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A condenação do Brasil perante a Corte Interamericana de Direitos

Concomitantemente à tramitação da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153, tramitou perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos o processo Gomes Lund e Outros vs. Brasil, Caso nº 11.552. A ação

ajuizada em abril de 2009 teve por objeto a apuração dos crimes de detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado (ocultação de cadáver) de 70 pessoas, entre guerrilheiros, moradores da região e camponeses ligados à guerrilha ocorrida na região amazônica às margens do Rio Araguaia, entre o final da década de 60 e o ano de 1975. Local que deu nome à Guerrilha do Araguaia e expôs a forma truculenta e desumana adotada pelos militares para debelar a batalha rural adotada pelos integrantes do Partido Comunista do Brasil (PC do B), o que, segundo Elio Gaspari, foram influências das revoluções de esquerda que ocorriam na Albânia, e não em Cuba ou Moscou (2002, p. 409).

O que se deu no Araguaia foi o paroxismo do choque dos radicalismos ideológicos que, com seus medos e fantasias, influenciaram a vida política brasileira por quase uma década. A esquerda armada supusera que estava no caminho da revolução socialista, e a ditadura militar acreditara que havia uma revolução socialista a caminho. Até o início do surto terrorista esse conflito ficara no campo dos receios e planos. Daí em diante, um pedaço da esquerda mostrara-se disposto ao combate a que julgava ter faltado em 1964. [...] A história brasileira registra confrontos armados sangrentos e duradouros entre o povo pobre e o poder. Nos maiores, ocorridos no sertão de Canudos e nas matas do Contestado, contaram-se em poucas dezenas os combatentes que sabiam ler e escrever. Nas matas perdidas do Araguaia, o PC do B tornara-se a única – e derradeira – organização política brasileira a ir buscar na “violência das massas” a energia vital de seu projeto comunista (GASPARI, 2002, p. 406).

A repressão por parte do estado militar contra a “Guerrilha do Araguaia” se deu de forma contundente. O envio de numerosas tropas oficiais para combater a guerrilha rural evidenciou o interesse dos militares em debelar rapidamente o movimento.

A tropa começou a chegar no dia 12 de abril de 1972. Operava entre Marabá e Xambioá. Em cada uma dessas cidades acampou um batalhão, cada um com quatrocentos homens. No interior da floresta instalaram-se seis bases de combate, cada uma com uma companhia . Em agosto chegaram a somar 1500 homens (GASPARI, 2002, p. 414).

Os guerrilheiros, compostos basicamente por ex-estudantes universitários e profissionais liberais, chegaram ao inexpressivo número de 80 componentes, sendo que 50 deles jamais tiveram seus corpos encontrados. Dos sobreviventes de expressão política, o ex-presidente do Partido dos Trabalhadores, José Genuíno, que foi detido pelo Exército de 1972.

As formas adotadas para executar os guerrilheiros capturados chocaram a opinião pública, que somente tomou conhecimento das crueldades após a queda da censura e a divulgação dos testemunhos.

Na tarde de 4 de fevereiro de 1974 Osvaldão estava sozinho, escondido na floresta, Arlindo Vieira, o Piauí, um jovem camponês que colaborara com os guerrilheiros, vinha a frente de uma patrulha militar. Viu-o numa capoeira, sentado num tronco. Matou-o com um só tiro. O corpo enorme e depauperado do guerrilheiro morto foi pendurado num cabo e içado por um helicóptero. Despencou. Amarraram-no de novo, e assim o povo da terra viu que Osvaldão se acabara. Antes de sepultá-lo, cortaram-lhe a cabeça (GASPARI, 2002, p. 406).

A comprovação das violações ocorridas às margens do Rio Araguaia permitiram a admissão do Estado brasileiro no polo passivo da demanda, pois violaram as normas da Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 (CADH), também chamado de Pacto de San José da Costa Rica. Mesmo tendo entrado em vigor em 18 de julho de 1978, apenas em 25 de setembro de 1992 o Brasil ratificou sua participação nessa Convenção entre países americanos.

À semelhança da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, adotada e proclamada pela Organização das Nações Unidas (ONU), a Convenção segue o princípio da imprescritibilidade dos crimes cometidos contra a humanidade, possibilitando, assim, o processo perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), órgão que a compõe.

Desta forma, podemos afirmar que o Brasil se submete à Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes Contra a

Humanidade. O princípio da imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade, localizado no texto da Convenção, tem aplicação imediata e chega em nosso ordenamento jurídico via §2º do art. 5º da Constituição nacional (quando feita a leitura pelo jus cogens) e por decisões condenatórias ao Brasil lastreadas no princípio apresentado, como aconteceu na condenação do Brasil no Caso Araguaia (MARQUES, 2011, p. 152).

A prescrição, segundo Ivan Luís Marques, “é a perda do poder-dever de punir do Estado pelo seu não exercício em determinado lapso de tempo” (2011, p. 136). Portanto, no caso dos crimes comuns cometidos durante a ditadura militar não haveria a aplicação deste instituto, possibilitando a punição dos seus agentes e, com isso, a proteção ampla dos direitos humanos juridicamente defendidos.

A Convenção Americana de Direitos Humanos foi assinada em San José, Costa Rica, em 1969, no seio da Conferência Especializada de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA), mas entrou em vigor apenas em 1978. Esse tratado, conhecido também como Pacto de San José da Costa Rica, é hoje o principal diploma de proteção dos direitos humanos nas Américas por vários motivos: 1) pela abrangência geográfica, uma vez que conta com 24 Estados signatários; 2) pelo catálogo de direitos civis e políticos e 3) pela estruturação de um sistema de supervisão e controle das obrigações assumidas pelos Estados, que conta inclusive com uma Corte de Direitos Humanos, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, com sede em San José da Costa Rica (RAMOS, 2010, p. 286).

A inclusão definitiva na Convenção Americana de Direitos Humanos somente ocorreu após o retorno do país à democracia, porém, apenas em 1998 o Brasil passou a reconhecer a jurisdição obrigatória da Corte, possibilitando o processo e a punição dos agentes responsáveis por violações aos direitos e garantias fundamentais na ditadura militar.

O Brasil incorporou definitivamente a Convenção Americana de Direitos Humanos pelo Decreto Presidencial nº 678, de 11 de novembro de 1992. Somente em 8 de setembro de 1998 foi encaminhada a Mensagem Presidencial nº 1.070 ao Congresso, pela qual foi solicitada a aprovação. [...] Aprovada no Congresso Nacional, foi editado o Decreto Legislativo 89/98, em 3 de novembro de 1998. Finalmente, o Brasil encaminhou nota

transmitida ao secretário-geral da OEA (Organização dos Estados Americanos) no dia 10 de setembro de 1998, reconhecendo a jurisdição obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos, obrigando-se, assim, a implementar suas decisões. Tal reconhecimento foi promulgado, internamente, pelo Decreto 4.463, de 8 de novembro de 2002, quase quatro anos após o encaminhamento a OEA (RAMOS, 2010, p. 286).

O processo do caso da Guerrilha do Araguaia restou sentenciado em 24 de novembro de 2010. O julgamento presidido pelo juiz peruano Diego Garcia-Sayán, tornou-se público após a notificação oficial e através de um comunicado à imprensa. Postado no site oficial, a Corte confirmou a jurisprudência dos julgados anteriores, condenando o Estado brasileiro pelo desaparecimento forçado de 62 pessoas, entre os anos de 1972 e 1974.

No dia de hoje, a Corte Interamericana de Direitos Humanos notificou o governo do Brasil, os representantes das vítimas e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos a respeito da Sentença no caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) versus Brasil. Em sua Sentença, o Tribunal concluiu que o Brasil é responsável pela desaparição forçada de 62 pessoas, ocorrida entre os anos de 1972 e 1974, na região conhecida como Araguaia (www.corteidh.or.cr, 2010).

Conforme formalizado na Convenção Americana de Direitos Humanos, não cabem recursos contra os julgados da Corte, impossibilitando qualquer forma de procrastinação ou desídia com a condenação sofrida pelo Brasil.

Art. 67º A sentença da Corte será definitiva e inapelável. Em caso de divergência sobre o sentido ou alcance da sentença, a Corte interpretá-la-á, a pedido de qualquer das partes, desde que o pedido seja apresentado dentro de noventa dias a partir da data da notificação da sentença (CADH, 1969).

A reação dos ministros do STF com o resultado do julgamento foi de desprezo. Principalmente os votantes contrários à Revisão da Lei de Anistia, que

entenderam que “a punição do Brasil não revoga, não anula, não cassa a decisão do Supremo” (BALDI, 2011, p. 170).

Iniciando a análise pelo voto do relator, Min. Eros Grau, vê-se que não foi citada a Convenção Americana de Direitos Humanos – poderia auxiliar a reflexão sobre a não receptação da interpretação de extensão da anistia a agentes da ditadura envolvidos em atos bárbaros (RAMOS, 2011, p. 183).

A situação expôs a obrigação do Brasil em cumprir a totalidade da sentença, que além do episódio referente ao caso Araguaia, responsabilizando o Estado pelo desaparecimento forçado de opositores durante a guerrilha, condenou o país a revisar sua Lei de Anistia (Lei nº 6.683/79). Entenderam os julgadores da Corte ser a normativa interna incompatível com a Convenção Americana, por impedir a investigação e sanção de graves violações aos direitos humanos (CIDH, nº 11.552).

Concluíram os julgadores que o réu da demanda foi responsável pelo sofrimento ocasionado pela falta de investigações efetivas para o esclarecimento dos crimes. Ordenaram a criação de uma Comissão da Verdade, que cumpra com os parâmetros internacionais de autonomia, independência e consulta pública para sua integração, e que esteja dotada de recursos e atribuições adequadas. Processo que já está em curso no país através do Projeto de Lei nº 7.376/2010. Reconheceram o esforço do Estado pelas indenizações pecuniárias às vítimas da ditadura, porém requereram a majoração dos valores fixados e o pagamento das diferenças (CIDH, nº 11.552).

A soberania da sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos se evidencia com a explicação de Marlon Alberto Weichert:

Em outras palavras, para recusar a autoridade da CIDH seria necessário existir algum vício de inconstitucionalidade – formal ou material – nos atos de ratificação, aprovação e promulgação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos ou de aceitação da jurisdição da CIDH. Em especial, para sustentar a não aplicação de uma sentença da CIDH proferida contra o Brasil, o STF terá que declarar inconstitucional a promulgação da cláusula do art. 68.1 da Convenção: “Os Estados-Partes na Convenção

comprometem-se a cumprir a decisão da Corte em todo caso em que forem partes” (2011, p. 228).

A expectativa em torno das medidas a serem tomadas pelo Brasil a partir da publicação da sentença gerou grande desconforto diplomático. A obrigação de revisar sua Lei de Anistia expôs a fragilidade do estágio alcançado pelo Estado Democrático de Direito brasileiro e sua “defasada tutela interna dos direitos humanos” (GOMES; MAZZUOLI, 2011, p. 61), seja por receio ou por falta de boa vontade política. Já as demais determinações poderão ser efetivamente cumpridas, suas diretrizes não comprometem a idoneidade de figuras públicas, mas tão somente privilegiam o bem-estar das vítimas da Guerrilha do Araguaia.

Consciente das dificuldades práticas para a efetivação do julgado e também do desinteresse de grande parte da sociedade com a questão, a Corte Interamericana de Direitos Humanos comunicou o Estado brasileiro da possibilidade de sua exclusão da Organização dos Estados Americanos (OEA), caso descumpra o determinado. Tal procedimento seria severamente danoso às pretensões do Brasil de adentrar ao seleto rol de países permanentes do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), além das retaliações imediatas praticadas pela própria Convenção Americana.

A condenação sofrida pelo Brasil mostrou-se eficaz em outros países sul- americanos, que, por também estarem sob a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, revisaram suas leis e puniram seus agentes que abusaram do poder durante suas ditaduras militares. Esses exemplos são utilizados como parâmetro pelos favoráveis ao cumprimento total do julgado, justificando o progresso democrático ocorrido nestes países.

O Chile, apesar de ter promovido alterações espontâneas em sua lei de anistia, igualmente favorável aos militares, tal se deu por pressão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o que possibilitou a prisão do ex-chefe da Dina (polícia civil chilena), Manuel Contreras, por crimes cometidos na ditadura, encerrada no país em 1990.

Na Argentina, após forte pressão exercida pelas vítimas da severa ditadura militar que vigorou de 1976 a 1983, revogaram-se em 1995 as Leis Ponto Final (1986) e Obediência Devida (1987). Similares à Lei de Anistia brasileira, suas revogações permitiram os processos contra autoridades militares e políticas, como o general Reynaldo Benito Bignone, último presidente de fato da ditadura argentina. Condenado em abril de 2010 a 25 anos de prisão pelos crimes de roubo, sequestro e tortura durante o regime militar no Campo de Mayo, o maior complexo de detenção e torturas dos anos 70 no país. Casos que servem de parâmetro para os prováveis processos a serem respondidos pelas autoridades militares brasileiras da época.

Antes de abandonar el poder, los militares produjeron una amnistia sobre sus propios comportamientos. A través de la “ley” de facto 22.924 la dictadura busco auto amnistiarse em relación con los delitos que se cometieron em aquel período.

Al asumir el gobierno democrático del. Dr. Afonsín – representante del partido Radical – se creó una comisión especial – CONADEP – con el fin de recopilar toda la información posible sobre el destino de los detenidos desaparecidos y otros crímenes de la dictadura. Esa informacíon se volcó a libro “Nunca Más”. Además, mediante la ley 23.040 el Congresso derógo la ley 22.294 considerandola inconstitucional e insanablemente nula por pretender el perdón de los crímenes perpetrados por el gobierno militar desde 1976 a 1983 (YACOBUCCI, 2011, p. 26).

A condenação sofrida pelo Estado brasileiro trará reflexos nos próximos anos, o que deverá incluir o Brasil no rol de países que revisaram suas leis de anistia e, com isso, puniram seus agentes da ditadura. Entende-se que assim, em prol de uma suposta evolução democrática, o país terá cumprido com suas obrigações firmadas quando ratificou sua participação na Convenção Americana de Direitos Humanos.