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PARTE II: COLABORAÇÃO EM MASSA E O PARADOXO DA PROPRIEDADE

4.2 A produção baseada na colaboração em massa: o caso do software livre

4.2.1 A lógica do commons e a emergência da colaboração em massa

Originalmente, a palavra commons73 era utilizada para fazer referência “às terras utilizadas coletivamente para pasto, durante a Idade Média, por comunidades na Inglaterra” (SIMON&VIEIRA, 2008, p.16). Os membros dessas comunidades, que tinham acesso a essas terras, compartilhavam uma série de direitos de uso sobre elas, mas não existia a figura de um proprietário exclusivo. Tratava-se, segundo Simon e Vieira (2008, p,16), “de um tipo de propriedade coletiva ou compartilhada – muito distinta da propriedade privada”.

Nas últimas décadas, a expressão commons voltou a adquirir relevância, uma vez que possui relação direta com as transformações tecnológicas e sociais que ocorrem atualmente. De acordo com Benkler, agora:

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Os protocolos definem como se processam as comunicações entre os vários computadores. No caso da internet o protocolo que controla essas comunicações é conhecido como TCP/IP (em inglês, Trasmission Control Protocol / Internet Protocol) e seu código-fonte é aberto.

72 A palavra bit deriva do termo “dígito binário” (binary digit em inglês). Trata-se da menor unidade de informação que pode ser armazenada ou transmitida por um computador.

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O termo rossio, de origem portuguesa, tem o mesmo sentido que commons. De acordo com Simon e Vieira, curiosamente a versão portuguesa é utilizada com menor frequência provavelmente “pelo peso que a ideia tenha na cultura anglo-saxônica moderna” (SIMON&VIEIRA; 2008, p.16).

Commons são um tipo particular de arranjo institucional que governa o uso e a disposição de recursos. Sua principal característica, que os define de forma distinta da propriedade, é que nenhuma pessoa tem o controle exclusivo do uso e da disposição de qualquer recurso particular. Pelo contrário, os recursos governados pela comunidade podem ser utilizados e dispostos por qualquer um entre dado número de pessoas (mais ou menos bem definido), sob regras que podem variar desde o ‘vale-tudo’ até regras claras formalmente articuladas e efetivamente impostas. (BENKLER, 2007, p.12)

No caso das informações, que costumam ser um insumo do seu próprio processo de produção, o modelo de commons torna-se não apenas desejável mas também necessário, quando se pretende construir “sistemas inovadores e eficientes de produção de informação” (BENKLER, 2007, p.15). Isso porque, “o compartilhamento dos recursos tende a reduzir a escassez e apresentar melhor desempenho que os sistemas baseados na propriedade” (idem).

O que os commons tornam possível é um ambiente em que os indivíduos e grupos são capazes de produzir informação e cultura por conta própria. Isso cria condições para um papel substancialmente maior tanto para a produção fora do mercado quanto para a produção radicalmente descentralizada. [...] Juntos esses fenômenos – o aumento da eficácia e do alcance dos atores fora do mercado e o surgimento da produção da informação radicalmente descentralizada – oferecem um contraponto de grande importância à economia da informação industrial do século XX. (BENKLER, 2007, p.16) A esse fenômeno da produção conjunta através das redes de computadores, Benkler (2006a, p.60) deu o nome de colaboração em massa.

[...] o ambiente da rede torna possível uma nova modalidade de organização da produção: radicalmente descentralizada, colaborativa, e não-proprietária; baseada no compartilhamento de recursos e produções amplamente e livremente distribuídos entre indivíduos conectados que cooperam entre si sem obedecer ao mercado ou a comandos administrativos. Isto é o que eu chamo de ‘produção colaborativa baseada no commons’. (BENKLER, 2006a, p.60)

A colaboração em massa acontece toda vez que um conjunto de pessoas resolve unir forças, no ambiente virtual da rede, para organizar um modelo de produção baseado fundamentalmente na cooperação e na liberdade. Essa nova forma de organização da produção é radicalmente diferente do modelo de produção baseado na hierarquia, no controle e na propriedade.

Os indivíduos agora compartilham conhecimento, capacidade computacional, largura de banda e outros recursos para criar uma vasta gama de bens e serviços gratuitos e de código aberto que qualquer um pode usar ou modificar. E mais, as pessoas podem contribuir com os ‘espaços digitais públicos’ (digital commons) a um custo muito baixo para si próprias, o que torna a ação coletiva bem mais atraente. [...] Tudo o que uma pessoa precisa é um computador, uma conexão de rede e uma faísca de iniciativa e criatividade para se juntar à economia. (TAPSCOTT& WILLIAMS, 2007, p.22)

Nos últimos anos, com o aumento da popularização da internet, ocorreu um aumento exponencial do número de experiências baseadas na colaboração em massa no mundo. Linux74, Wikipedia e YouTube são apenas alguns dos exemplos – para citar os mais famosos – de construções colaborativas que estão sendo feitas atualmente. De acordo com Tapscott e Williams (2007, p.21-22):

Novas infra-estruturas colaborativas de baixo custo – desde a telefonia grátis via internet até softwares de código aberto ou plataformas globais de terceirização – permitem que milhares de indivíduos e pequenos produtores criem conjuntamente produtos, acessem mercados e encantem os clientes de uma maneira que apenas as grandes empresas podiam fazer no passado. Isso está fazendo surgir novas capacidades colaborativas e modelos de negócios que darão poder às empresas bem preparadas e destruirão aquelas que não forem capazes de se adaptar.

Apesar de possuir uma lógica de organização da produção diferente e a despeito de todo o discurso ideológico no qual está mergulhado (voltaremos a esse debate no capítulo 5), convém deixar claro que o fenômeno da colaboração em massa acontece dentro dos limites da sociedade capitalista. As técnicas que permitem a colaboração em massa são fruto do avanço das forças capitalistas de produção e a integram, portanto, ao conjunto do sistema. Nesse sentido, Tapscott e Williams destacam:

Muitas empresas antigas estão se beneficiando desse novo paradigma nos negócios [...] Empresas como a Boeing, a BMW e a Procter & Gamble existem há quase um século. Porém, essas organizações e os seus líderes adotaram a colaboração e a auto-organização como novas e poderosas alavancas para reduzir custos, inovar mais rápido, criar em parceria com clientes e sócios e, em geral, fazer o que for necessário para entrar no ambiente empresarial do século XXI. (TAPSCOTT&WILLIAMS, 2007, p.10) O uso generalizado, hoje, das produções colaborativas para atender a interesses comerciais não impede, entretanto, que algumas contradições interessantes se estabeleçam. No caso específico da produção de software, por exemplo, a produção colaborativa provoca um efeito curioso: põe em questão a propriedade intelectual, o pilar sobre o qual se ergueu a indústria do software. Antes de passar à análise mais detalhada desse problema (que será feita no capítulo 5), é preciso compreender como se dá o processo de criação do software livre e conhecer suas principais características.

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O Linux é um sistema operacional que foi construído de forma colaborativa e tornou-se o software livre mais popular do planeta. Um sistema operacional é um programa, ou um conjunto de programas, que faz a interface entre um computador e o seu usuário. A partir do sistema operacional são executados uma série de outros programas conhecidos como aplicativos.