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A Consensualidade como novo modelo de Administração Pública

Como ponto de partida para a breve reflexão que ora se pretende realizar, importa colocar em destaque o pensamento de Norberto Bobbio, para quem: “o Estado de hoje está muito mais propenso a exercer uma função de mediador e de garante, mais do que a de detentor do poder de império”32.

Com efeito, a Administração pública fundada no poder de império cujas bases remontam ao modelo liberal de Estado, manifestada por meio de atos administrativos atrelados à noção de autoridade e de desigualdade entre o Poder Público e os indivíduos, abre espaço para a nova perspectiva de um Estado mediador ou dialógico, que desenvolve e fomenta os processos de comunicação com a sociedade, bem como abre espaços para a consensualidade entre os diversos setores da sociedade, modificando-se os métodos e instrumentos até então empregados.

Neste contexto, traça-se um novo caminho para a Administração Pública, no qual modelos de gestão baseados no acordo, negociação, coordenação, cooperação, colaboração, conciliação e transação passam a ser utilizados como soluções preferenciais – e não unicamente alternativas – à de métodos estatais que veiculem unilateral e impositivamente determinações aos seus súditos, afastando- se, paulatinamente, dos campos habitualmente ocupados pela imperatividade.33

32 BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p.

26, apud OLIVEIRA, Gustavo Justino de e SCHWANKA, Cristiane. A administração consensual

como a nova face da administração pública no séc XXI: fundamentos dogmáticos, formas de expressão e instrumentos de ação. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São

Paulo. v. 104. jan./dez. 2009. p. 303-322. Disponível em <http://

http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/viewFile/67859/70467>. Acesso em: 15 set. 2014.

33 Odete Medauar faz uma síntese dos principais fatores que provocaram a abertura da

Administração pública para as variações consensuais como forma de exercício de suas atividades: “Um conjunto de fatores propiciou esse modo de atuar, dentre os quais: a afirmação pluralista, a heterogeneidade de interesses detectados numa sociedade complexa; a maior proximidade entre Estado e sociedade, portanto, entre Administração e sociedade. Aponta-se o desenvolvimento, ao lado dos mecanismos democráticos clássicos, de “formas mais autênticas de direção jurídica autônoma das condutas”, que abrangem, de um lado, a conduta do Poder Público no sentido de debater e negociar periodicamente com interessados as medidas ou reformas que pretende adotar, e de outro, o interesse dos indivíduos, isolados ou em grupos, na tomada de decisões da autoridade administrativa, seja sob a forma de atuação em conselhos, comissões, grupos de trabalho no interior

Odete Medauar (2003, p. 211) destaca a importância que o consensualismo vem assumindo no âmbito da Administração contemporânea, principalmente, como forma de dirimir os inevitáveis conflitos de interesses entre os particulares e a Administração Pública:

A atividade de consenso-negociação entre Poder Público e particulares, mesmo informal, passa a assumir papel importante no processo de identificação de interesses públicos e privados, tutelados pela Administração. Esta não mais detém exclusividade no estabelecimento do interesse público; a discricionariedade se reduz, atenua-se a prática de imposição unilateral e autoritária de decisões. A Administração volta-se para a coletividade, passando a conhecer melhor os problemas e aspirações da sociedade. A Administração passa a ter atividade de mediação para dirimir e compor conflitos de interesses entre várias partes ou entre estas e a Administração. Daí decorre um novo modo de agir, não mais centrado sobre o ato como instrumento exclusivo de definição e atendimento do interesse público, mas como atividade aberta à colaboração dos indivíduos. Passa a ter relevo o momento do consenso e da participação.34

Neste cenário, da mesma maneira como a consensualidade vem acompanhando o quadro evolutivo do Estado e a variação do grau de participação dos particulares nas tarefas públicas no âmbito do Direito Administrativo, os terrenos ocupados pelas relações jurídicas tributárias também passam a sofrer reflexos dessa natureza.

Traçando-se uma perspectiva histórica do Direito Tributário e sua relação com o Estado, observam-se alterações no envolvimento estabelecido entre os sujeitos integrantes da relação jurídica tributária, especialmente no que refere ao exercício do denominado poder de tributar:

No denominado Estado Patrimonial, de meados do século XII até metade do século XVIII, era possível a identificação de algumas formas de imposição sobre a riqueza dos súditos, sempre com a justificativa das dos órgãos públicos, seja sob a forma de múltiplos acordos celebrados. Associa-se o florescimento de módulos contratuais também à crise da lei formal como ordenadora de interesses, em virtude de que esta passa a enunciar os objetivos da ação administrativa e os interesses protegidos. E, ainda: ao processo de deregulation; à emersão de interesses metaindividuais; à exigência de racionalidade, modernização e simplificação da atividade administrativa, assim como de maior eficiência e produtividade, alcançados de modo mais fácil quando há consenso sobre o teor das decisões.” (MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 210)

34 MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução. 2. ed. São Paulo: Revista dos

necessidades do príncipe. Essas exações, porém, não se confundiam com o exercício do mencionado poder de tributar. Posteriormente, no período relacionado ao denominado Estado Polícia, o patrimônio público deixou de ser confundido com a riqueza do príncipe, passando a pertencer ao então denominado Fisco, com personalidade própria. Esta, por sua vez, estava submetida, como qualquer outro particular, à Justiça e às normas jurídicas, é dizer, ao Direito Civil. A relação jurídica tributária caracterizava-se, assim, como uma relação de poder, dividido em poder de polícia e poder financeiro. O primeiro visava manter a boa ordem social. Já o poder financeiro era responsável por prover o Estado com os recursos que lhe eram necessários. [...]. Com efeito, após a ocorrência das revoluções liberais caracteriza-se a presença do Estado Fiscal, mantido por meio de receitas derivadas do patrimônio dos particulares. Num primeiro momento assume a feição de Estado Liberal Fiscal, especificamente entre os séculos XVIII e XIX. Logo após esse período, com a evolução do quadro estatal, qualifica-se o Estado Social Fiscal, marcado pelo advento do Código Tributário Alemão, em 23 de dezembro de 1919. [...]. Mencionado Estado Social Fiscal tinha como característica a confusão entre poder de tributar e outras formas de ação sobre o domínio social e a economia. Essa característica resultou em seu colapso a partir do final da década de 1970, com escassez de receitas públicas necessárias ao financiamento dos seus gastos públicos, notadamente em face da prática abusiva de concessão de benefícios com dinheiro público, aliada ao insuportável crescimento da dívida pública, de políticas orçamentárias deficitárias e recessão econômica. Com a queda do muro de Berlim no plano internacional, e o advento da Constituição Federal de 1988 no âmbito interno, passa a vivenciar-se o Estado Democrático Fiscal [...]. Caracterizado por um novo equilíbrio entre seus poderes, mediante flexibilização da legalidade estrita e

com a judicialização da política tributária. 35

Neste sentido, Heleno Taveira Torres (2011, p. 305) reconhece uma tendência na Administração Pública fiscal de rompimento com as noções até então vigentes, ao asseverar que o Estado Democrático Fiscal “tem como virtude o rompimento com a ideia secular de que o tributo seria expressão do jus imperii do Estado e que o seu conteúdo equivaleria unicamente ao exercício do ‘poder de tributar’, enquanto poder soberano.”36

Dessa forma, visualiza-se, ainda que modestamente, uma aproximação da noção de consensualidade à relação jurídica fiscal, a partir de abertura gradual de canais de diálogo com a sociedade, privilegiando o emprego de métodos,

35 GRILLO, Fabio Artigas. Transação e Justiça Tributária. 2012. 321 f. Tese (Doutorado) - Curso

de Direito, Departamento de Ciência Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2012, p. 163-166.

36 TORRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Tributário e Segurança Jurídica: metódica

da segurança jurídica do sistema constitucional tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais,

técnicas e soluções negociais, como muito bem explica Eduardo Paz Ferreira (2010, p. 19), para que a relação jurídica tributária contemporânea cuida-se de “um processo em que o Estado cada vez menos recorre a poderes de autoridade e, cada vez, mais procura conversar com a sociedade, e em especial, com os agentes econômicos, com os seus ‘súbditos’ para usar a antiga expressão, que deixam de ser súbditos para passar a ser verdadeiramente parceiros num quadro de concertação social”.37

Nestes termos, cabe novamente fazer referência à reflexão de Fábio Artigas Grillo (2012, p. 168) sobre o novo modelo de organização administrativa tributária:

[...] a configuração do Estado Democrático Fiscal enquanto Estado Cooperativo, a adoção de métodos consensuais de solução de conflitos de natureza tributária demonstra a existência de um processo de modernização organizativa, do modo de atuação e, também, das formas de realização da função administrativa; introduzindo, assim, certa dose de flexibilidade, com limites na lei, que possibilite à Administração Pública, em especial à Administração Tributária, a consecução eficiente de suas finalidades primordiais. Afastam-se, assim, os pressupostos autoritários de outrora no que diz respeito à relação jurídica tributária, numa perspectiva de reequilíbrio de forças nos vínculos existentes entre Estado e

contribuintes. (GRILLO, p. 168).38

Dentre estes métodos consensuais de resolução de conflitos de natureza tributária, encontra-se a previsão legal da transação, a ser melhor abordada no tópico seguinte.

Insta salientar que, para a consecução desse quadro de aproximação do Estado com a sociedade, necessário se faz a criação de um fator confiança entre o Poder Público (sujeito ativo) e seus órgãos e os contribuintes (sujeito passivo), a ser efetivado a partir da observância dos direitos e garantias fundamentais dos contribuintes.

Dessa forma, os princípios da legalidade, moralidade, eficiência, transparência, segurança jurídica e os da confiança, boa-fé, dentre outros, devem ser estritamente contemplados e preservados no então Estado Democrático Fiscal.

37 FERREIRA, Eduardo Paz. A possibilidade de arbitragem tributária. In: I Conferência AIBAT -

IDEFF: a arbitragem em direito tributário. Colóquios IDEFF, n. 2. Lisboa: Almedina, 2010, p. 19 apud GRILLO, op. cit., p. 167.

Ademais, por esse novo modelo conferir maior liberdade e autonomia aos entes da Administração, deve-se estabelecer critérios mais rígidos nos controles administrativos, financeiros e de gestão pessoal, como contraponto à nova forma de atuação administrativa.