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Vimos, até agora, por meio da representação inicial do viajante letrado, como o ponto de vista do ensaísta em El río sin orillas pode oscilar em dois sentidos: tanto entre um “olhar de dentro” e um “olhar de fora”, a partir do lugar intervalar do escritor latino-americano. A voz que assume o relato transita assim, entre a reserva crítica do intelectual e a afetividade do memorioso nativo, do ponto de vista da voz que assume o relato.

À projeção do viajante que aos poucos se deixa seduzir por seu lugar mítico de origem, sobrepõem-se outras figurações do ensaísta. Uma das marcas de nascimento de El río sin orillas é o fato de ele ter nascido de uma encomenda. Tal fato, narrado com destaque na apresentação, expõe duas ordens de problemas que o autor assinala com ironia: um deles é a soberba de um artista que levava em alta conta sua liberdade vendo-se então na situação de aceitar os desígnios

187 El río sin orillas, p.29-31. 188 El río sin orillas, p.39-40.

189 Trata-se de Robert Musil, aqui parafraseado por Nicolás Casullo. CASULLO. La in-quietud del alma. In:

de um editor. A questão foi resolvida depois de duas ou três semanas, ao cabo das quais, após a perda de algumas ilusões sobre o caráter absoluto de sua autonomia, aceita que o projeto lhe havia estimulado de tal modo que ele percebia uma coincidência entre liberdade e necessidade. O outro problema que a encomenda lhe invocou é a modéstia que o fazia sentir-se incapaz de abordar um gênero novo, cujas regras não lhe eram totalmente conhecidas e lhe eram impostas do exterior, isto é, não faziam parte das normas que adotara até então para nortear sua escritura. Em nenhum momento esse gênero novo é nomeado, o que não é uma questão menor, como vimos no primeiro capítulo. De todo modo, é por esse gesto, uma hesitação, que o ensaísta se deixa ver mais uma vez apresentando a escritura do próprio ensaio como um problema.

Mais interessante é que este hesitar põe em cena um ensaísta que se reconhecia até então em uma trajetória que se dera na escrita de ficção, sobretudo. É como narrador, portanto, ainda que sem recorrer a “nenhum fato voluntariamente fictício”, que ele assume o desafio:

La ausencia de ficción debe entonces entenderse en el sentido estricto de ficción voluntaria (...), y ella resume mi única probidad, y si bien se trata de un límite constructivo, no deja de tener su lado estimulante, ya que me obliga a intentar la elaboración de un texto narrativo en el que, faltando el elemento ficticio que a menudo preside su organización, estoy obligado a replantearme mi estrategia de narrador190.

Assumindo a enunciação de um escritor de ficções, ainda que lidando com um limite construtivo, ele sublinha a margem de liberdade que se resguarda para lidar com o gênero desconhecido. Isso tem desdobramentos na construção do texto. Ainda que em certa medida prevaleçam elementos de persuasão retórica, o ensaio será marcado fundamentalmente pela textura poético-narrativa que se reconhece na ficção de Saer.

Ao postular-se o lugar do escritor, o ensaísta sugere um tópico clássico na escritura ensaística, o que já assinalamos brevemente no capítulo anterior. Em muitos ensaios, o lugar de enunciação do ensaísta define-se por sua contraposição ao do especialista ou do tratadista, “lo que configura un sujeto de enunciación libre de condicionamentos, regulaciones disciplinarias, pertenencias académicas o marcos institucionales”191. Há uma série de marcas que colocam o discurso ensaístico no plano do aproximativo, reforçando o efeito de liberdade que cria em seu texto192.

190 SAER, El río sin orillas, p.17.

191 COLOMBI, Representaciones del ensayista, op.cit., p.12. 192 COLOMBI, op.cit, p.12.

Alberto Giordano precisa essa diferenciação a partir do lugar de leitura. Enquanto o especialista predetermina-se fins e arma-se de instrumentos e métodos específicos que lhe permitem alcançar seus objetivos, o leitor ensaísta, ao contrário, está sempre em uma relação íntima com a casualidade, relação que por sua prática de leitura e escritura não pretende ocultar, senão afirmar. O que ocorre então, quando o ensaio se depara com os saberes aos quais se atribui um alto valor explicativo, pergunta-se Giordano. “Si la fuerza del ensayo es la dominante, la consistencia de esos saberes se descompone. La lectura deja ver (produce) grietas en las que se anuncia el inminente derrumbe del edificio teórico”193.

Em El río sin orillas o confronto entre essas duas instâncias distintas de saberes – a do especialista e a do ensaísta – é narrada por meio de um relato que ficcionaliza o encontro do escritor com o amigo José Carlos Chiaramonte, reconhecido historiador argentino e diretor do Instituto Ravignani, da UBA. Foi a conversa com Chiaramonte e seus colaboradores, diz ele, que lhe muniram da “espinha dorsal” bibliográfica de suas pesquisas posteriores. A remissão a este encontro lhe permite agradecer à orientação do especialista, mas dá lugar a uma longa digressão sobre o impressionante temporal que atingiu Buenos Aires no dia dessa visita. Há um desvio de quase seis páginas de longos parágrafos para descrever a eletricidade, o estrondo, o vento a chuva e a escuridão na qual se vira imerso o escritor do interior do táxi que o levaria ao Instituto. Entre as trevas inusitadas, que duraram uns dez minutos, a ironia sinistra de um personagem de Shakespeare lhe assoma à mente: “Mundo, ahora sólo quedan dos mandíbulas para triturarte”. No Instituto, porém, os historiadores, inabaláveis em meio às inumeráveis goteiras, “enfrascados en sus archivos y en sus computadoras (...) no parecían haber percibido otra cosa que la lluvia torrecial”194. O ensaísta reconhece o aporte do especialista e dos livros, mas se recorta um lugar específico de escrita, um lugar sujeito às interferências do mundo, sujeito a uma distração essencial e à casualidade com que mescla seu tema ao percurso singular de suas leituras. Mais do que isso, porém, o longo desvio da tempestade, bem como a cena do avião, nos permitem enxergar os procedimentos do narrador mobilizados pela representação do ensaísta como escritor de ficção.

A subjetividade desse ensaísta-narrador se constitui ainda na medida em que escolhe um interlocutor, e isso não é para ele um problema menor. Após aceito o projeto, a encomenda, o escritor mostra-se em sua mesa de trabalho a lidar com a dificuldade de pensar um livro sobre o

193 GIORDANO. Del ensayo. In: Modos del ensayo: de Borges a Piglia. Rosario: Beatriz Viterbo, 2005, p.231-2. 194 Idem ibidem, p.33

Rio da Prata que fora imaginado originalmente para um leitor europeu mas que pode vir a ser examinado por leitores argentinos com critérios mais exigentes. Ainda que ser argentino não seja exatamente uma especialidade, diz ele, essa é uma primeira dificuldade a resolver.

aparte de su prescindencia de todo elemento de ficción voluntaria, me gustaría que este libro no se distinga en nada de los que ya he escrito, de narrativa o de poesía, sobre todo porque, al igual que ellos, no se dirige a ningún lector en particular, ni especialista ni lego, ni argentino ni europeo.195

Parafraseando o próprio Saer, o ensaísta elege como seu público um leitor de literatura, um leitor sem atributos.

Busquei me aproximar da representação do ensaísta de El río sin orillas na qual se encontram mescladas e oscilando diversas projeções como a do viajante, a do nativo, a do escritor de ficção. É desse lugar intermediário que hesita continuamente entre a afirmação de uma distância crítica ou de uma aproximação afetiva que desenvolve seu tema. Gostaria, no entanto, de chamar a atenção para uma passagem da apresentação do ensaio que tenderia talvez a suspender momentaneamente tais projeções, ou lançá-las em outro nível. Trata-se de uma trecho talvez discreto se comparado com o momento da irrupção da lembrança da infância, mas que ainda assim nos faz recordar daqueles mergulhos profundos no presente que fugazmente acometem os personagens de seus romances e contos. Diz o ensaísta: “Así que el lector debe imaginarme, (…) sentado en la penumbra del avión, insomne, a las dos o tres de la mañana, mientras el resto del pasaje duerme, flotando a diez mil quinientos metros de altura, entre el doble abismo de la noche y del océano”196. A atmosfera comercial e ascéptica do vôo, que dera início ao relato, cede definitivamente sob a força dessa imagem de um corpo solitário, equilibrando-se precariamente entre a imensidão de ar e água, pura linguagem, enquanto ensaia em uma caderneta as primeiras descobertas do novo livro por escrever. Talvez seja finalmente daí, da margem desse precipício insondável e olhando para ele, o mesmo lugar de onde escreve suas ficções, que Saer se proponha a fazer a sua história do Rio da Prata. É aqui, me parece, que o texto mostra sua verdadeira ambição e sugere, apenas como gesto, uma ética, um sujeito que aceita sondar a escuridão e que “se põe em jogo” na borda calada do texto.

195 SAER, El río sin orillas, p.20. 196 idem ibidem, p.21