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Em “Discussión sobre el término Zona”388, breve argumento de La Mayor, Lalo Lescano e Pichón Garay conversam na varanda de madeira do restaurante “El dorado”, localizado no caminho da costa, do outro lado da ponte pênsil. Sob a varanda estende-se o barranco íngreme, que termina no rio. Na margem oposta, enxergam-se as casas de “fachadas frágeis”, características dessa parte da cidade. É uma tarde quente do verão de 1967. Apesar de faltarem ainda alguns meses para a já sabida partida de Pichón à Europa, os personagens fazem um almoço de despedida - peixe assado embrulhado em papel jornal.

Toda essa cena inicial é descrita como se se tratasse das primeiras orientações de um texto dramatúrgico (lugar; época; temperatura; protagonistas; circunstância), ou como se se tratasse do esboço de um relato que estivesse ainda por ser escrito. Após a introdução, o narrador assume em voz indireta o diálogo entre os personagens. Olhando para o rio, Pichón afirma que sentiria saudades e que “un hombre debe ser siempre fiel a una región, a una zona”

386 GULLÓN, op.cit., p.4.

387 PIGLIA, Ricardo. In: PIGLIA & SAER. Diálogos. Op.cit, p.39. 388 SAER. Cuentos completos, op.cit, p.184-185.

(p.184). Lalo contesta longamente dizendo que simplesmente as regiões não existem, ou, pelo menos, que é muito difícil delimitá-las. Qual seria o limite entre a costa e a pampa gringa, por exemplo? Ou ainda, onde termina o centro da cidade e onde começam as áreas suburbanas? Após longa argumentação, que avança por uma sucessão de questionamentos dessa ordem, o narrador conclui enfim o pensamento de Lalo: “Por lo tanto, no hay zonas. No entiendo, termina Lescano, cómo se puede ser fiel a una región, si no hay regiones”(p.185). O conto, ou o argumento, é concluído de modo um tanto desconcertante. Se a narração da fala de Lalo Lescano estendeu-se por toda uma página, esperaria-se uma contra-argumentação que a equilibrasse. No entanto, sabe-se apenas que Pichón replica “No comparto”.

O leitor pode ser tentado a estender o diálogo, e poderia responder a Lescano que todos os exemplos aos quais ele mesmo recorre estão circunscritos à sua zona (a cidade, o subúrbio, os caminhos, a costa e a pampa gringa). Ao mesmo tempo, seria difícil não dar razão ao personagem, na medida em que toda definição espacial não existe senão como abstração, como imaginação: o espaço só existe a partir da visão que o esquadrinha, do pensamento que o constitui, das palavras que o descrevem, das pessoas que o ocupam e que nele vivem.

Ao desenhar no interior da própria fala do personagem que nega a existência de uma região os contornos da cartografia imaginária de sua zona, Saer reforça a ambiguidade do que simultaneamente existe e não existe, o espaço, questão que se dobra sobre si mesma no caso do espaço ficcional. Talvez, toda a sua obra possa ser vista como um desenvolvimento da contradição insolúvel apenas nomeada entre os dois amigos, nessa discussão movida pelo sentimento antecipado do futuro exilado, sobre o termo zona. Os títulos de alguns de seus livros evidenciam per si a centralidade desse problema em sua poética: En la Zona, Unidad de lugar, La vuelta completa, Lugar.

A delimitação desse espaço narrativo é sem dúvida um dos traços mais marcantes da obra de Saer, e talvez o que primeiramente tenha chamado a atenção da crítica. Desde os primeiros relatos de En la zona já se delineava a paisagem característica da obra posterior: o rio Colastiné, braço do rio Paraná e seus afluentes; a ponte pênsil; as pequenas ilhas; a cidade.

Boa parte da ficção escrita a partir desse primeiro livro adotará a referida zona como cenário: a zona santafesina tornou-se na obra de Saer uma síntese do universo, como a imaginária Santa María, de Onetti. Diz Saer:

el escritor escribe siempre desde un lugar, y al escribir, escribe al mismo tiempo ese lugar, porque no se trata de un simple lugar que el escritor ocupa con su

cuerpo, un fragmento del espacio exterior desde cuyo centro el escritor está contemplándolo, sino de un lugar que está más bien dentro del sujeto, que se ha vuelto paradigma del mundo y que impregna, voluntaria o involuntariamente, con su sabor peculiar, lo escrito. (...) ese lugar que lo acompaña dentro de sí dondequiera que vaya389.

Diferentemente da Santa María onettiana, porém, a Santa Fe de Saer não se assume como totalmente ficcional, formando-se a partir de um tecido mesclado de elementos empíricos e imaginários, comparável talvez ao sertão roseano ou à Yoknapatalpha de Faulkner. A delimitação deste espaço narrativo é tão importante na poética saeriana, que Júlio Premat define Saer como “um escritor do lugar”:

Ser escritor es, en Saer, ser un escritor con un territorio, un escritor que se construye un lugar, que transforma las coordenadas del propio origen para hacer de él el cimiento de una identidad literaria. A la pregunta ‘cómo ocupar un lugar’, Saer parece entonces responder escribiéndose él mismo ese lugar – que es también un lugar de lectura, un modo de recepción de sus textos390.

Seria completamente equivocado associar esse aspecto do projeto literário do autor às propostas do romance regionalista. Em primeiro lugar, Saer não está interessado em afirmar uma região em oposição à hegemonia do que se entende por literatura nacional, ainda que esse efeito acabe se produzindo. O espaço que ele constrói se inscreve no cruzamento de uma região referencial de precisos contornos locais com um marco de enunciação que pensa esse referente a partir de uma formação literária cosmopolita, como vimos no segundo capítulo deste trabalho391.

Martin Prieto assinala nesse sentido a proximidade de Saer com a poesia de J.L. Ortiz, citado acima, parentesco que o próprio autor fez questão de assinalar em mais de uma ocasião. Além do dilatado gesto descritivo e do protagonismo dado ao registro da experiência sensorial, a paisagem do litoral argentino é na obra de ambos o motor primordial de seu imaginário poético e narrativo. Os poetas Hugo Gola e Francisco Urondo poderiam ser vistos também a partir desse resgate do litoral que configura um tecido lírico-narrativo que Prieto denomina “escrituras de la zona”, as quais afetam tanto o que se entende por “cultura nacional” quanto os parâmetros estreitos nos quais se inscrevia o regionalismo tradicional392.

389 SAER. Literaturas y crisis argentina. In: El concepto de ficción. Op.cit. p. 99.

390 PREMAT, J. Saer: um escritor del lugar. In: Héroes sin atributos. Op.cit., p.167. 391 STERN, M. op.cit., p.IV.

392 PRIETO, Martín. Escrituras de la zona. In: JITRIK, Noé (dir.). História crítica de la literatura argentina, v.10.

Apesar da centralidade da região na narrativa de Saer, há um movimento instável, evolutivo e contraditório ao mesmo tempo na construção desse espaço, que se revelou ao longo de sua obra393, segundo Premat. Proponho que esse movimento instável poderia ser diferenciado em movimentos distintos: a circulação no interior da zona, que definem o locus primordial do projeto narrativo de Saer; o deslocamento, sugerido pelos relatos do exílio; a dispersão, quando a zona reconfigura-se em outras paisagens (La pesquisa e Lugar, sobretudo); a expansão, que percebemos sobretudo nos romances La ocasión, Las nubes, como se uma lente zoom sobre a zona litorânea recuasse e passasse a incluir a pampa gringa e trajetos estendidos que cruzam o território argentino; o retorno, movimento presente por exemplo em Glosa, em La pesquisa e, fundamentalmente, em La grande.

No caso de El río sin orillas, já tivemos oportunidade de perceber tanto um movimento de deslocamento e retorno em relação à zona, a partir da construção de um lugar de enunciação do ensaísta que oscila entre o distanciamento do viajante e a aproximação afetiva do nativo. Podemos lê-lo também a partir de um movimento de expansão da zona, na medida em que o litoral santafesino está inscrito no interior de um mapa extendido que toma o Rio da Prata como protagonista do relato. Ao referir-se a uma breve viagem Buenos Aires a Santa Fe, ainda no momento inicial do relato, quando o ensaísta buscava estabelecer algumas linhas mestras de seu projeto, ele escreve:

Es necesario señalar ahora que la expresión Río de la Plata se utiliza tanto para designar el río propiamente dicho como el conjunto que forman la región pampeana y el Uruguay, pero que incluso a veces es una sinécdoque para nombrar a la Argentina entera, e incluso al Paraguay (la cuenca del Plata), de modo que un viaje a Santa Fe, quinientos kilómetros al norte de Buenos Aires, en las orillas del río Paraná, no me había expelido, en el sentido amplio de la expresión, de mi tema394.

Essa breve aclaração parece justificar que o deslocamento à zona santafezina não representava nenhum desvio em relação ao projeto de uma história do Rio da Prata, descrito no início de El río sin orillas. Contudo, podemos lê-la também a partir do sentido inverso, ou seja, entendendo que seu tema primordial, o lugar natal, encontrava-se abrigado e contemplado ainda quando o escritor se dedica ao Rio da Prata.

De todo modo, já ficou claro a forma como o ensaísta só encontra o tom para o seu de Juan L. Ortiz: la autonomía y los poetas. In: JITRIK, Noé (dir.) História crítica de la literatura argentina, v.9. SAÍTTA, Sylvia (ed.) El ofício se afirma. Buenos Aires: Emecé, 2004.

393 PREMAT, op.cit.

relato a partir do momento em que sua zona se lhe apresenta inscrita no projeto: relembro a cena da introdução do ensaio na qual uma lembrança o devolve ao lugar mítico de sua infância e juventude, estabelecendo o ponto zero a partir do qual ele estabelecerá deslocamentos pelas coordenadas de espaço e tempo.

Há outra passagem em que o ensaísta se mostra subitamente devolvido ao seu lugar. No capítulo Verano, o autor recorda-se de uma de suas viagens de retorno à Argentina, viagem realizada nos primeiros dias após o início do golpe de 1976. Mesmo depois de tantos anos de ausência, ao final de uma semana inteira em Buenos Aires ele não havia tido nenhuma sensação especial por estar voltando ao país natal. Evidentemente, o clima de terror que reinava então não poderia favorecer qualquer alegria. Não obstante, ao final dessa semana na capital, ele toma um ônibus a caminho de Santa Fe. Quando o ônibus estaciona em um posto de beira de estrada, em meio a penumbra e ao ar fresco do início da noite, algumas sensações informuladas e recordações parecem insinuar-se em sua intimidade, mas ainda sem nenhuma nitidez. Ele descreve a sensação da sola dos sapatos pisando no barro endurecido e o momento em que se dá conta, em uma fração de segundos, de haver reconhecido a “forma atormentada” das pegadas feitas por patas de animais. Vale a pena a longa citação do que vem a seguir, quando ele apenas acabava de dar-se conta das marcas no chão:

Estaba pensando en los adoquines desiguales de Proust, cuando una aparición brusca perfeccionó el momento: un camión de ganado empezó a bajar despacio por el terraplén que une el camino con la explanada, y el olor a bosta, los mugidos y el tumulto animal de las vacas apretujadas en el camión me instalaron, de golpe, en esa sensación de familiaridad y pertenencia que venía negándoseme desde hacía una semana. (...) en medio del desastre histórico y personal que atravesaba en ese momento, una felicidad sin límites, que duró unos minutos, me arrasó, y cuya sensación dura todavía quince años más tarde, en este momento en que estoy describiéndola395.

Desde o início da cena, lemos o registro minucioso de um espaço perceptivo que não poderia ser encontrado na paisagem urbana portenha e que se configura no texto a partir da mescla de diferentes experiências sensoriais: a frescura do ar, a luminosidade específica do início da noite nessa paisagem, o tato dos pés que atravessa a sola dos sapatos para fazer sentir a rugosidade da terra, o estalo leve do barro pisado, a visão que lê as formas desenhadas no chão.

Como diria Bachelard “a terra natal é menos uma extensão que uma matéria; é um granito ou uma terra, um vento ou uma seca, uma água ou uma luz”396.

O mergulho do ensaísta nesse espaço sinestésico alcançará o ápice com a chegada do caminhão carregado de bois: toda a sua percepção é invadida pela imagem, pelo cheiro e pelo grito rouco dos animais apertados na caçamba, e essa mescla de sensações o devolverá novamente à sua zona, promovendo uma felicidade que consegue se impor sobre o clima de terror que a bloqueava.

Vale sublinhar que com o mesmo gesto que busca reconstruir a memória dessa experência perceptiva e afetiva do seu lugar, o ensaísta assinala simultaneamente a impossibilidade de alcançá-la. Os afetos de um eu viajante se resignificam a partir da experiência pregressa do corpo que lhe é devolvida na cena, mas esta experiência é perpassada pela letra, e o sentimento de pertecimento ao local só pode ser descrito pela mediação da memória do leitor cosmopolita: um caminhão repleto de bois assume seu significado no relato à luz da delicada madeleine proustiana397. Vemos, de todo modo, que por meio da exploração de um espaço perceptivo singular, particular, buscado em sua concretude (inalcansável), vai se desenhando simultaneamente um espaço simbólico, mais abstrato, centro de uma verdadeira cosmogonia, que parece poder abarcar um universo inteiro398.

A dimensão afetiva que atravessa o texto quando o ensaísta trata de seu lugar natal pode ser bastante evidente, como no trecho citado acima, mas também pode aparecer de modo mais sutil, como quando descreve no capítulo “Otoño” os três ventos característicos da região platina. Lembremos que em “Otoño” o ensaísta procura percorrer o tecido formado fundamentalmente por textos de cronistas e viajantes que acabaram por configurar algumas das principais imagens que a sociedade argentina guarda de si mesma. Quando descreve o vento pampero, proveniente do sul, o ensaísta apoia-se nos relatos estrangeiros que sublinham o desconforto e a inclemência desse vento que fustiga as populações, opondo-se ironicamente aos discursos nacionalistas que se ufanam “do mais argentino dos ventos”399. Trata-se de uma contraposição de discursos, temperada com ironia afiada. Ao descrever a suestada, o ensaísta

396 BACHELARD, Gastón. A água e os sonhos – ensaios sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Martins Fontes,

1989, p.9.

397 Diferentemente de Proust, porém, o estímulo externo não dá acesso a uma memória involuntária que se

constitui como narrativa. O estímulo em Saer dá acesso apenas a uma percepção e esta, talvez, a uma memória perceptiva, fragmentos de experiências sensoriais que o narrador tenta em vão reconstruir. DALMORONI e MERBILHAÁ, op.cit., p.332-3.

398 Sobre as dimensões orgânica, perceptiva e simbólica do espaço ver CASSIRER, Ernst. Antropologia filosófica. São

Paulo: Mestre Jou, 1972, capítulo 4.

detêm-se na peculiaridade do gênero feminino desse vento, comparado arquetipicamente a Afrodite, outra filha do Oceano. O temperamento imprevisível desse vento é trabalhado a partir dos registros históricos das suestadas mais notáveis400. Contudo, ao falar do vento norte característico de sua zona, a descrição afasta-se dos relatos dos viajantes ou dos registros históricos, e ganham o relevo de uma descrição sensorial que emana do corpo. Ainda que o ensaísta não dê margem aqui a nenhuma recordação em registro autobiográfico, as cenas descritas sugerem a reconstrução de uma experiência. A descrição parece emanar da pele, da lembrança sensorial das lufadas do vento quente e úmido que aplasta tudo o que toca em uma massa viscosa de calor:

Y en el interior de las casas, esa gran exterioridad desolada y sometida a las ráfagas periódicas de aire caliente y pegajoso, subsiste dentro de los hombres en forma de imágenes mentales diminutas y al mismo tiempo inconmensurables, que desfilan centelleantes y silenciosas suscitando, en los pobres cuerpos sudorosos, echados casi desnudos sobre la sábana, e incluso sobre las baldosas más frescas del piso, contracciones de opresión, de ahogo o de rechazo401.

Lembremos Bachlard quando afirma que a terra natal é também um vento. Trata-se da mesma materialidade enigmática que Saer tanto valoriza na poesia de J.L.Ortiz, que faz da paisagem um “fragmento de cosmos”, pelo qual a palavra avança adivinhando em cada rastro “la gracia misteriosa de la materia”402.

Podemos pensar no estabelecimento do cosmos saeriano, a zona santafesina, a partir da qual o ensaísta e o narrador prescutam o mundo, como um gesto similar e ao mesmo tempo oposto ao gesto consagrador do espaço pelo homem religioso. Segundo Mircea Eliade403, nas narrativas e na ritualística religiosa, o espaço sagrado é estabelecido por uma quebra, por uma descontinuidade na extensão informe que caracteriza o caos. Essa descontinuidade instaura um marco zero, um centro que torna possível a orientattio e a partir do qual o mundo deixa-se perceber como cosmos, como Mundo. No espaço profano, ao contrário, ainda que intervenham valores que de algum modo lembram a não-homogeneidade específica da experiência religiosa do espaço, já não é possível estabelecer nenhuma orientação. O que emerge da experiência do homem moderno em relação ao espaço não são mais que “fragmentos de um universo

400 Idem ibidem, p.131-2. 401 El río sin orillas, p.130-1

402 SAER. Juan. In: El concepto de ficción, op.cit., p.82.

fragmentado, massa amorfa de uma infinidade de lugares”404.

A criação da zona de Saer parece reunir paradoxalmente as noções opostas de espaço sagrado e profano. Ao mesmo tempo em que erige um centro a partir do qual a escrita esquadrinha o mundo, esse ponto nuclear não é o lugar de uma ordem vitoriosa. Nas epifanias que acometem os personagens de Saer, vê-se em alguns casos a emergência de uma rotura espacio-temporal que lembra, de fato, a experiência do sagrado, quando se instala na consciência do personagem um lampejo de sentido que consegue impor-se sobre o caos circundante, parecendo colocá-lo no próprio coração do real: um posto de beira de estrada transforma-se assim em verdadeiro centro do Mundo. Mas trata-se de uma vitória provisória, que apenas suspende momentaneamente a ausência de sentido com a qual se enfrenta o homem contemporâneo (e o narrador que se encarrega de narrá-la). Em outros casos, como veremos nas passagens a seguir, o que se evidencia na descontinuidade epifânica que invade os personagens é justamente a presença do caos: a zona torna-se o lugar de um estranhamento radical a partir do qual se desestabiliza qualquer possibilidade de orientação.