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As condições de trabalho na periferia do sistema e suas especificidades

PARTE I: CRISE, INOVAÇÃO E TRABALHO NO CAPITALISMO

CAPÍTULO 2 – INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS E PROPRIEDADE INTELECTUAL:

3.3 As condições de trabalho na periferia do sistema e suas especificidades

O processo de mundialização do capital, que se intensifica a partir dos anos 1980, “foi facilitado por uma reorganização radical dos sistemas de transporte, que reduziu os custos de circulação” (HARVEY, 2011, p.22), e pelos “novos sistemas de comunicações, que permitiram a organização rigorosa da cadeia produtiva de mercadorias no espaço global” (idem). Assim, a periferia do sistema pode ser plenamente incorporada ao circuito do capital da forma que se mostrou mais conveniente para as grandes corporações.

De acordo com Antunes e Braga (2009, p.7), “após a entrada dos gigantescos batalhões de trabalhadores da China e da Índia no jogo do capitalismo globalizado, sem falar da Rússia e da América Latina” ninguém mais tem se arriscado a “prever o declínio estrutural do trabalho vivo como fonte da riqueza material” (idem). Na visão de Harvey (2011, p.21), “o capital já tinha acesso ao trabalho de baixo custo no mundo inteiro”, mas ampliou ainda mais o seu domínio quando “o colapso do comunismo, drástico no ex-bloco soviético e gradual na China” (idem), acabou por acrescentar milhões de trabalhadores à “força de trabalho assalariado global” (idem).

A nova dimensão que assume o exército industrial de reserva acaba trazendo impactos gigantescos para a organização dos trabalhadores em todas as partes do mundo. Segundo Chesnais (2007):

Com algum atraso, a plena integração da China à economia mundial — e, em grau menor, a da Índia — provoca uma tomada de consciência dos efeitos planetários que ela acarreta para os assalariados. Que efeitos? Os da competição direta entre os trabalhadores, em razão da “duplicação da oferta de trabalho global”, como o “excesso estrutural de mão-de-obra” que ela cria no seio de uma economia mundial liberalizada e desregulamentada. Isso permite que as empresas “façam incidir sobre os assalariados o essencial do ajuste às novas condições de concorrência”.

O resultado dessa inflação na oferta de mão-de-obra foi mais precarização, aumento dos níveis de desemprego e uma piora significativa na qualidade de vida de trabalhadores do mundo inteiro. Para Harvey (2011, p.55), “esse exército de reserva deve ser acessível, socializado e disciplinado, além de ter as qualidades necessárias (isto é, ser flexível, dócil, manipulável e qualificado quando preciso)”.

Por outro lado, apesar dos trabalhadores concorrerem entre si a nível global, os mercados de trabalho são geograficamente segmentados. De acordo com Harvey (2001, p.56):

[...] a inevitável segmentação geográfica dos mercados de trabalho significa que as questões da oferta de trabalho se resumem numa série de problemas locais integrados nas estratégias regionais e estaduais, mitigada pelos movimentos migratórios (do capital e do trabalho). O Estado se envolve, inter alia, quando se trata de imigração e leis trabalhistas (salário mínimo, jornada de trabalho e regulação das condições de trabalho), fornecimento de infraestruturas sociais (como educação, formação e saúde) que afetam a qualidade da oferta de trabalho e políticas destinadas a manter o exército de reserva (a provisão de bem-estar social).

Os capitalistas, no entanto, costumam “administrar e contornar os limites potenciais da oferta de trabalho de várias maneiras, mesmo em contextos locais” (HARVEY, 2011, p.56). Uma das formas mais eficientes, e populares, hoje, de resolver problemas com a oferta de trabalho é através das inovações tecnológicas.

As tecnologias de economia de trabalho e as inovações organizacionais podem mandar as pessoas para fora do trabalho e de volta à reserva industrial. O resultado é um exército ‘flutuante’ de trabalhadores demitidos cuja existência coloca uma pressão descendente sobre os salários. O capital manipula simultaneamente a oferta e a demanda de trabalho. (HARVEY, 2011, p.56)

No caso específico da produção de software, as possibilidades de precarização do trabalho se multiplicam, uma vez que, segundo Bagnasco (apud CASTILLO, 2009, p.16), “uma empresa que produz bens imateriais pode conseguir ser muito mais flexível, capaz de adaptar-se e aderir com maior facilidade aos mercados móveis do ganho a curto prazo, típicos da era da globalização”. O fato de um software poder ser desenvolvido por um conjunto de programadores dispersos

em localidades distantes entre si é apenas um dos muitos exemplos da facilidade que essa indústria possui para flexibilizar o trabalho em suas linhas de montagem.

Michael Cusumano, num esplêndido livro dirigido a ‘diretores, programadores ou empreendedores, ou aos que querem sê-lo”, começa por destacar que produzir software não é igual a qualquer outro negócio, como a fabricação de muitos outros bens ou serviços. Porque uma vez criado, o custo é o mesmo tanto para fazer uma cópia quanto para um milhão. Porque trata-se de um tipo de empresa cujo lucro sobre as vendas pode chegar a 99%. Porque é um negócio que pode passar, de uma hora para outra, da fabricação de produtos à prestação de serviços. (CASTILLO, 2009, p.22)

Na indústria do software, mais do que em muitas outras, ocorre uma fragmentação dos processos de criação e desenvolvimento de seus produtos, levando a uma nova divisão internacional do trabalho. Várias atividades podem ser compartimentadas em módulos cuja execução pode ser realizada por diferentes pessoas, em diferentes lugares, sob diferentes contratos de trabalho. A Índia, por exemplo, tem ficado famosa por ser um “país de relocação das atividades de serviços de informática e de produção de softwares” (CHESNAIS, 2007). A imigração eletrônica do trabalho gera, é claro, uma série de polêmicas quanto ao preço e a qualidade da força de trabalho envolvida em sua execução e sobre os efeitos que tal transferência provoca no mercado mundial.

Os anos 1990 tiveram uma série de políticas locais que levaram a uma grande implantação de multinacionais, como a criação de um ‘ambiente local’ que converte Bangalore, e o denominado ‘Silicon Plateau’ (Planalto do Silício), em uma região aderente, cobiçada por suas vantagens comparativas. Entre 1990 e 1994, mil subdivisões de multinacionais solicitaram e obtiveram a certificação ISSO; para Prasad, mais do que padronizar a qualidade, essa classificação funcionava como marca ou garantia para vender a compradores distantes, como o então esquivo mercado da Comunidade Europeia. (CASTILLO, 2009, p.26)65

A adoção de normas de padronização, para poder ser fornecedor se software, “tem contribuído para uma taylorização do trabalho da programação e para uma perda de controle sobre o trabalho individual” (CASTILLO, 2009, p.27). Ainda, segundo esse autor:

A internacionalização da produção – afirma – acarreta ao comprador uma padronização que torna irrelevante o lugar de sua fabricação no mundo. Isso “leva à criação de padrões internacionais e normas, à introdução obrigatória dessas normas, o que reintroduz uma dinâmica de desqualifica- ________________________

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Bangalore é uma cidade localizada no sul da Índia. Com mais de 8 milhões de habitantes, uma das cidades mais populosas do mundo, é conhecida por ser o principal polo de alta-tecnologia e telecomunicações da Índia.

ção”. Com tais técnicas de documentação e good programming, os postos de trabalho tornam-se liberados do trabalhador concreto, menos trabalho é demandado em termos qualitativos e, por fim, produz-se mais desemprego. (CASTILLO, 2009, p.27)

A partir de 2003, no entanto, a Índia vem sendo, cada vez mais, reconhecida como um centro produtor de software de qualidade e não apenas de produtos padronizados. De acordo com Castillo, as empresas indianas:

[...] passaram a se ocupar de projetos mais complexos, que compreendem também a tomada de requisitos ao cliente, o desenho, a arquitetura, etc. Isto é, passaram a ocupar uma posição mais alta na clássica representação do processo de produção de software como uma queda-d’água, o que significa ser mais independente, mais qualificado como conjunto produtivo. (CASTILLO, 2009, p.27)66

O sucesso de modelos como o desenvolvido na Índia depende, é claro, de uma série de fatores que se estendem para além da indústria do software. O papel institucional desempenhado pelos governos no fomento ao desenvolvimento desses polos e a infraestrutura existente – sobretudo o acesso dos trabalhadores às universidades – é determinante para os resultados que podem ser obtidos. Outras experiências exitosas também podem ser encontradas, por exemplo, na Irlanda, no Brasil e no México.

O grau de integração entre os trabalhadores alocados em polos de desenvolvimento de software na periferia do sistema e aqueles que permanecem no centro, no entanto, é muito grande, bem maior do que existe em outras indústrias.

No caso da produção de software, equipes ou grupos virtuais interagem mesmo estando distantes entre si.

Uma das pedras de toque na análise da organização do trabalho da produção de software é a constituição de equipes ou grupos de trabalho que, desde meados dos anos 1970, formaram parte da panaceia de “novos métodos de organização do trabalho”. Por outro lado, o trabalho do conhecimento, o tratamento da informação e o caráter imaterial da matéria- prima que se utiliza nesse processo obrigam a levar em consideração e planejar essas novas formas de organização, em contextos de alta tecnologia, que permitam a circulação, o que está posto em comum, o compartilhar uma intervenção sobre um programa, algo que não está condi- ________________________

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No processo de produção de software os trabalhadores são divididos entre funções de concepção – responsáveis pela análise, criação da arquitetura e design dos sistemas – e de execução – encarregados da programação e dos testes. Embora essas tarefas se relacionem e, na maioria das vezes, seus executores realizem um trabalho de equipe onde trocam constantemente informações, as tarefas de concepção costumam são consideradas como aquelas que requerem um nível mais alto de criatividade e qualidade técnica.

cionado por barreiras físicas, geográficas, nacionais ou outras. A literatura especializada tem produzido com abundância trabalhos sobre as chamadas ‘equipes virtuais’, comunidades de prática ou coletividades de prática, que podem estar a milhares de quilômetros de distância física e, às vezes, quase tanto em distância cultural ou de estilo organizativo. (CASTILLO, 2009, p.34)

Apesar do trabalho das equipes virtuais ser realizado em conjunto, as condições, sobretudo contratuais, em que ele se dá são bem diferentes. Tal situação acirra as diferenças entre centro e periferia, uma vez que:

A forma associada à condição de dependência para elevar a produção de valor é a superexploração da força de trabalho, o que implica no acréscimo da proporção excedente / gastos com força de trabalho, ou, na elevação da taxa de mais-valia, seja por arrocho salarial e/ou extensão da jornada de trabalho, em associação com aumento da intensidade do trabalho. Ou seja, os condicionantes da dependência colocam uma maciça transferência de valor produzido na periferia que é apropriado no centro da acumulação mundial, e a dinâmica capitalista na periferia é garantida pela superexploração da força de trabalho, ao invés de bloquear esses mecanismos de transferência de valor. (CARCANHOLO, 2005)

A hierarquização da exploração, conforme afirma Katz (1995b, p.230), “torna competitivos os países capazes de processar inovações com salários irrisórios”. O cenário onde a mais-valia pode ser transferida eletronicamente é, então, o paraíso para as grandes corporações capitalistas.

Assim, parece claro que a natureza intangível de produtos como o software e o desenvolvimento, em escala planetária, das tecnologias da informação e da comunicação permitiram o aumento da precarização do trabalho em todo o mundo, com características particularmente mais acentuadas na periferia do sistema.

Apesar, no entanto, do poder informacional ter se tornado decisivo no processo produtivo do capitalismo contemporâneo e do trabalho ter se tornado mais abstrato e mais alienado, não se modificaram, essencialmente, as relações sociais envolvidas nesse processo. O conhecimento, ainda que tenha crescido em importância, não se configura como único e mais importante componente na base racional da criação da riqueza hoje. A exploração do trabalho continua sendo o elemento principal na criação do valor.

PARTE II: COLABORAÇÃO EM MASSA E O PARADOXO DA PROPRIEDADE