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Se, a princípio, El río sin orillas pode ser lido como um relato híbrido o qual, tomando como foco a questão da transgressão dos gêneros, Saer aproxima intencionalmente do ensaio inaugural de Sarmiento, seria pertinente perguntar a partir de que elementos se define o hibridismo de Facundo.

Segundo Starobinski, “muchas obras portan en sí mismas el relato, el indicio o la justificación de su llegada al mundo”92. Tornar claro o que justificou o aparecimento desses textos e as circunstâncias em que apareceram permitiria evidenciar, por outro lado, o trajeto que os atravessa. Ainda segundo Starobinski, esse trajeto poderia ser captado pelas perguntas: o que fala o texto? Para quem? De que distância, ou, qual o lugar de enunciação? Com quais obstáculos? Por que meios?93

Facundo, como todos sabem, publicado em 1845, tem a marca da geração de 1837 em sua aguerrida oposição ao rosismo, no momento mesmo em que se disputavam as linhas- mestras do projeto de construção do Estado-nação, ou, mais ainda, na conjuntura mundial de fortalecimento da própria idéia de Estado-nação como avatar de novas identidades políticas e do desenvolvimento capitalista94. Escrito a partir da urgência dessa disputa por um projeto de

90 Em entrevista a Ana Inés Larre Borges. op.cit.

91 GIORDANO, op.cit, p.230. Sobre a questão da relação com o cânon literário também Kermode traça alguns

problemas relevantes para pensar a relação com a tradição e o diálogo dos autores argentinos contemporâneos com Sarmiento. Afirma Kermode que a vinculação entre cânon e autoridade está profundamente enraizada em nós, e isso não é por acaso, dada a seletividade restritiva que o primeiro impõe à memória cultural e a cumplicidade que estabelece com o poder. No entanto, ainda que marcada pelo privilégio e pela injustiça, as obras canónicas seguem sendo uma herança valiosa, ainda que sempre sujeita a revisões, que nos permite manter alguns laços fortes com o passado. KERMODE, Frank. Historia y valor – ensayos sobre literatura y sociedad. Barcelona: Península, 1990, p.152, 165-6.

92 STAROBINSKI, Jean. El ojo viviente II - La relación crítica. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, s.d., p.35. 93 Idem ibidem, p.34

94 HOBSBAWM, Nações e nacionalismo desde 1780. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. Especificamente para o caso

Estado, com a tonalidade dramática emprestada pelo exílio do autor, o texto, contudo, não é apreensível nas categorias formais de um manifesto político, de um tratado histórico-sociológico ou, por outro lado, de literatura. A questão do caráter inclassificável do Facundo foi desenvolvida em uma extensa bibliografia, a começar pelo próprio autor que, ao dar orientações para uma quarta edição do livro, o classificava como “'una especie de poema, panfleto e historia'”95.

Muitos dos críticos que procuraram avaliar a mistura dos gêneros literários no Facundo, trataram a questão a partir da idéia de originalidade, combinada às circunstâncias angustiantes do exilado. Não seria necessário descartar a noção de originalidade, mas é possível torná-la mais complexa, avaliando a contribuição singular de Sarmiento no conjunto de sua geração, como propôs Noe Jitrik96.

Haveria que se considerar ainda a agitação dos escritores do romantismo que se propunham a romper com os parâmetros codificados e puristas do classicismo. Quase vinte anos antes da publicação de Facundo, Victor Hugo atacava a prisão dos rótulos literários:

Ouve-se todos os dias, a propósito de produções literárias, falar da dignidade deste ou daquele gênero, das conveniências daquele outro, dos limites de um, das latitudes de outro; a tragédia proíbe o que o romance permite, a canção tolera o que a ode veda etc. O autor deste livro tem a infelicidade de não compreender nada disso tudo (...)97.

Por um lado está aqui presente a ideia de que a força entrópica da expressão e a riqueza da vida interior são demasiado intensas para entrar em apertados moldes pre-estabelecidos de escrita. Dessa nova concepção do fazer literário romântico teria nascido por exemplo o poema em prosa, no início do século XIX, que tão importantes consequências teve para a história dos gêneros literários98.

Por outro lado, o Romantismo marca a entrada em vigor de uma nova concepção de escritor como interventor nos debates públicos, afinal, a construção mesma das identidades no contexto pós-revoluções burguesas era amparada em imagens fornecidas pela literatura, ou, mais textos dos intelectuais argentinos decimonônicos que, como Sarmiento, procuraram por meio da pena disputar a supremacia das primeiras imagens de um Estado e de uma nação argentina. La invención de la Argentina. Buenos Aires: Emecé, 2002.

95 Apud ALTAMIRANO, C. Introducción. p.19

96 JITRIK. Prólogo. In: SARMIENTO. Facundo – civilización y barbarie. Caracas: Ayacucho, 1985. Reunindo

contextualização histórica e filosófica, o autor se apóia em conceitos da lingüística e, em menor grau, da psicanálise para explorar o hibridismo de Facundo.

97 STALLONI, Y. Os gêneros literários. Rio de Janeiro: Difel, 2001, p.177.

ainda, na configuração do próprio idioma que a literatura contribuía a tornar nacional. Operava-se com o pressuposto da eficácia excepcional das letras para a edificação do homem moderno e cidadão. Sob o mesmo horizonte ideológico, ainda que sob as especifidades do contexto posterior às lutas de independência, na Argentina o projeto político dos liberais da geração de 1837 abarcava uma determinada concepção de literatura que subordinava a palavra a uma ideia de ação99. A gauchesca, o romance histórico, e a historiografia, a biografia ou a autobiografia, os ensaios sociológicos e os artigos jornalísticos se configuram como discursos híbridos que explicitam projetos e focam em debates essenciais para a futura nação: as formas de governo; o desenvolvimento econômico, a educação; as leis etc100. Sob este ponto de vista, as condições da produção desses escritores do século XIX argentino, conduziam à escritura de textos híbridos, ou mesclados, nos quais se entrelaçam a elaboração da forma à uma finalidade política101. Nesse sentido, vale lembrar que a valorização estética do hibridismo em Facundo nas leituras recentes do texto, inspiradas na linguística, na psicanálise e na literatura contemporâneas, diz mais de uma atitude contemporânea em relação ao hibridismo do que da época de Sarmiento.

Como afirma Jitrik, para além da convivência entre distintos gêneros literários, há um projeto ideológico específico que sustenta o ideal estético buscado por Sarmiento: lançar-se como modelo de uma literatura possível, o norte da produção escrita da nação. A esse primeiro nível de mescla entre letra e ação política se soprepõem os cruzamentos entre historiografia e literatura e entre os distintos materiais dos quais se nutre o autor102. O entrecruzamento de

99 VIÑAS, D. Literatura argentina y realidad política de Sarmiento a Cortázar. Buenos Aires: Ediciones Siglo Veinte,

1974, p.14; SHUMWAY, N. Op.cit.; JITRIK, Noé. Historia e imaginación literaria – las posibilidades de un género. Buenos Aires: Biblos, 1995, p. 40-5. Sobre a condição social específicas dos escritores românticos na América Latina em comparação com os românticos europeus ver de SARLO e ALTAMIRANO o ensaio sobre Echeverría em Ensayos argentino – de Sarmiento a la vanguardia. Buenos Aires: Ariel, 1997, p. 17-81.

100 RODRÍGUEZ PÉRSICO, A. Un huracán llamado progreso. s.l.: OEA, 1993, p.6. Ver também LAERA, Alejandra.

Géneros, tradiciones e ideologías literarias en la organización nacional. In: JITRIK, Noé (dir.). Historia crítica de

la literatura argentina, v.2. SCHWARTZMAN, Julio (ed.). La lucha de los lenguajes, Buenos Aires: Emecé, 2003.

101 Apesar desse horizonte de época, Julio Ramos sublinha o estranhamento provocado pelo texto a alguns

contemporâneos de Sarmiento. Nos comentários de Valentín Alsina encaminhados em carta ao autor de

Facundo, ele assinala os deslizes literários como um defeito da obra: “le diré que en su libro, que tantas y tan admirables cosas tiene, me parece entrever un defecto general – el de la exageración: creo que tiene mucha poesía, si no en las ideas, al menos en los modos de locución. Ud. no se propone ecribir un romance, ni una epopeya, sino una verdadera historia social (...).” Na resposta de Sarmiento a Alsina, o autor reitera que não retocaria o livro. Julio Ramos assinala que a “informalidade” a “imediatez” e a indisciplina assumida por Sarmiento na escrita do livro eram a condição de possibilidade do acercamento do letrado à tradição oral “bárbara” incorporada ao texto: a mescla vem também desse grande “depósito de vozes” que é Facundo. RAMOS, Julio. Saber del otro: escritura y oralidad en el Facundo de D.F. Sarmiento. In: Desencuentros de la modernidad en

América Latina. México: FCE, 1989, p.28-9.

diferentes níveis de “mescla” em Facundo é tão notável que pode ser considerado um pólo mobilizador do texto, uma força presente na escrita que explica como o texto vai-se desencadeando enquanto um ritmo103.

A origem do caráter mesclado do texto viria, assim, tanto da pluralidade (de registros, de planos, de elementos, de exigências etc) quanto de um cruzamento de redes (a rede pessoal - o conjunto de modelos introjetados pelo autor; a rede cultural – formada pelas exigências superegóicas; o desejo e as responsabilidades do poder) que exerceram um efeito gerador extremamente produtivo em Sarmiento104. Para Jitrik, por fim, a persistência da “mescla” em Sarmiento, seja qual for sua origem, é justamente o que permite o surgimento do que se pode considerar como literário no Facundo105. As idéias que sustentam o Facundo, impregnadas do ranço sociologizante e historicista do autor, nos dizem muito pouco. É na combinação singular e múltipla de ritmos, de imagens e de problemas que levanta, que o texto continua vivo, motriz de outros textos.

Adriana Rodríguez Pérsico, de outra perspectiva, mostrou como o carácter literário do texto de Sarmiento encontra-se fundamentalmente nas cenas de ruptura, nas quais a ficção se instala superpondo-se e deslocando as idéias que defende o autor, traduzindo-se em episódios ou situações onde os personagens atuam um conflito: “lejos de la esfera abstracta de las ideas, la lucha se hace visible en un cuerpo”. A temporalidade e o movimento inerentes à narração se introduzem nessas cenas, que configuram o maior legado de Sarmiento aos escritores que o sucederam106.

Para Saer, o que faz de Sarmiento um escritor, para além do político, do ideólogo e do polemista, é a sua capacidade de deixar-se maravilhar por tudo o que contradiz a firmeza monomaníaca de seu pensamento107. Dessa capacidade, a evidência mais eloqüente é provavelmente a conhecida ambigüidade com que o autor é seduzido pela figura do anti-herói que busca desbaratar em nome da civilização. O hibridismo dos textos de Sarmiento seria assim a forma pela qual se expressa essa hospitalidade ao antagônico, da qual nasce sua literatura.

Saer valoriza em Sarmiento essa fluidez de uma escrita que se subleva contra os marcos estreitos impostos pelos gêneros literários e pelas próprias ideias do autor do díptico civilização- barbárie. Retomo porém o fato de que pelos parâmetros de sua época, talvez o Facundo seja

103 JITRIK, op.cit, p. XXV 104 JITRIK, op.cit, p. XXVI. 105 JITRIK, op.cit. p. XXIV.

106 RODRÍGUEZ PÉRSICO, op.cit, p.6.

menos inclassificável do que fazem ver as leituras contemporâneas ou, pelo menos, o significado da mescla não significa a mesma coisa nos distintos contextos. Mas interessa-nos perceber o gesto “inclassificador” de Saer e o parentesco que daí estabelece com sua própria obra. Essa valorização me anima a esboçar um diálogo que se pode estabelecer a partir das metáforas matrizes dos ensaios de Saer e Sarmiento, de modo a evidenciar-se um nível mais de releitura crítica da tradição, tendo-se em conta a busca de uma escritura híbrida em Saer.