com ele? É curioso que um produto elaborado a partir de uma lógica não-mercantil – já que a produção de software livre: se dá a partir de trabalho voluntário (em sua maioria), dispensa a propriedade privada dos meios de produção e gera um produto que, por vezes, é distribuído gratuitamente – seja tão importante para a economia de todo o planeta. Para Murillo (2010, p.91), “a riqueza do fenômeno do F/LOSS103 reside precisamente em seus desdobramentos para além da tecnologia per se”. Ele explica que:

O Software Livre é produto das redes, e as redes sofrem de uma dualidade inescapável: elas são, ao mesmo tempo, a imposição do limite e a garantia da circulação; elas podem servir tanto para o controle quanto para a disseminação do conhecimento (Musso, 2004). Se observado de um lado do prisma, o Software Livre é uma grande ameaça à lógica subjacente ao regime de PI, pois a sua vitalidade é extraída do fluxo de informações e não dá proteção e garantia de monopólios de exploração comercial. Ao assumirmos outro ângulo, podemos observar que a propriedade não é radicalmente atacada, já que a economia do Software Livre é amparada por uma das dimensões da propriedade intelectual que dispõe sobre o direito de autor. É preciso, de todo modo, insistir neste ponto: a riqueza do fenômeno F/LOSS consiste no deslocamento, na desestabilização e na introdução da diferença no contexto dos cercamentos promovidos pelo avanço do regime de PI. (MURILLO, 2010, p.91)104

______________________ 103

F/LOSS significa Software Livre e de Código Aberto (em inglês, Free/Libre and Open Source

Software.

104 Convém lembrar que, conforme colocou Valois (2003, p.294), “os termos do copyleft garantem o reconhecimento do autor, mas permitem que qualquer outra pessoa possa intervir, alterando, reproduzindo, redistribuindo e, por fim, revendendo esse produto. A única restrição é que ninguém pode dizer-se dono daquele produto, independente de quanto tenha influído na sua geração”.

É bem verdade que, ao incentivar os avanços da propriedade intelectual, a indústria de software proprietário tinha a intenção de combater a ação daqueles que copiavam de forma não autorizada a sua produção e não atacar os idealistas que se dedicavam a distribuir os frutos de seu trabalho de graça, ou seja, os criadores de software livre. Isso porque, há alguns anos atrás, era inimaginável para a maioria das pessoas que o software livre fosse se desenvolver tanto e que acabasse por configurar-se em uma ameaça à indústria de software proprietário (ou a parte dela pelo menos) e ao conjunto de proteções que ela criou.

Boa parte da confusão, que deriva desse embate, se deve ao fato de que, nos seus primórdios, o movimento do software livre era fortemente ideologizado e que a maioria das pessoas – dentro e fora dele – não imaginava como seria possível “fazer dinheiro” dessa forma – muito menos ainda imaginavam quanto dinheiro se poderia fazer. A seguir, veremos como essas ideologias surgiram e se modificaram ao longo do tempo.