• Nenhum resultado encontrado

As principais violações aos direitos fundamentais durante a ditadura militar

A notoriedade negativa conquistada pelo Ato Institucional nº 5 mascara a maior das violações aos direitos fundamentais ocorrida durante a ditadura militar. Editado em 05 de setembro de 1969 pelos Ministros do Estado da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar, o Ato Institucional nº 14 alterou a redação do § 11 do artigo 150 da Constituição Federal de 1967, subjetivamente permitindo a pena de morte aos revolucionários ou subversivos opostos ao regime militar.

Apesar da subjetividade da norma, a alteração normativa expressava a severidade da intenção do legislador.

§ 11 - Não haverá pena de morte, de prisão perpétua, de banimento, nem de confisco. Quanto à pena de morte, fica ressalvada a legislação militar aplicável em caso de guerra externa. A lei disporá sobre o perdimento de bens por danos causados ao erário ou no caso de enriquecimento ilícito no exercício de função pública (CF/1967).

§ 11 - Não haverá pena de morte, de prisão perpétua, de banimento, ou confisco, salvo nos casos de guerra externa psicológica adversa, ou revolucionária ou subversiva nos termos que a lei determinar. Esta disporá também, sobre o perdimento de bens por danos causados ao Erário, ou no caso de enriquecimento ilícito no exercício de cargo, função ou emprego na Administração Pública, Direta ou Indireta (AI-14).

Ainda que permitido pela legislação em vigor, não há registros da aplicação da pena morte por parte do governo entre os anos de 1964 e 1985, excluindo-se dessa estatística as mortes patrocinadas sem o amparo da lei. A severidade do Ato Institucional nº 14, corroborada pela Nova Lei de Segurança Nacional e a Emenda Constitucional nº 1 (ou Constituição outorgada de 1969), influenciou diretamente a reformulação pertinente à Justiça Militar, ao Código Militar, ao Código de Processo Penal Militar e à Lei da Organização Judiciária Militar (MOREIRA, 2010).

Significativamente mais rigorosos, concederam amplos poderes aos tribunais militares para o julgamento de casos envolvendo civis.

A não aplicação da pena de morte não impediu a cruel e disseminada prática da tortura, forma letal utilizada pelos militares e seus agentes na busca por informações que julgavam importantes. Diversas foram as modalidades aplicadas, e centenas os casos confirmados, muitos ocasionando sequelas físicas e psicológicas irreversíveis, quando não redundando na morte dos interrogados após infindáveis sessões.

O auge da prática da tortura como meio inquiritório e também punitivo se deu após a edição do Ato Institucional nº 5, embora repudiada também por militares. “De fato, se, após as primeiras semanas posteriores ao golpe, a tortura fora reprimida pelos chefes militares, recomeçou a todo vapor com a edição do AI-5” (MOREIRA, 2010, p. 275). As críticas à prática da tortura ocorreram frequentemente durante a ditadura, motivadas principalmente por vítimas e seus familiares. Porém, sem jamais cessar sua aplicação.

A suspensão formal do estado democrático de direito a partir do AI-5 estimulou violações aos direitos e garantias fundamentais, já enfraquecidos pela Constituição Federal de 1967. Segundo Adriano de Freixo e Taís Ristof, “a partir daquele momento, intensificaram-se o arbítrio e as violações dos direitos e da dignidade da pessoa humana no Brasil, que, embora já presentes antes de 1968, são levados ao extremo nos anos seguintes” (2010, p. 148).

A prática de tortura foi repudiada por vários militares. Um dos que atacaram mais duramente a violência contra os presos políticos foi o coronel Luiz Henrique Pires, ex-chefe da Seção de Doutrina da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme), e um dos fundadores do Curso de Política e Alta Administração do Exército (CPAEx) (CONTREIRAS, 2010, p. 180).

Mesmo não possuindo respaldo jurídico, a prática de tortura foi o resultado de diferentes violações a direitos e garantias fundamentais decorrentes do AI-5. A suspensão do habeas corpus nos casos de crimes políticos, contra a segurança

nacional, a ordem econômica e social e a economia popular (art. 10); a exclusão da apreciação judicial dos atos praticados com base no Ato Institucional que se editava, bem como de seus Atos Complementares, aliados ao regime de incomunicabilidade estabelecido pela Lei de Segurança Nacional, permitiu aos militares investigar, prender, interrogar e punir seus opositores, não havendo instância superior que exercesse alguma forma de controle.

As mortes do jornalista Wladimir Herzog e do metalúrgico Manoel Fiel Filho simbolizaram as violações aos direitos e garantias fundamentais, constrangendo o poder militar pela grande exposição negativa que se seguiu. Porém, os casos não deixaram de ocorrer, culminando em outras mortes ou sequelas nas vítimas e seus familiares.

Durante os vinte e um anos de ditadura militar, muitos outros direitos e garantias fundamentais restaram violados ou ignorados, situação que ainda se reflete no desenvolvimento social do país, e que expuseram o Brasil à recente condenação perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão que compõe a Convenção Americana de Direitos Humanos.

3 OS REFLEXOS DAS VIOLAÇÕES AOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS DURANTE A DITADURA MILITAR

Os reflexos das violações aos direitos e garantias fundamentais iniciaram-se tão logo as violações passaram a ocorrer. O Brasil anterior ao golpe militar estava sob a égide da democrática Constituição Federal de 1946, influência sofrida pelo processo de redemocratização posterior à queda de Getúlio Vargas. Vigorou por 18 anos, sendo interrompida bruscamente por um período de 21 anos de constantes violações de direitos, transformando a história de um país e de gerações de brasileiros.

Com o fim da ditadura e a promulgação da Constituição Federal de 1988, intensificaram-se as tentativas de responsabilização civil e criminal dos agentes militares. Seguindo os moldes sul-americanos, as vítimas e seus familiares passaram a pressionar por medidas que reparassem as violações ocorridas.

Em setembro de 2006, foi aceita no Brasil uma ação inédita de responsabilização de um torturador do período ditatorial. O juiz Gustavo Santini Teodoro, da 23ª Vara Cível de São Paulo, acolheu Ação Declaratória impetrada em 2005 pela família Almeida Teles contra Carlos Alberto Brilhante Ustra – comandante do DOI-CODI/SP entre 1970 e 1974 – por entender que a ofensa aos direitos humanos não está sujeito à prescrição (DOSSIÊ DITADURA, 2010, p. 46).

Entretanto, somente em 2010 medidas mais contundentes foram tomadas no sentido de punir efetivamente os autores dessas violações. Com destaque para a tentativa de revisão da Lei de Anistia (Lei nº 6.683/79) através da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153 (ADPF), ação ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil perante o Supremo Tribunal Federal, e o julgamento do caso Gomes Lund (Caso nº 11.552), crimes ocorridos durante a Guerrilha do Araguaia, perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Esses processos inauguraram um novo período de reparação aos direitos humanos violados no Brasil, contribuindo para a consolidação da democracia e a reparação dos danos sofridos.

Apesar do insucesso da ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental julgada pelo plenário do STF em 29 de abril de 2010, a negativa da possibilidade de revisão da controvertida Lei de Anistia brasileira, que, segundo Fábio Konder Comparatto, procurador do Conselho Federal da OAB, tinha por objetivo “recuperar a honorabilidade das Forças Armadas, após os atos de arbitrariedade – terrorismo, sequestro, assalto, tortura e atentado pessoal – praticados por integrantes da corporação contra opositores do regime militar”, expôs o desejo da sociedade em sepultar qualquer resquício das violações anteriormente praticadas.

A demanda tinha por escopo punir tão somente os agentes públicos que, sob a égide do Estado, cometeram crimes contra o cidadão. Segundo Comparato, “se a lei tivesse anistiado os agentes públicos que cometeram milhares de atos de tortura durante o regime militar, esta anistia teria sido recepcionada no texto da Constituição Federal de 5 de outubro de 1988. Mas isto não ocorreu.”

Importante destacar o exposto pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal, Eros Roberto Grau, relator do julgamento da ADPF/153 em seu voto contrário à revisão da Lei de Anistia:

O arguente alega ser notória a controvérsia constitucional a propósito do âmbito de aplicação da “Lei de Anistia”. Sustenta que “se trata de saber se houve ou não anistia dos agentes públicos responsáveis, entre outros crimes, pela prática de homicídio, desaparecimento forçado, abuso de autoridade, lesões corporais, estupro e atentado violento ao pudor contra opositores políticos ao regime militar” (ADPF 153, 2010).

Na prática, a procedência da demanda traria consigo a possibilidade de, no âmbito nacional, reabrir investigações e processos por abusos cometidos durante os “anos de chumbo”, punindo os envolvidos pelos crimes cometidos.

É necessário dizer, por fim, vigorosa e reiteradamente, que a decisão pela improcedência da presente ação não exclui o repúdio a todas as modalidades de tortura, de ontem e de hoje, civis e militares, policiais ou delinquentes (GRAU, ADPF 153, 2010).

Em âmbito internacional, a busca pela punição aos agentes criminosos de ditaduras militares tem ocorrido de forma incisiva. A Corte Interamericana de Direitos Humanos já proferiu cinco acórdãos contra diferentes países considerando inválidas suas leis de autoanistia. Nesta situação se encontra o Brasil, que, em 24 de novembro de 2010, teve julgado contra si demanda referente às atrocidades cometidas durante a Guerrilha do Araguaia (Caso Gomes Lund e Outros vs. Brasil), fato ocorrido entre os anos de 1972 e 1975, no qual cerca de 70 pessoas, entre

membros do Partido Comunista do Brasil e camponeses da região, foram torturadas e assassinadas. Desses, vários corpos jamais foram localizados.

Os peticionários entendem que a indenização não é uma reparação completa da violação e alegam que o Estado não pode com a indenização pretender ter reparado a totalidade da violação, pois ainda falta identificar e punir os responsáveis pela mesma. O Estado alega, por sua vez, que em virtude da Lei de Anistia não é possível investigar a responsabilidade individual e sancionar os agentes públicos envolvidos no caso. A Comissão considera no presente caso que deve considerar se a Lei de Anistia aprovada, no tocante aos fatos em que se enquadram os denunciados, estabelece um regime de impunidade, que impediria que os tribunais competentes julguem e estabeleçam uma condenação aos eventuais responsáveis das violações denunciadas (CIDH, Relatório nº 33/01, Caso nº 11.552).

Os argumentos defensivos não foram aceitos, ocasionando a condenação de forma unânime do Brasil pelo desaparecimento forçado e, portanto, pela violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal, liberdade pessoal e liberdade de pensamento. Entenderam os juízes da Corte que o Estado brasileiro descumpriu a obrigação de adequar seu direito interno à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, incluindo neste item a controversa Lei de Anistia.

O Brasil restou condenado também a conduzir eficazmente as investigações penais dos fatos que ensejaram a presente demanda, determinando o paradeiro das vítimas desaparecidas, identificando e entregando os restos mortais a seus familiares, além de oferecer tratamento médico e psicológico/psiquiátrico às vítimas que o requeiram. Dentre as diversas condenações trazidas, o Estado ainda deverá realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional a respeito dos fatos do caso Araguaia, tudo supervisionado pela Corte e sem a possibilidade de recurso.

De forma conclusiva, entenderam os juízes que compõem a Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão integrante da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que as medidas adotadas pelo Brasil, como a Lei de Anistia e

a política de indenizações e benefícios, não se constituíram em uma "reparação suficiente" das violações alegadas pelas vítimas.

Segundo consta no Relatório nº 33/01, Caso nº 11.552 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos:

No presente caso, não seria possível à Comissão definir o que é uma reparação suficiente das violações, sem antes determinar a existência e a natureza das eventuais violações, o que só pode ser determinado na fase de mérito. Por estas razões, a Comissão entende desestimar a alegação do Estado de que devem se aplicar as hipóteses dos artigos 48(b)(e)(c) da Convenção.

Os fatos alegados na petição, se comprovados, caracterizariam violações dos artigos I, XXV e XXVI da Declaração Americana, assim como dos artigos 1(1), 4, 8, 12, 13 e 25 da Convenção Americana. A Comissão considera que a exceção do artigo 47(b) não se aplica ao presente caso (CIDH, nº 11.552).

A possibilidade de divergências entre os julgados externos e internos, à semelhança do ocorrido nos países latino-americanos vítimas de ditaduras militares, pressionou o Supremo Tribunal Federal a pacificar seu entendimento no sentido de proteção aos direitos humanos.

Frise-se de antemão que o STF, no dia 3 de dezembro de 2008, decidiu (historicamente) que os tratados internacionais de direitos humanos valem mais do que a lei e menos que a Constituição, estando no nível supralegal no país (cf. RE466.343/SP). Ainda que não tenha a Suprema Corte atribuído nível constitucional aos tratados de direitos humanos (por um voto faltante apenas), o certo é que trilhou o STF o caminho juridicamente correto (de respeito ao direito internacional dos direitos humanos, tal como vem sendo construído e seguido por todos os países civilizados) (GOMES; MAZZUOLI, 2011, p. 51).

No entanto, este entendimento encontra-se em cheque. A recente decisão proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos obrigou o país a revisar sua Lei de Anistia, decisão anteriormente negada pelo STF e que deverá trazer mudanças drásticas nos rumos políticos e jurídicos do Brasil.