• Nenhum resultado encontrado

O nascimento do ensaio e as crônicas de Conquista – o tradutor inépto de Montaigne

A relação entre a escrita do ensaio e a leitura das crônicas de Conquista que trabalharemos na obra de Saer, poderia ser vista no marco de uma genealogia que se confunde com a própria origem do ensaio como forma discursiva.

Na apresentação “Ao leitor” já tivemos oportunidade de analisar a forma como Montaigne sublinha uma subjetividade enlaçada ao nome de autor que assume o protagonismo da escrita de seus Ensaios. Nessa apresentação, diz Montaigne: “Quero que me vejam aqui em minha maneira simples, natural e habitual, sem apuro e artifício: pois é a mim que pinto. Nele meus defeitos serão lidos ao vivo, e minha maneira natural, tanto quanto o respeito público mo

permitiu”279. E prossegue: “Pois se eu tivesse estado entre aqueles povos que se diz viverem ainda sob a doce liberdade das primeiras leis da natureza, asseguro-te que de muito bom grado me teria pintado inteiro e nu”280. Nessa passagem, de um só golpe o ensaísta nos deixa ver a confluência de um duplo nascimento: anuncia o surgimento de um novo gênero de discurso e revela simultaneamente as marcas que a descoberta recente desse “país infinito”281 trazia ao pensamento ocidental. A evidência da alteridade radical idealizada nas populações do Novo Mundo parece projetar-se na investigação de um eu ansioso por despir-se das vestes pesadas da tradição.

A forte correlação entre o nascimento dos ensaios e o descobrimento do Novo Mundo pode ser estabelecida não apenas pelo interesse dos temas trazidos nas bagagens dos viajantes que retornavam da travessia atlântica, mas fundamentalmente pelo modo como a abertura de perspectiva propiciada pelas navegações incidiu na gênese do ensaio282. Mais do que a excitação causada pelas descobertas específicas ou pelas invenções do período o que se encontra é um sentimento crescente de descobrimento, uma ideia que influencia o pensamento e a expressão renascentista, segundo Michael Hall283.

Há outras passagens em que o tom de novidade utilizado por Montaigne para anunciar o aparecimento dos ensaios parece duplicar-se na fala sobre o descobrimento da América: “Nosso mundo acaba de descobrir um outro, não menos grande, maciço e musculoso do que ele, e no entanto tão novo e tão criança que ainda estão lhe ensinando seu abecê”284. Note-se que nos ensaios, tanto como nos diários de bordo e nos relatos de viagem aos quais Montaigne teve acesso, o que se anuncia como novo não é exatamente o “nunca antes visto”. Trata-se de um novo pensado como “retorno à perfeição da origem, à primavera do mundo, ou à ‘novação do mundo’, oposta à velhice outonal ou à decadência do velho mundo”285.

Talvez poucos textos sejam tão elouquentes dessa maneira de concepção do novo como o ensaio “Os canibais”, no qual o ensaísta busca dar visibilidade a esse outro excluído da

279 MONTAIGNE. Os ensaios. v.1, op.cit. p.4. 280 idem ibidem, p.4.

281 MONTAIGNE, op.cit, p.303.

282 WEINBERG, Liliana, op.cit, p.217. A autora mostra ainda como a imbricação dos diários e da literatura de

viagem da época não incide apenas de maneira exterior ao ensaio mas faz parte de sua própria textura. p.249.

283 HALL, Michael L. The emergence of the essay and the idea of Discovery. In: BUTRYM, Alexander J. (ed.).

Essays of the essay – redefining the genre. Georgia: University of Georgia Press, 1989, p.75.

284 idem ibidem, v.3, p.185.

285 CHAUÍ, Marilena. O mito fundador. In: Brasil – mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Perseu Abramo,

Modernidade286. Deste ensaio já tão comentado, gostaria de destacar o trecho em que Montaigne remete à lembrança do encontro com os três índios Tupinambás recebidos em Rouen por Carlos IX, em 1562. Diz o ensaísta: “Falei com um deles durante muito tempo; mas eu tinha um intérprete que me acompanhava tão mal e que por sua estupidez estava tão impedido de retomar meus pensamentos que praticamente não pude extrair disso prazer algum”287. Mais do que causa de irritação do ensaísta, no entanto, a ineficácia do tradutor é a expressão mais evidente da brecha inevitável entre os interlocutores de cada um dos dois mundos que se encontravam face a face. É sobre essa perda que se estende toda a escrita de “Os canibais”, ou, mais ainda, que se desenvolve boa parte da discursividade nascente sobre a América. A operação escriturária que se institui com a descoberta do Novo Mundo será a produtora de “verdades” sobre o outro – aquele cuja voz aparecerá nos textos sempre como vestígio impronunciável, resíduo incompreensível, “perda” 288.

A partir dessa cena, podemos ver, não em Montaigne, propriamente, o inaugurador dessa linhagem que reúne os ensaios aos textos da Conquista que desembocam na obra de Saer, e sim no tradutor anônimo, cujo único registro de sua existência é o descrédito com que foi marcado pelas palavras do ensaísta. É de sua incompetência, do balbucio em sua garganta que não se faz palavra, do obstáculo que sua inépcia interpõe à comunicação entre os dois mundos, que podemos ver o núcleo fundamental dos problemas que Saer investiga em sua releitura da Conquista no ensaio e na ficção.

A leitura das crônicas e a fertilidade do anacronismo

A presença do tema da Conquista na literatura de Saer aparece já entre as primeiras publicações do autor. No romance La vuelta completa, de 1966, lemos a larga reflexão do personagem Horacio Barco a respeito do tema:

286 Segundo a datação de Villey, “Os canibais” teria sido escrito por volta de 1578. Nessa época, segundo ele, havia

diversos relatos impressos de viagens sobre a costa brasileira. Mas ao que parece, porém, Montaigne teria baseado seu ensaio com base fundamentalmente em testemunhos orais. Em outros ensaios é evidente a referência à

Historia general de las Indias de Francisco López de Gómara. VILLEY. Nota ao ensaio “Os canibais”. Os ensaios. v.1, p.302-3.

287 MONTAIGNE. Os canibais. In: op.cit, v.I, p.320.

288 Segundo Certeau, a descoberta do Novo Mundo acaba por engendrar um novo funcionamento da palavra

escrita, que adquire uma pertinência social e epistemológica que não tinha antes. Uma das regras do sistema que se constitui então como “ocidental” e “moderno” será justamente essa preeminência da fala sobre o outro e pelo outro. CERTEAU, Michel de. Etno-grafia – a oralidade ou o espaço do outro: Léry. In: A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982, p.213-7.