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A tentativa de revisão da Lei de Anistia através da ação de Arguição de

A inconformidade com a autoanistia concedida pelos agentes da ditadura militar perdurou silente até o ano de 1992, quando retornou à pauta de discussão a morte do jornalista Vladimir Herzog e a responsabilização por este homicídio. Embora a versão oficial da época tenha confirmado suicídio, em 25 de março de 1992, o Ministério Público de São Paulo requisitou a abertura de inquérito policial (Inquérito Policial 704/92 – 1.ª Vara do Júri de São Paulo) à Polícia Civil paulista para apurar as circunstâncias da morte do jornalista. Diligências motivadas por uma reportagem publicada na Revista IstoÉ, Senhor, trouxe novos elementos de prova ao confirmar a tese de homicídio, incluindo a própria declaração do investigador de polícia civil requisitado para atuar no DOI/CODI, investigado como autor do referido crime (RAMOS, 2011, p. 181).

Porém, através de um habeas corpus, a 4ª Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo determinou o trancamento do inquérito policial, por considerar que tais ilícitos criminais teriam sido contemplados pela anistia prevista na Lei nº 6.683/1979.

Apesar do insucesso da demanda, a discussão em torno da possível revisão da Lei de Anistia e consequentemente a punição dos agentes militares que cometeram crimes comuns, como, torturas, homicídios, estupros e desaparecimentos forçados, proporcionaram um debate mais acurado em torno do assunto.

Entretanto, somente em 2008, houve, de forma organizada, uma tentativa formal de revisão ou reinterpretação da Lei de Anistia. Conforme explica André Carvalho Ramos:

Em outubro de 2008, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) interpôs Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 153) perante o STF, na qual foi pedido que fosse interpretado o parágrafo único do artigo 1.º da Lei 6.683/1979 conforme a Constituição de 1988, de modo a declarar, a luz de seus preceitos fundamentais, que a anistia concedida pela citada lei aos crimes políticos e conexos não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão (civis ou militares) contra opositores políticos, durante o regime militar (2011, p. 180).

A ferramenta jurídica adotada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, intitulada de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), disciplinada no § 1º do art. 102 da Constituição Federal de 1988 e regulamentada na Lei nº 9.882 de 03 de dezembro de 1999, de acordo com Valéria Ribas do Nascimento, “foi um instituto criado a partir da Constituição de 1988, [...], objetivando preservar a obediência às regras e aos princípios constitucionais que, sendo considerados fundamentais, demandam um mecanismo próprio para proteção” (2006, p. 56).

Importante destacar a ambígua decisão do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil em fazer uso da ADPF, pois tramita perante o STF Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) ajuizada pela próprio Conselho, questionando a constitucionalidade da lei que regulamentou a ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental.

Igualmente, por legislação ordinária, foi estabelecida a manipulação dos efeitos das decisões do Supremo Tribunal Federal. Essa é uma das razões que levou o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil a ingressar com a ação direta de inconstitucionalidade, contra a lei que regulamentou a arguição de descumprimento (NASCIMENTO, 2006, p. 115).

Ação constitucional exclusivamente brasileira, a ADPF não possui similaridade no direito internacional, conforme ensina André Ramos Tavares, que refere haver apenas ferramentas jurídicas aproximadas com o instituto ora em análise (2001). Tem como característica principal evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público, incluídos os atos anteriores à Constituição de 1988.

Art. 1o A argüição prevista no § 1o do art. 102 da Constituição Federal será proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público. Parágrafo único. Caberá também argüição de descumprimento de preceito fundamental:

I - quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição (Lei nº 9.882/99).

A condição de retroagir e disciplinar controvérsias constitucionais anteriores à Constituição em vigor capacitou os proponentes dessa ação a discutirem a validade e a interpretação de lei editada em 1979. De forma sui generis, aplicar o vasto rol de direitos e garantias fundamentais da Constituição de 1988 ao período da ditadura militar, ignorando as Constituições Federais e Atos Institucionais vigentes naquele período.

De posse da prerrogativa de retroagir às violações de direitos anteriores a CF/88, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, representado pelo jurista Fábio Konder Comparato, “invocou os preceitos fundamentais constitucionais da isonomia (art. 5º, caput), direito à verdade (art. 5º, XXXIII) e os princípios republicano, democrático (art. 1º, parágrafo único) e da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III)” (RAMOS, 2011, p. 180), preceitos elencados pela democrática Constituição Cidadã de 1988.

No entanto, a ação ajuizada perante o Supremo Tribunal Federal em 21 de outubro de 2008 restou julgada improcedente em 28 de abril de 2010, após um

longo debate político-jurídico apartado da sociedade e que expôs diferentes pontos de vista entre os ministros votantes.

Após o ajuizamento e distribuição da Arguição em 21.10.2008 para a relatoria do então Min. Eros Grau, foram prestadas as informações, tendo a Advocacia-Geral da União sustentado o não conhecimento da arguição, em preliminar, e, no mérito, pela sua improcedência. [...] Na sessão de julgamento, em 28.04.2010, houve a participação de apenas nove ministros, pois o Min. Joaquim Barbosa estava licenciado e ainda declarou-se suspeito o Min. Dias Toffoli. Inicialmente, foram rejeitadas as preliminares, vencido o Min. Marco Aurélio, que votou pela extinção da ação por falta de interesse de agir. No mérito, sete Ministros declararam improcedente a arguição (Min. Eros Grau – relator, Carmen Lúcia, Ellen Gracie, Marco Aurélio, Cezar Peluso, Celso de Mello e Gilmar Mendes) e dois votaram pela procedência parcial (Min. Lewandowski e Carlos Britto) (RAMOS, 2011, p. 181).

Diferentes foram os argumentos apresentados pelos nove Ministros habilitados a votar, tendo o Ministro Eros Grau, relator do processo, votado pela improcedência da ADPF por entender que cabia ao Poder Legislativo a revisão da Lei da Anistia, e não ao STF. Porém, no mérito, a tese que se consolidou e determinou a improcedência da demanda por 7 (sete) votos a 2 (dois) foi a de que a revisão da Lei de Anistia romperia com o compromisso firmado entre governo e oposição, acordo que possibilitou o fim do ditadura militar e o retorno do país ao Estado Democrático de Direito.

O STF, quando do julgamento da ADPF 153/DF, em que foi relator o então Min. Eros Grau, afirmou que: “(a) a lei da anistia se deu por solução consensual das partes (em plena época da ditadura); (b) que não era aplicável a jurisprudência internacional, porque não seria hipótese de anistia ‘unilateral’, mas sim recíproca, sem questionar, contudo, quem foi que se autoconcedeu a anistia; e (c) que o cidadão tinha direito à verdade, mas fez questão de frisar que eventual ‘Comissão de Verdade’ não teria nem poderia ter qualquer finalidade de persecução penal. Ficaram vencidos apenas o Min. Lewandowski e o Min. Ayres Britto, ambos com argumentos distintos” (BALDI, 2011, p. 154).

Apesar de vencidos no julgamento da ADPF/153, importante destacar o teor dos votos dos Ministros Enrique Ricardo Lewandowski e Carlos Ayres Britto.

Assim sendo, o Min. Lewandowski trouxe ao debate com seus pares o entendimento desses dois órgãos sobre o objeto da lide. Assim, o voto expôs o dever brasileiro de investigar, processar e punir criminalmente os autores das violações graves de direitos humanos na época da ditadura. Inclusive foi citada parte da Observação Geral 31 do Comitê de Direitos Humanos, mostrando a verdadeira face do diálogo: o reconhecimento, em boa-fé, da necessidade de cumprir a interpretação dos direitos previstos no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, em vez de criar uma estranha “interpretação nacional” e afirmar, posteriormente, estar em linha com os direitos humanos internacionais (RAMOS, 2011, p. 193).

O Min. Carlos Britto não fez referência aos tratados de direitos humanos ou às posições assumidas por seus órgãos de controle. Assim, sua interpretação está baseada na Constituição brasileira que não teria atribuído caráter “amplo, geral e irrestrito” aceito pelos outros ministros à Lei de Anistia (RAMOS, 2011, p. 196).

As críticas contra o resultado do julgamento recaíram sobre a manutenção, por parte dos julgadores, do entendimento de que as torturas, homicídios, estupros e ocultações de cadáveres cometidos pelos agentes da ditadura foram crimes políticos ou conexos com estes, conforme a redação do §1º do art. 1 da Lei de Anistia. Crimes reconhecidamente comuns, que, segundo Ivan Luís Marques “são condutas tipificadas praticadas sem estar acompanhada de motivação política, ou seja, a intenção que move o agente para a prática delitiva não diz respeito ao regime governamental, à ideologia partidária, etc” (2011, p. 146).

Conclui-se, portanto, que os crimes políticos puros possuem características próprias. Já os crime relativos, quando atingem bens jurídicos caros à humanidade, perdem sua pureza política e escapam das benesses concedidas, por exemplo, pela Lei da Anistia. Tornaram-se imprescritíveis e não anistiáveis (MARQUES, 2011, p. 146).

Por parte dos militares, propagou-se o entendimento de que a revisão da Lei de Anistia abriria a possibilidade de punição aos “terroristas/subversivos de esquerda”. Oposicionistas que cometeram assassinatos e sequestros de autoridades nacionais e internacionais, além de assaltos a bancos e estabelecimentos comerciais, formas adotadas para custear as campanhas pelo retorno à democracia.

O surto terrorista brasileiro nada teve de incruento. Afora os sequestros, depois de 1969 faltaram-lhe as sonhadas bases rurais e as ações espetaculares, mas abundaram as vítimas. [...] Essas organizações mataram 36 agentes anônimos da ordem. Boa parte deles eram soldados e cabos das polícias militares. Estavam na base da pirâmide social, mas sustentavam a ordem da ditadura. O mesmo não se pode dizer de cerca de quinze guardas de bancos, carros fortes e estabelecimentos comerciais. Morreram na cena das ações terroristas pelo menos outras dez pessoas que nada tinham a ver com a segurança dos locais onde estavam. Eram bancários, comerciantes ou mesmo um cobrador de ônibus (GASPARI, 2002, p. 396).

Os argumentos desestimularam a intenção democrática da revisão da Lei de Anistia. Alertaram para as possíveis consequências a ambas as partes no caso de sucesso da ADPF/153. Principalmente no caso de figuras públicas que, após 1985, passaram a exercer cargos políticos importantes, como o exemplo da Presidente da República Dilma Roussef, que durante a ditadura militar integrou um grupo de guerrilheiros de esquerda, tendo participado de sequestros e roubos durante as campanhas de oposição.