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A experiência estatal jurídico-legislativa do serviço sanitário paulista em trabalho-saúde

CAPÍTULO 2. RESGASTE HISTÓRICO DO CAMPO PERICIAL NO BRASIL

2.2 A experiência estatal jurídico-legislativa do serviço sanitário paulista em trabalho-saúde

25 Também o Capítulo I no Art. 26 traz no item IX que é de atribuição do empregado na Inspectoria Geral

de Hygiene “visitar (...) quaesquer outras fabricas de que possa provir damno á saude publica, ordenando a remoção das perigosas, o saneamento das insalubres e o emprego dos meios apropriados a tornar toleraveis as incommodas” e a Seção II intitulada “Das Sessões da Inspectoria Geral de Hygiene” também do referido decreto apresenta no texto do item VI do Capítulo VI, Título II que este profissional deve “examinar a hygiene das industrias já estabelecidas, indicando os melhoramentos que convenha adoptar”. (BRASIL, 1886, p. 57-103).

26 De acordo com Netto (1942, p. 7), o último orçamento imperial por exemplo, o de 1889, atribuiu menos

de 1 % do total aos serviços de higiene, controle dos portos, hospitais e asilos. Vê-se que o subfinanciamento da saúde do trabalhador é um projeto histórico em nosso país.

A partir da promulgação da constituição brasileira em 1891, criou-se uma República Federal que deixou a responsabilidade administrativa, na maioria das áreas - entre elas a da saúde pública - às autoridades estaduais. No campo da higiene por exemplo, o governo nacional ficou apenas com o controle dos portos e determinou a fiscalização nas fábricas em que trabalhavam menores no Distrito Federal (PENA & GOMES, 2011, p. 114). Sob a nova constituição, o regime republicano em São Paulo agiu rapidamente para formular sua política sanitária e promulgou a Lei nº 12 de 28 de outubro de 1891 que organiza o serviço sanitário do Estado de São Paulo27.

O Decreto 87 de 29 de julho de 1892 que regulamentou a Lei nº 43 de 18 de julho do mesmo ano, organizava o serviço sanitário do Estado de São Paulo estabelecendo o “regulamento de hygiene” dispondo em seu artigo 19 do Capítulo XI sobra a chamada “Polícia Sanitária” que, em todas as fábricas, caberia à autoridade sanitária examinar se eram insalubres por suas condições materiais e de instalação, sendo então perigosas à saúde dos moradores vizinhos, ou incomodas aos operários. O § 2.º do mesmo artigo apontava que, em caso de constatada a insalubridade, a autoridade marcaria prazo para a execução de suas determinações, e se, ao fim do prazo, não fossem cumpridas suas ordens, seria o dono da fábrica multado em cem mil réis e na mesma quantia nas reincidências, podendo a autoridade sanitária mandar fechar o estabelecimento pelo tempo preciso.

Adiante, com a Lei nº 240 de 4 de setembro de 1893, houve a retirada da intervenção estadual paulista em saúde pública nas fábricas e demais estabelecimentos, resultado duma combinação de fatores. Os problemas de financiamento e implementação da legislação de 1892 pareciam indicar que os recursos do Estado ainda não eram suficientes para o controle completo de higiene e saneamento, enquanto o Estado estava gastando grandes somas de dinheiro em outros programas como educação e imigração. Além disso, os oponentes de saúde pública no congresso tornaram-se mais veementes depois de 1892. Críticos, como o deputado Pereira dos Santos, defendiam a opinião de que a atividade estadual nessa área constituía uma afronta aos direitos municipais tradicionais. Também Herculano de Freitas, um crítico habitual da legislação de higiene,

27 A Lei estadual n. º 12, de 1891, estabeleceu o Serviço Sanitário de São Paulo. Os trezentos contos de réis

consignados à criação do Serviço foram pouco menos de 1/6 do total do orçamento estadual, o que indica a importância cedo atribuída ao campo de saneamento e higiene por autoridades paulistas. Duas semanas depois da aprovação da legislação que organizava o Serviço Sanitário, o congresso estadual aprovou a lei que tornava obrigatória a vacinação antivariólica no Estado. Os republicanos paulistas demonstraram assim a disposição de usar a coerção tão bem quanto os recursos para salvaguardar a saúde do Estado (BLOUNT, 1972, p. 41).

condenou o governo por ter interferido nos direitos das câmaras e nos direitos dos indivíduos (BLOUNT, 1972, p. 42).

Todavia, numa tentativa de manter um nível geral de saúde focado no eixo das causas específicas (agentes químicos, físicos e biológicos), o Estado de SP promulgou o chamado Código Sanitário com o Decreto nº 233 de 2 de março de 1894. Tal código dispunha em seu artigo 120 do Capítulo III “Das Habitações Collectivas”, que as salas de trabalho deveriam ser arejadas e bem iluminadas e as suas dimensões proporcionais ao numero de operários, bem como os artigos 157, 162, 169, 182 e 183 do Capítulo VII “Fabricas e Officinas” versavam respectivamente sobre o aspectos de que em todas as fabricas deveriam ser cuidadosamente adotados meios adequados que protegessem não só os operários, como a população, da ação das poeiras, gases e vapores prejudiciais; que os operários que trabalhassem à noite deveriam dispor de um espaço correspondente a 14 metros cúbicos, no mínimo; que tais fabricas e oficinas deveriam ter abundante abastecimento de agua potável, proporcionalmente calculada, de acordo com o numero de operários; que poderiam ser admitidos operários não vacinados28 e; de que nesses

espaços deveriam existir regimentos, onde ficariam consignados os deveres dos operários relativos à boa execução dos preceitos higiênicos29.

O Decreto nº 1.343 de 27 de janeiro de 1906 que tratava da lei sanitária e concentrava todo o poder do setor de saúde e higiene ao âmbito estadual, o governo de São Paulo tentou voltar, embora em menor escala, ao controle estadual total manifestado na lei de 1892. Essa legislação dividiu São Paulo em 14 distritos, contando, cada um, com um ou mais inspetores sanitários permanentes e os fiscais necessários que tinham como uma de suas incumbências dispostas no § 11. do artigo 22 do Capítulo II, fiscalizar a alimentação publica, inspecionando as fabricas, padarias, refinações, torrefacções e as casas comerciais que expunham à venda gêneros alimentícios e bebidas nacionais e estrangeiras.

Gradualmente, as autoridades sanitárias paulistas estavam-se tornando mais interessadas nas doenças endêmicas do interior, área à qual pouco cuidado se dava nos

28 Nota-se já nesse período uma preocupação jurídico-legislativo-sanitária com o controle biopolítico dos

corpos dos trabalhadores com vistas a se garantir a governamentalidade e os interesses da elite econômica paulista.

29 O capítulo XIV do mesmo Decreto que rege as condições sanitárias em Matadouros diz no artigo 305

que os animais que sofressem de moléstias transmissíveis deveriam ser cuidadosamente separados, providenciando para que não contaminassem aos demais animais bem como aos operários. Vê-se que a preocupação da elite política paulistana se dava, primeiro com a matéria-prima de sua mercadoria a ser transformada em capital, depois com a força de trabalho.

primeiros anos do movimento sanitário. O Decreto nº 2.141 de 14 de novembro de 1911 promoveu um retorno aparente à estrutura legal de 1896, estipulando que as câmaras municipais deveriam entregar o controle das organizações sanitárias às autoridades estaduais. Assim, tal revisão e reorganização do serviço sanitário do estado previu em seu artigo 74 do Capítulo IX do Título II que nas visitas às fabricas e oficinas de todo o gênero os inspetores sanitários deveriam se informar da natureza e tempo do trabalho, bem como do numero, idade e sexo dos operários nelas empregados, indicando as medidas que se tornassem necessárias a bem da saúde dos mesmos.

Também os artigos 162, 163, 164, 169 e 173 do Capítulo VII “Das Fabricas e Officinas em Geral” do Título III que tratava sobre a “Polícia Sanitária” versavam respectivamente sobre: a adoção de medidas adequadas e dispositivos especiais que protegessem não só os operários como também os habitantes dos arredores das fábricas contra a ação nociva ou incômoda dos gases, poeiras e vapores30; sobre quando em

qualquer fábrica ou oficina a autoridade sanitária verificasse que os processos industriais empregados não eram os mais convenientes para a saúde dos operários, este ordenaria os que devessem ser adotados, marcando prazo razoável para sua substituição; as instalações dos maquinários que o inspetor sanitário deveria levar em consideração que os moradores próximos das fábricas e oficinas e os operários das mesmas devessem ficar resguardados de qualquer acidente; prezar para que nas fabricas haveria uma latrina para cada grupo de quarenta operários e uma para cada grupo de vinte e cinco operarias31 como também;

prezar que não fossem admitidos como operários os menores de dez anos, podendo os de dez a doze anos somente executar serviços leves.

A legislação sanitária nº 1.596 de 29 de dezembro 1917 diferenciou-se da lei de 1911 no que tange a adição de provisões para controle estadual nas regiões do interior, e, ao nosso ver, principalmente em apresentar inovações para a época sobre ações de inspeção sanitária não somente para operários industriais, mas agora também para trabalhadores rurais32, como por exemplo o artigo 312 do Código Sanitário Rural que

30 Também o artigo 297 do Capítulo IX “Das Habitações em Geral” da Secção VIII dizia que nas casas de

habitação coletiva para operários seria obrigatória a construção de tanques de lavagem, em numero suficiente.

31 A Lei nº 1.596 de 29 de dezembro de 1917 dispôs em seu artigo 90 que as latrinas nas fábricas paulistas

passariam a ser separadas para operários de um e outro sexo, havendo, no mínimo, uma latrina para cada grupo de trinta operários e um mictório para cada grupo de cinquenta. Já o § único do art. 126 dizia que para a troca de roupa dos operários haveria um compartimento especial, com os lavabos indispensáveis. Teria o Brasil ensaiado a disseminação ideológica do nexo psicofísico fordista descrito por Gramsci (2010) com a experiência sanitária paulista?

32 O parágrafo 5º do artigo 51 dizia que o serviço de higiene rural tinha a seu cargo, por exemplo, a

dispunha que “nas fazendas e estabelecimentos agrícolas ou industriais de qualquer

natureza, em que trabalhem mais de cem pessoas, serão obrigados a promover a assistência medica dos seus empregados, enfermos de impaludismo [malária], podendo confederar-se em forma de cooperativas, para facilitar sua execução.”

Na referida Lei havia também artigos que tratavam do meio ambiente da produção como por exemplo o artigo 86 que dizia que nenhuma fabrica ou oficina poderia ser instalada sem que a autoridade sanitária fosse ouvida sobre a escolha do local, condições de construção e instalações do maquinário (a Lei enfatizava principalmente os matadouros) ou então o artigo 88 que versava sobre o maquinário perigoso que deveria ser previamente aprovado e que era suscetível de se receber aparelhos de proteção, como por exemplo ter suas peças móveis isoladas por meio de telas.

Tal legislação também trouxe diversos artigos inovadores que regulavam o trabalho de menores e mulheres nas fábricas e oficinas paulistas. Imputava que ao menor de 12 anos o trabalho nesses ambientes era proibido e que aos de idade entre 12 e 15 anos poderiam trabalhar mediante consentimento de seus representantes legais, por tempo que não excedesse cinco horas/dia, e em serviços moderados que não lhes prejudicasse a saúde (era-lhes exigido atestado médico de capacidade física para a admissão no trabalho) ou a instrução escolar (a frequência escolar também era um pré-requisito para a admissão no trabalho, mesmo ao menor ainda não alfabetizado)33 e que, deveria o gerente das

fábricas e oficinas sempre exibir tal autorização de consentimento do representante legal do menor quando requerido pela autoridade sanitária.

Contudo, o artigo 94 da mesma Lei impunha que a esses jovens, ficava proibido o trabalho em fabricas de bebidas alcoólicas, destiladas ou fermentadas, ou industrias perigosas ou insalubres por exemplo, bem como lidar com maquinários ditos perigosos, ou mesmo executar serviços que oferecesse riscos de acidentes inerentes, ou qualquer trabalho que lhes demandasse conhecimento específico e atenção especiais. Também lhes ficava vedado executar trabalhos que produzissem fadigas demasiadas, tais como

sanitárias nas zonas infectadas por certas endemias e o parágrafo 3º do artigo 260 do Código Sanitário Rural inserido na mesma Lei versava sobre as obrigações dos proprietários das fazendas e estabelecimentos agrícolas ou industriais em, obter por meios suasórios, dos empreiteiros, agregados, colonos e outros trabalhadores sob sua dependência, o cumprimento das disposições que diziam respeito ao asseio e limpeza de suas propriedades.

33 O artigo 372 da referida Lei dizia que aos menores do setor rural que trabalhassem em fábricas, oficinas

e quaisquer outros estabelecimentos industriais e que tivessem entre 14 e 15 anos, poderia ser concedida, mediante atestado do inspetor de higiene, licença para o trabalho normal, em serviços que não lhes prejudicasse a saúde.

transporte de materiais, fardos e volumes de peso superior às suas forças, ou então de incumbir-se de composição ou impressão de trabalhos tipográficos, litográficos ou outros, que, segundo, a Lei, “lhes ofendessem a moral”. Aos menores de 18 anos e às mulheres vetava-se a execução de serviços noturnos nas fábricas. Essas últimas, inclusive, ficavam impedidas de trabalhar em qualquer estabelecimento industrial durante o ultimo mês de gravidez e o primeiro do puerpério.

Também vale ressaltar que a referida Lei já versava sobre o controle biopolítico dos corpos adentrando o espaço da vida privada dos trabalhadores ao regular que as casas de habitação coletiva, de qual quer natureza, possuiriam um livro intitulado “Registro Sanitário”, cujo modelo era pré-aprovado pela Diretoria Geral do Serviço Sanitário do Estado, e rubricado pelo delegado de Saúde da zona, no qual eram consignados os nomes dos moradores, sua procedência e datas de entrada e saída. Era inclusive obrigatória a comunicação, à Delegacia de Saúde mais próxima, sobre as entradas e saídas de hóspedes, verificadas durante a semana pela autoridade sanitária. Também todas as casas que vagassem seriam visitadas pela autoridade sanitária, que verificava si ofereciam ou não as condições de higiene para serem habitadas, seguido de um procedimento de desinfecção da mesma para posteriormente dispor de nova habitação para novos inquilinos. A Lei ainda cita que era direito de qualquer cidadão que alugasse uma dessas casas, requer o histórico sanitário da mesma junto à Delegacia de Saúde da zona34.

Blount (1972, p. 45) afirma que esta experiência jurídico-legislativa da administração estatal sanitarista em São Paulo, antes de 1918, tinha sido uma experiência em área de governo pouco conhecida, até nos países mais avançados da Europa e América do Norte. Além disso, as autoridades paulistas tiveram que lutar contra as circunstâncias criadas pelos problemas de autonomia municipal, pelas crenças positivistas em liberdade individual absoluta, e, basicamente, pelos interesses econômicos dos grandes fazendeiros e também do governo do Estado. O autor também expõe que um aspecto interessante desta última consideração foi o fato de que partidários paulistas de saúde pública raramente recorreram a sentimentos humanitários (como foi feito na Europa e nos EUA) para ganhar o apoio dos grupos poderosos. Os argumentos ou eram econômicos, ligados ao assunto da imigração, ou tratavam da necessidade de São Paulo imitar os países mais civilizados. Aos fazendeiros, e mais tarde aos industriais, seria fácil aceitar tais argumentos, desde que o governo não interferisse demais nos direitos da oligarquia.

O fato é que o Serviço Sanitário paulista e seus aliados políticos fizeram um jogo muito delicado ao tentar ampliar serviços e controles, o que afetou inclusive na fama do estado de “lugar insalubre” à de uma região bastante saudável. Embora se ponha em dúvida que a melhoria das condições de saúde pudesse ter atraído maior número de imigrantes, ao menos o controle das doenças epidêmicas abriu os portos para a entrada de mão de obra estrangeira às fazendas paulistas, afinal, é bem verdade que as pessoas mais afetadas pelas doenças transmissíveis, como a febre amarela e a cólera, foram as recém- chegadas da Europa. Para o orgulho da oligarquia paulistana e, possivelmente, para o campo de investimentos estrangeiros, tais fatos tiveram relevante importância, bem como pode-se dizer que é provável que o movimento de saúde pública paulista do início do Brasil República, também haja contribuído, de certo modo, para o ganho produtivo e desenvolvimento econômico do Estado de São Paulo tal como se configura até os dias atuais.