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CAPÍTULO 2. RESGASTE HISTÓRICO DO CAMPO PERICIAL NO BRASIL

2.3 A consolidação do campo pericial pela Medicina Legal

No ano 1891 tem-se a introdução do ensino da disciplina de Medicina Legal nos cursos de Direito por exemplo, proposta esta inclusive relatada por Rui Barbosa e aprovada na Câmara dos Deputados após o governo brasileiro ter determinado a criação da cátedra de Medicina Legal nas Faculdades de Direito do país. Para tanto, outras escolas de Medicina Legal no Brasil podem ser citadas ainda como precursoras no exercício do ensino da Medicina Legal na formação dos primeiros peritos, tais como a da Faculdade de Medicina de Porto Alegre, do professor Annes Dias; a de Curitiba, com Ernani Simas Alves e; a de Belo Horizonte, com Oscar Negrão de Lima.

A atenção dada à Medicina Legal dentro das Faculdades de Medicina desse período não é à toa. A partir da então chamada "era bacteriológica" em que temos um deslocamento intencionalmente ideológico do eixo social da medicina (agentes etiológicos de doença) para o eixo das causas específicas (agentes químicos, físicos e biológicos), a Medicina Legal surge como subciência médica dedicada ao estudo dos nexos causais entre determinado agravo à saúde e a ocupação exercida pelo indivíduo, aliada, portanto, aos pressupostos da Medicina do Seguro segundo Mendes e Waissmann (2013, p. 19) que busca a reparação pecuniária do "infortúnio" do trabalho.

Na transição do século XIX para o século XX, em plena fase de desenvolvimento e consolidação dita nacionalista da Medicina Legal, tivemos como protagonista a figura do legista Raymundo Nina Rodrigues, professor de Medicina Legal da Faculdade de Medicina da Bahia (1862-1906)35 que entendia que a Medicina Legal é o foro de ações

típicas em Segurança Pública, mas também o espaço de cuja fonte deviam beber os legisladores. Inclusive defendia que fossem realizados concursos públicos a fim de se nomear peritos oficiais, com a finalidade de que a justiça estivesse mais bem servida e imune aos erros de avaliação e interpretação comuns à atividade pericial de seu tempo. Este um ponto nevrálgico que pretendemos discutir adiante neste trabalho.

Em 1900 é criado o serviço de identificação antropométrica (identificação a partir das qualidades físicas particulares de um indivíduo) e a assessoria médica da polícia é transmutada em Gabinete Médico-Legal. Em antagonia a este avanço, nos cursos de Medicina Legal do país avaliações práticas da disciplina em análise deixam de ser obrigatórias. Dois anos depois, Júlio Afrânio Peixoto, considerado como "o pioneiro da Medicina do Trabalho no Brasil por Ribeiro (1940) e Estrela (1977), propõe uma reforma no Gabinete Médico-Legal, inspirado em suas observações na Alemanha, afirmando que o conjunto das “monstruosidades alcunhadas de termos de autópsias, autos de corpo de delito confusos, desordenados, incoerentes, dando um triste atestado de incompetência profissional e prejudicando os interesses da justiça” (apud FRANÇA, 2008, p. 23) é característica inerente à prática médico-legal do período.

Influenciado por esta afirmação de Afrânio Peixoto, o governo federal edita o Decreto nº 4.864, de 15 de junho de 190336 que discorre detalhadamente sobre as normas

de procedimento das perícias médicas. No entanto, as determinações prescritas no Decreto permaneciam em desuso e médicos não especializados eram convocados em juízo para apresentar laudos. Ante os protestos da Academia Nacional de Medicina e do Instituto dos Advogados do Brasil, o Decreto nº 6.440, de 30 de março de 190737

35 Também na Bahia, um decreto datado de 24 de abril de 1896, cria o Serviço Médico Legal, no âmbito da

Secretaria de Polícia e Segurança Pública, composto de dois médicos, que se incumbiam dos corpos de delito, das autópsias, dos exames toxicológicos, das verificações de óbito e de outros exames ou diligências médico-legais afetos à justiça.

36 REPUBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRAZIL. Decreto nº 4.864, de 15 de junho de 1903. Manda

observar o regulamento para o serviço médico-legal do Distrito Federal. Disponível em < http://www2.camara.gov.br/legin/fed/decret/1900-1909/decreto-4864-15-junho-1903-508952-publicacao- 1-pe.html>. Acesso em 18 de nov. de 2015.

37 Ibidem. Decreto nº 6.440, de 30 de março de 1907. Dá novo regulamento ao serviço policial do Distrito

Federal. Disponível em < http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1900-1909/decreto-6440-30-marco- 1907-504445-norma-pe.html>. Acesso em 18 de nov. de 2015.

transforma o aludido Gabinete em Serviço Médico-Legal, sendo nomeado Afrânio Peixoto como seu primeiro diretor.

No campo do desenvolvimento da profissionalização da Medicina-Legal, têm-se em 1915 com a Lei Maximiliano a legitimação para que fossem procedidas aulas práticas nas Faculdades de Medicina sendo reconhecida a validade jurídica dos laudos então elaborados. Pereira Neto (2001, p. 37), ao tratar do Congresso Nacional dos Práticos, um congresso da comunidade médica ocorrido em 1922, observou que este não se propunha a aprofundar conhecimentos científicos através do debate teórico de casos clínicos, mas sim, organizar as reações dos médicos às novas condições do fazer profissional que o século XX imputou à prática médica na guinada do eixo social para o eixo das causas específicas. Quais sejam estas: (1) a maior especialização, dividindo o corpo do paciente concebido antes como uno e; (2) a intermediação de instituições públicas ou filantrópicas na relação médico-paciente antes individualizada, mudança decorrente do desenvolvimento de tecnologias para o diagnóstico que elevaram os custos da produção dos serviços.

O contexto de preparação do referido congresso foi marcado também por outras características que colocaram a problemática profissional no centro das atenções dos médicos. O aumento do número de faculdades de medicina elevou o total de praticantes habilitados, ampliando a concorrência entre eles. Isto aguçou a necessidade de se regulamentar condutas através da ética profissional e de se controlar com mais rigor ainda o mercado de trabalho, definindo as distintas atribuições das ocupações no campo da saúde e impedindo o exercício dos ditos "não habilitados". As preocupações com o profissionalismo sob uma ordem estatal intervencionista, tanto no âmbito do ensino superior quanto da saúde pública deu relevância ao debate das relações entre os médicos e o Estado como tema do evento.

Os estudos de Pereira Neto (2001) vão ao encontro às analises das profissões em geral numa perspectiva sociológica que Diniz (2001, p. 87) desenvolve, construindo uma sequencia de eventos associados ao desenvolvimento das profissões no Brasil, dentre elas a de prática médica:

a) Criam-se, em primeiro lugar, escolas profissionais;

b) Em seguida, surgem associações profissionais que procuram garantir para seus membros, através da mobilização do apoio do Estado, vantagens e privilégios ocupacionais com base nas credenciais educacionais;

c) O Estado cria para os profissionais ‘reservas de mercado’ na burocracia pública, isto é, posições e cargos reservados aos diplomados pelas escolas profissionais;

d) As associações mobilizavam-se para ampliar a ‘reserva’ e, com o apoio do Estado, excluir do mercado de trabalho e de serviços os não-qualificados; e) O Estado regulamenta as profissões, criando monopólio;

f) Conquistado o monopólio da prestação de serviços, as profissões tentam criar ‘escassez’ pela restrição do acesso às credenciais acadêmicas, isto é, pelo controle da ‘produção de produtores’.

Com base nos autores supracitados, podemos definir, portanto o fazer profissional médico como a combinação de três aspectos: (1) o domínio de um certo conhecimento; (2) o monopólio do mercado e; (3) a formalização de normas de conduta. Para Pereira Neto (2001, p. 40) o que o Congresso Nacional dos Práticos de 1922 especifica para a consolidação do campo médico no Brasil é: (1) o conhecimento (justamente os defeitos e os aperfeiçoamentos do ensino nas faculdades); (2) o mercado de trabalho (a assistência médico-hospitalar e como esta deve ser instalada e executada) e; (3) a auto regulação (as questões de ética ligadas à prática médica).

Já Freidson (1986) postula que o mundo do trabalho médico se organizaria sob três princípios: (1) o do mercado, baseado na ideologia do consumo e da escolha dos consumidores (no caso dos peritos médicos, capital e trabalho visam o consumo do produto "saúde"); (2) o burocrático, baseado na ideologia gerencial (o poder de controle do processo saúde-doença pautado no modelo hegemônico por parte do perito) e; (3) o ocupacional, baseado na ideologia do profissionalismo cujo aspecto central é servir de forma independente (a falsa ideia de que o perito é um agente neutro apenas mediador do conflito capital x trabalho). O referido autor pensa que o que determina a divisão social do trabalho em nossa sociedade, é o conhecimento formal, ou seja, aquela categoria de conhecimentos altamente especializados que é restrita a um grupo de especialistas fechado.

Para nós, tal conhecimento formal está intimamente presente na lógica da racionalização instrumentalizada. A ação racional, que organiza tanto o mundo material quanto o humano, expressa-se, obviamente, na tecnologia, no Direito, na Saúde, no Estado sempre em relação dialética com a Economia, bem como nos demais âmbitos da superestrutura.

Relevante se faz mencionar inclusive que, a própria Medicina Legal enquanto subciência médica nada mais é que a aplicação de um saber tecnocientífico específico à perquirição de fatos a serem submetidos à apreciação jurídica. Na mesma linha de

pensamento, França (2008, p. 17) afirma que a Medicina Legal: "(...) não chega a ser uma especialidade médica, pois aplica o conhecimento dos diversos ramos da Medicina às solicitações do Direito”, e ainda complementa o autor que esta ramificação da Medicina é uma tecnociência que se constitui “(...) da soma de todas as especialidades médicas acrescidas de fragmentos de outras ciências acessórias, destacando-se entre elas a ciência do Direito”. Assim, observa-se que não somente conceituar a categoria Medicina Legal não é uma tarefa simples, como também não há consenso acerca de tal conceito. Contudo, muitas são as definições, mas todas desvelam que a Medicina Legal é um campo científico que agregaria conhecimentos das ciências exatas emprestando esse "emaranhado cognitivo" à justiça.

Por sua vez, Cardoso (2009, p.76) apresenta uma definição para a profissão médico-legal como sendo “(...) a ciência médica aplicada ao Direito, tratando-se, portanto, do emprego de técnicas e procedimentos científicos médicos e afins para elucidação de casos do interesse da justiça nesta área”.

Em consonância, Benfica e Vaz (2003, p.11) reforçam que a Medicina Legal se caracteriza por ser um conjunto de conhecimentos médicos e paramédicos que, no âmbito do Direito, concorrem para a elaboração, interpretação e execução das leis existentes e ainda permite, por meio da pesquisa científica, o seu aperfeiçoamento. É a medicina a serviço das ciências jurídicas e sociais.

Todavia, Rovinski (2003, p.13) assinala que ao médico legista cabe um viés diferente da medicina tradicional: enquanto nesta o médico atua no sentido de assegurar a saúde à sociedade e ao indivíduo, quer na prevenção, no tratamento ou na reabilitação do doente, na Medicina Legal o profissional usa todo o conhecimento médico disponível no sentido de esclarecer aos órgãos da Justiça fatos dolosos que tenham de alguma forma afetado a(s) pessoa(s) envolvidas no litígio. Eis aqui outro ponto nevrálgico a ser tratado neste trabalho.

Contudo, para Pinto da Costa (2012, p. 56-57) a função da Medicina Legal é proporcionar ao legislador, por meio do laudo técnico, conceitos convenientes para a redação de normas sem ambiguidades formais, nem dificuldades de execução prática e quando da intervenção pericial médico-legal. No fundo, é a aplicação de conhecimentos biomédicos e de outros conhecimentos científicos às questões do Direito, não lhe competindo fazer leis ou mesmo invadir outras esferas jurídicas, mas, dispondo-se como ponte entre esses dois campos de saber, a medicina e direito versando sobre o que lhe é de especialidade tecnocientífica através do laudo pericial produzido.

Quanto às embrionárias legislações trabalhistas que surgem entre o período que compreende 1980-1910 em todo o mundo, no Brasil, tem-se o Decreto 3.724 de 15 de janeiro de 1919 que regula as obrigações resultantes dos acidentes de trabalho estabelecendo que a transação necessária é a afirmação da responsabilidade objetiva do empregador pelos danos decorrentes ao trabalho, o que viria a por em pane todo o edifício jurídico-teórico da responsabilidade civil. Para isolar essa nova responsabilidade como responsabilidade objetiva é que se cria um Direito específico, o Direito do Trabalho. De acordo com Wandelli (2016), o Direito do Trabalho e a Infortunística do Trabalho nascem nesse momento histórico ao mesmo tempo pelo mundo todo.

Em 1921, com a criação da Inspeção do Trabalho, circunscrita ao Rio de Janeiro, temos os primórdios da Medicina do Trabalho no Brasil. Já o nascimento do seguro social, tem como marco inaugural o decreto que instituiu as Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs)38 aos trabalhadores ferroviários, em 1923, durante o período conhecido como

República Velha no Brasil. Contudo, somente é registrado como verdadeiramente seu nascimento através da promulgação do Decreto Legislativo nº 4.682 de 24 de janeiro de 1923 (Lei Eloy Chaves, em alusão a seu criador e deputado federal à época), sancionada no mandato do então presidente Artur Bernardes compreendendo os anos de 1922 a 1926). Também em 1923 houve a criação do Conselho Nacional do Trabalho, órgão que administrava as CAPs.

A partir do pioneirismo das CAPs e da promulgação da Lei Eloy Chaves, encontra-se nesse período, laudos periciais produzidos por médico perito datados de 1924 quando o Serviço Médico-Legal se transforma no Instituto Médico-Legal, e se subordina diretamente ao Ministério da Justiça. O referido Instituto, ao fim do governo de Washington Luís (1926-1930), volta a se subordinar ao chefe de polícia do Distrito Federal. Direito e Medicina davam-se as mãos para não mais soltarem até os dias de hoje. Com a reforma constitucional de 1926 estabeleceu-se a competência da União para legislar sobre o assunto e também com ela outras classes de trabalhadores foram incluídas

38 De acordo com Oliveira e Teixeira (1989), o projeto de lei que instituiu as CAPs não previa a participação

ativa do Estado nestas. A presença do poder público se dava através de um controle à distância, e se destinava exclusivamente à resolução de conflitos entre a administração das Caixas e algum segurado. Neste sentido, as CAPs possuiriam certa autonomia no âmbito administrativo e financeiro, constituindo-se, portanto, em uma instituição de caráter civil e privado. Apesar disto, segundo os autores, apenas a imposição legal de vinculação e contribuição às CAPs, tanto por parte dos trabalhadores, quanto dos empregadores, já demonstrariam as mudanças ocorridas na década de 1920 no que tange ao papel do Estado na previdência. Isto porque as Caixas foram aprovadas pelo executivo, ainda que inicialmente estas contemplassem apenas uma categoria de trabalhadores, como a dos ferroviários. A escolha dessa categoria de trabalhadores não teria sido gratuita vide que eram quem possuíam maior poder político à época e estavam em constante diálogo com o Estado.

no regime das CAPs39, como os trabalhadores portuários, dos serviços telegráficos e

radiotelegráficos, das empresas de mineração entre outros40.

Munõz et al (2010, p. 71) contudo nos rememora que obviamente não poderia haver perícia trabalhista antes do aparecimento da legislação que regulava essas questões. Entretanto, Flamínio Fávero, em seu livro Medicina Legal, editado em 1938, já incluía o capítulo da Infortunística, no qual tratava da perícia nos acidentes do trabalho e moléstias profissionais e, em edições posteriores afirmava: “Na 3ª. edição inclui as modificações da lei de acidentes do trabalho”. Esse mesmo autor define o campo de atuação da Medicina Legal da seguinte forma:

“É inegável que esta disciplina (...) não mais atua, apenas, no esclarecimento de certas questões de processo civil e criminal, nem tampouco, somente em aplicações forenses. Hoje a medicina legal age e deve agir pela “aplicação dos conhecimentos médico-biológicos na elaboração e execução das leis que deles carecem” (FÁVERO, 1973).

2.4 "Entre Cila & Caríbdis": o taylorismo-fordismo caboclo e o campo pericial do começo do século XX

39 Em relação aos benefícios, a lei que normatizava as Caixas previa assistência médica e farmacêutica aos

trabalhadores e seus familiares, que seriam custeadas pelas CAPs. De acordo com Oliveira e Teixeira (1989), esta iniciativa de congregar a concessão de benefícios pecuniários (aposentadorias e pensões) com a prestação de serviços (neste caso, médico-hospitalares e farmacêuticos) que merece destaque na lei. O que apareceria como inovador, no entanto, seria sua pretensão de abrangência, ao incluir os familiares dos trabalhadores como seus dependentes que, na condição de segurados, também passaram a usufruir de assistência médica e hospitalar, sendo esta uma das atribuições obrigatórias da incipiente Previdência Social na década de vinte. No período de vigência das CAPs, estes serviços eram prestados por médicos terceirizados, que realizavam atendimentos aos segurados em seus consultórios.

40 De acordo com Matos (2016, p. 45), nem todos os trabalhadores foram incluídos nos interesses e

preocupações de governo no período Vargas e receberam proteção do Estado. Esta “distribuição seletiva” de direitos trabalhistas se refletiu no próprio desenvolvimento dos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs) que começaram a ser organizados logo no início da década de trinta, com a criação do Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Marítimos (IAPM), em 1933, sucedido pelo dos comerciários (IAPC), bancários (IAPB), Transportadores de Cargas (IAPTC), Industriários (IAPI) e do Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado (IPASE). Torna-se importante mencionar estas categorias de profissionais que passaram a contar com Institutos próprios, pois elas representam, segundo Cohn (1981), as categorias que politicamente possuíam maior representatividade em termos sindicais e ocupavam setores estratégicos da economia do país. Estes profissionais, em diálogo com o Estado através de seus sindicatos, passaram a ter acesso diferenciado aos benefícios. Neste sentido, a Previdência Social no governo de Getúlio Vargas teria vinculado os direitos sociais da cidadania apenas aos trabalhadores formais, restringindo os benefícios aos setores assalariados urbanos.

A expressão "Entre Cila e Caríbdis" por nós utilizada no subtítulo deste capítulo referencia-se aos monstros míticos do mar grego descritos por Homero quando de sua clássica escrita "A Odisséia". Na mitologia grega os monstros Cila e Caríbdis situavam- se em lados opostos do Estreito de Messina, entre a Sicília e o continente italiano. Foram considerados como um perigo para o mar por localizarem-se perto o suficiente um do outro, o que representava uma ameaça inevitável para os marinheiros que por ali pleiteavam a travessia. Evitar Caríbdis significava passar muito perto de Cila e vice-versa. Tal expressão derivada da mitologia grega, em nossa cultura atual ganha o significado de se "ter que escolher entre dois males".

Pois bem, o caminho delineado pelo campo pericial no Brasil esteve "Entre Cila

e Caríbdis" quando por um lado, teve seu enfoque baseado na Medicina do Trabalho,

englobando as já descritas acima concepções de Medicina Legal e Medicina do Seguro e; na que agora nos concentraremos, a Saúde Ocupacional com ênfase na Higiene Industrial ou Higiene do Trabalho.

Nessa vertente, no período que compreende as décadas de 1920 a 1940, o saber médico e o taylorismo-fordismo marcaram respectivamente a posição de exclusão da classe trabalhadora via patologismos e culpabilizações e a de colaboração entre as classes em que os dois sujeitos historicamente desiguais, teriam agora a possibilidade de progredir mutuamente, eliminando as disparidades. E assim, temos o inicio da legitimação da opressão moral e simultaneamente a manipulação da subjetividade.

No espaço fabril, cabia ao médico, além da seleção41, a orientação e a adaptação

profissional. A seleção objetivava eliminar os psicopatas e consequentemente os riscos de contaminação dos trabalhadores ditos sãos. A orientação de cunho psiquiátrica visava alocar os indivíduos nas tarefas adequadas às suas aptidões mentais e pretendia com isso induzir os indivíduos a se submeterem às determinações e aos ritmos dos trabalhos exigidos. Este saber-médico psiquiátrico se utilizava dos conceitos de normalidade e patológico para tentar isolar os contestadores e os relacionava como responsáveis pelos conflitos nos espaços intrafábricas. Tais agitadores eram vistos então como degenerados e anormais mediante discurso psiquiátrico e como tais deveriam ser tratados.

Neste período histórico portanto, o viés ideológico impregnado à prática médico- perical no contexto do trabalho em nosso taylorismo caboclo (SEGNINI, 1986) da

41 A seleção ou educação do homem adaptado aos novos tipos de civilização, ou seja, às novas formas de

produção e de trabalho, ocorre com o emprego da extraordinária brutalidade, jogando no inferno das subclasses os débeis e refratários, ou eliminando-os de todo (GRAMSCI, 2010, p. 64).

infortunística, do risco inerente ao trabalho, do ato inseguro e com o discurso higienista das insuficiências genéticas e raciais sendo substituídos pelos enunciados de incompetência, dos maus hábitos e da falta de instrução, aliado à questão do nexo causal