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“El camino de la costa”351foi publicado pela primeira vez em 1964, na efêmera Zona, revista de circulação bastante restrita. Permaneceu, portanto, praticamente desconhecido do público até sua republicação em Cuentos Completos, de 2000, mais de três décadas depois. O conto foi escrito na mesma época em que eram publicados os contos de En la zona, onde o cenário da periferia portuária nos arredores de Santa Fe é o lugar da velha lei que perpassa as rudes relações entre as personagens. Nesta época, inserido no grupo de escritores que estabeleceu forte relação com o Instituto Cinematográfico de Santa Fe, percebem-se sinais de contato entre sua narrativa e o neo-realismo italiano como a eleição de personagens marginais, a marca da oralidade na escritura e o trabalho de caracterização das personagens

349 Idem ibidem, p.59.

350 Sobre os vários graus de relação entre a escrita do ensaio e as leituras dos ensaístas ver WEINBERG, op.cit,

p.128.

fundamentalmente a partir de seus atos352.

Em “El camino de la costa”, Beltrán, o protagonista, é um jovem pescador que volta a seu povoado natal, após cinco anos de permanência na prisão, a fim de acertar contas com um antigo inimigo. O inimigo em questão é Clemente Salas, um homem maduro, quase velho, também pescador, com quem a mãe de Beltrán fora viver anos antes. Antes disso, no amanhecer de certo dia, oito meses após a morte da mãe, Beltrán dirigira-se à casa deste homem e o golpeara quase até a morte, sob o olhar aterrado do filho de Salas, que tinha então treze anos. Fora esse o motivo de sua prisão. No presente da narrativa, Beltrán, de volta, caminha novamente pelo caminho às margens do rio que atravessa a cidade, rumo à casa de Salas, com sua faca no bolso do casaco, a fim de matá-lo. Beltrán encontra Salas envelhecido e paralisado por um derrame, dormindo em uma poltrona à frente de uma fogueira no pátio do rancho humilde. A luz da fogueira, sobrepondo-se à do entardecer, como uma luz cenográfica, desnaturaliza o que ilumina. O espaço do texto se evidencia e o tempo se detém, tornando possível o estranhamento. Ao observar detidamente o velho, Beltrán chega a perceber o absurdo da situação, e podemos perceber um princípio de lucidez que, se tivesse força para se impor, poderia demover o protagonista do ato insensato que estava prestes a praticar. Contudo, seus pensamentos são interrompidos pelos movimentos de Salas que, ao acordar, pede a Beltrán que o mate, mas não consegue impedir que este perceba às suas costas a chegada do filho de Salas, empunhando uma faca. Tem-se aqui a tópica primordial da gauchesca, o duelo de facas. Dá-se um verdadeiro bailado entre os oponentes concluído pela morte do jovem filho de Salas: atingido por Beltrán, o sangue lhe escapa das entranhas encharcando o chão de terra batida.

O narrador, em terceira pessoa, comparte com o protagonista as incertezas de seu destino, sem conseguir apresentar qualquer explicação que o ajude a entender a gratuidade de seus atos. Não há um motivo oculto. Uma leitura que buscasse no triângulo edípico a motivação inconsciente para o impulso destruidor seria enganosa. Não se trata de uma possibilidade eludida “por trás” do ato do personagem e sim de uma explicação plausível que o narrador acompanha na própria mente de Beltrán, o qual, ele mesmo, julga insuficiente, sobretudo após os cinco anos em que passou na prisão planejando friamente cada passo. A situação edípica, nesse caso parece sugerir mais a figura trágica de Édipo que, no meio do caminho, não consegue reconhecer o enigma de sua própria vida. No caso do herói sofocleano

352 ROMANO, Evelia. 1º Congresso Regional del Instituto Internacional de Lietratura Iberoamericana. Los cuentos de

Juan José Saer en los sesenta: Punto de partida de una literatura sin atributos. Disponível em

há um desconhecimento, uma ignorância, em relação às suas infrações, e isso o levará à sua desdita, quando finalmente reconhece seu destino. Beltrán, ao contrário não ignora os motivos de suas violações, mas sua ignorância é justamente não saber o que o leva a cometê-las, apesar de reconhecê-las de antemão. Enquanto busca refletir sobre seus atos, o personagem chega a pensar que Salas poderia, inclusive, ser seu pai, o que nunca poderá provar. Beltrán continua preso em seu enigma (em certo modo transgredindo a noção tradicional de tragédia que poderíamos invocar na leitura).

A busca de sentido perpassa as reflexões do protagonista em todo o conto: “la muerte o la cárcel las recibiría con alivio y con gusto si le hubiera sido posible encontrar un sentido a lo que estaba haciendo, ya que por lo menos sabía que no podría dejar de hacerlo”353. O protagonista vê o oponente morto no solo e seu pai, que chora um pranto interminável. O entardecer ao redor, como em outros momentos da ficção de Saer, é completamente indiferente aos fatos. Beltrán retoma o caminho da costa rumo ao povoado, mas interrompe sua volta a meio caminho, pensando que a única libertação possível seria escolher para si um outro mito, o de salvar um homem e não o de matá-lo. Com esse pensamento, dá meia volta rumo ao rancho de Salas, e o conto termina sem que saibamos ao certo o desfecho desse retorno – talvez a morte e a libertação de Salas.

Na leitura do conto é possível estabelecer algumas relações com textos clássicos de Borges. Como se sabe, diversos dos poemas e contos borgeanos convocam a violência percebida ou ouvida na infância, reelaboradas em sua Buenos Aires: o cenário marginal dos arrabaldes; os compadritos e seus respectivos códigos de ética; os duelos de facas; a llanura que circunda as cidades; o Martín Fierro, são elementos recorrentes em sua escrita. O duelo seria a matriz que regra a vida de suas personagens marginais, assim engrandecidas pelo ethos da coragem: “Essa ética que, nas palavras de Borges, se sustenta ‘na dura e cega religião da coragem, de estar pronto para matar e morrer’, inscreve na sua poética a nostalgia por essas vidas que, alheias aos devaneios intelectuais, se consumiam na vertigem da ação violenta”354.

Como em “El fin” e em “El sur”, de Borges, o duelo de “El camino de la costa” se dá ao entardecer, hora em que a llanura se converte no lugar prenhe de segredos. Como em “El fin”, um paralítico converte-se no espectador privilegiado de um duelo, mas agora o paralítico não é um observador distante que será a testemunha de um ato valoroso. O paralítico de “El camino...” é

353 Idem ibidem, p.291

o pai que assiste preso em seu corpo paralisado o filho sangrar até a morte. Como na “Biografía de Tadeo Isidoro Cruz”, há um personagem que pergunta por seu destino, mas que, ao contrário do personagem de Borges, mesmo mediante o ato extremo continua sem respostas.

Nota-se em Saer um diálogo profundo com essa tradição, mas que passa ao largo da valorização do ethos da coragem. O duelo de facas de “El camino de la costa” não se corporifica num ato redentor e no reconhecimento de uma linhagem honrosa. Ao contrário, o duelo saeriano encarna um ato inexplicável: o assassino não encontra nenhuma razão para a atitude irreversível e covarde, e continua a ser um homem só e prisioneiro. Para o marginal saeriano não há libertação, não há redenção, não há coragem ou lealdade, apenas a ausência de sentido.