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CAPÍTULO 2. RESGASTE HISTÓRICO DO CAMPO PERICIAL NO BRASIL

2.7 A Caixa de Pandora está aberta E agora?

Em suma, a construção histórica do campo pericial no Brasil pautou-se no relacionamento íntimo com fragmentos de conhecimentos formais biomédicos de cada subciência médica e, independente de ações judiciais, atua no que diz respeito à direitos sociais.

Na esfera jurídica, a perícia em trabalho-saúde passa por alterações em seu fazer das quais, as mais recentes destacamos: (1) o Processo Judicial Eletrônico (PJe), que, pela via da informatização do trabalho jurídico, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) elabora um software com o objetivo principal de manter um sistema de processo judicial eletrônico capaz de permitir a prática de atos processuais pelos magistrados, servidores e demais participantes da relação processual, dentre eles, os peritos, diretamente no sistema, assim como o acompanhamento desse processo judicial, independentemente de o processo tramitar na Justiça Federal, na Justiça dos Estados, na Justiça Militar dos Estados e na Justiça do Trabalho; (2) a vigência do Novo Código do Processo Civil em 2015 que permite perícias realizadas também por pessoa jurídica e não mais exige nível universitário da figura do perito para realizá-la mas, agora "profissionais legalmente habilitados" (CPC, 2016, p. 253) e; (3) A resolução 233/16 do CNJ que, partindo do art. 156 do CPC/15, dispõe sobre a criação de cadastro de profissionais e órgãos técnicos ou científicos no âmbito da Justiça de primeiro e segundo graus, a qual iremos tratar mais a frente neste trabalho.

Seria deveras irresponsável de nossa parte uma análise precoce dos impactos positivos e negativos do Novo CPC/15 para o trabalho pericial como um todo, contudo, não podemos nos abster de formular hipóteses que vão no sentido de que a precarização do trabalho permanece. Seja ela: (1) de vínculo, entre esse profissional e o poder público, já que seu auxílio é eventual como também o é sua remuneração nessa esfera. O que ocasiona uma irregularidade salarial deste profissional no âmbito judicial, e o faz buscar vínculos empregatícios com empresas afim de que tenha vencimentos fixos, vide que, em sua maioria, os peritos na justiça do trabalho são médicos do trabalho e o mercado para esse profissional no Brasil é fundamentalmente a atuação em organizações; (2) de especialidade/formação técnica o que a nosso ver pode caracterizar uma via de mão dupla pois abre brecha à realização de perícia por profissional não habilitado na área de saber (Ex: perícia psiquiátrica sendo realizado por médico ginecologista), porém dilui-se o

entendimento restrito de perícia enquanto um ato médico permitindo que outros profissionais também sejam nomeados a fazê-las (Ex: perícia psiquiátrica sendo realizada por psicólogo) e; (3) de autonomia pois permanece o perito apartado de pensamento prático-reflexivo sobre seu processo de trabalho ficando à mercê dos prazos e metas do judiciário guiados pelo fetiche da celeridade dos processos e igualmente alienado do produto de seu trabalho, a saber, o laudo pericial, enquanto instrumento-chave para a decisão do magistrado sobre o liame em questão ou mesmo enquanto ferramenta jurisprudencial para outros processos de igual teor contribuindo com a produção científica no campo de intersecção trabalho-saúde-direito.

No que tange as perícias previdenciárias, o cenário nos parece ainda mais temerário para o campo da Saúde do Trabalhador. Como resultado da Lei nº 13.341, de 29 de setembro de 2016, o Ministério do Trabalho e Previdência Social (MTPS) é extinto, de forma que o INSS passa a vincular-se ao Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário (MDAS)84 e a Previdência Social se torna uma Secretaria do Ministério da

Fazenda85.

Dentre os primeiros retrocessos do atual governo86, para além da reestruturação

organizacional do setor previdenciário como um todo87, como também a aprovação do

PL nº 257/2016 que precariza o serviço público nos estados, e a PEC nº 241/2016 que limita os gastos públicos em 20 anos, destacamos: (1) a demissão do então diretor do DIRSAT, figura responsável por encabeçar os ditames do Decreto nº 8.725/16; (2) a Portaria nº 152 de 25 de agosto de 2016 que consolida a “alta programada”88, pela qual o

perito “estima” uma provável data de recuperação do trabalhador e, assim, fixa o prazo

84 Atualmente renomeado para Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) a partir da Lei nº 13.502, de

1º de novembro de 2017.

85 Para Boschetti (2003), a separação constante entre os três campos da previdência, saúde e assistência

através da criação de ministérios específicos durante toda a história da previdência social, reforçaria a constatação de que o modelo de seguridade previsto na Constituição Federal de 1988 não teria se efetivado na prática até hoje. Isto porque, segundo a autora, não houve a criação de um ministério da seguridade social, por exemplo, que pudesse articular e definir as políticas de seguridade como um todo.

86 Cohn (1981) aponta um fato curioso do processo de instituição e extensão dos direitos sociais no Brasil,

destes terem se expandido justamente em conjunturas autoritárias e ditatoriais.

87 Como também o PL nº 257/2016 que precariza o serviço público nos estados, e a PEC nº 241/2016 que

limita os gastos públicos em 20 anos.

88 Em decisão unânime, em 28 de setembro de 2017, a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça

(STJ) reconheceu a ilegalidade do procedimento conhecido como "alta programada". O recurso especial julgado foi interposto pelo INSS contra acórdão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), que entendeu que a cessação do auxílio-doença deve ser obrigatoriamente precedida de perícia médica, em vez de ocorrer em data presumida pela autarquia como sendo a da reabilitação do segurado. Documento: 1635395 - Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJe: 13/11/2017. Disponível em: <

https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1635395&nu m_registro=201601224519&data=20171113&formato=PDF>. Acesso em 23 de novembro de 2017.

de término do benefício previdenciário, dispensando a realização de nova perícia; (3) a decisão do Conselho Nacional de Previdência Social de 17 de novembro de 2016 pela qual o INSS dispensa as empresas de comunicar os acidentes de trajeto e os acidentes de trabalho que não impliquem afastamento superior a 15 dias89. A medida tem impacto

direto sobre o cálculo do Fator Acidentário Previdenciário (FAP) pois, diminuindo o número de notificações de acidentes, reduz-se também a contribuição empresarial ao FAP que hoje representa 1% a 3% da folha de pagamento90 e; (4) A revisão dos benefícios

pagos pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), previsto pela Medida Provisória nº 739 de 7 de julho de 16 que convoca desde a setembro de 2016, mais 530 mil trabalhadores que recebiam o auxílio-doença e 1,2 milhão de aposentados por invalidez com idade inferior a 60 anos para a revisão do benefício como medida de se passar um pente-fino nos benefícios concedidos aos segurados pelo instituto. O benefício seria cancelado automaticamente caso o segurado não comparecesse à convocação91.

Assim, o INSS cancelou 286.778 auxílios-doença em todo o país após quase 300 mil perícias de revisão feitas até abril de 201892. O programa de revisão está em sua

segunda etapa93. As perícias serão realizadas por cerca de 3.864 médicos peritos94 os quais

terão até setembro de 2018 como prazo para completa efetivação95.

Além disso, também está na pauta do dia a proposta de reforma da previdência, a partir da PEC 287/2016 que se baseia na famigerada tese sobre o "rombo da previdência",

89 Como previsto na Súmula nº 282 do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e o art. 60º §3º da Lei nº

9.876/1999.

90 Renuncia o Estado à parcela da arrecadação, não se sabe com base em qual norma legal, beneficiando

justamente o empregador faltoso que, à primeira vista, falhou em seu dever primário de evitar que o acidente laboral acontecesse (VARGAS, 2017, p. 281).

91 A ausência de convocados levou ao cancelamento de 20.304 benefícios.

92 O Instituto crê com a medida ter uma economia anual estimada em R$ 3 bilhões. Esquecem-se como

enfatiza Fagnani (2017, p. 109), que o suposto “rombo” de R$91 bilhões (2015) poderia ter sido coberto com parte dos R$202 bilhões arrecadados pela Contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS); dos R$61 bilhões arrecadados pela Contribuição Social sobre o Lucro Líquido das Empresas (CSLL), e dos R$53 bilhões arrecadados pelo PIS/PASEP. Ou então, pelos R$63 bilhões capturados pela DRU e pelos R$158 bilhões de desonerações e renúncias de receitas da Seguridade Social.

93 “INSS convoca para perícia 152 mil beneficiários de auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez”.

Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/inss-convoca-para-pericia-152-mil-beneficiarios- de-auxilio-doenca-ou-aposentadoria-por-invalidez.ghtml. Acesso em 12 abr. 2018.

94 O novo modelo prevê flexibilização do cumprimento da jornada de trabalho dos/das médicos(as)

peritos(as) e aqueles/aquelas que aderirem ao novo modelo, terão de realizar quatro perícias diárias (em auxílios-doença e em aposentadorias por invalidez) e se colocar à disposição de mutirões quando o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) julgar necessário. Para tanto, instituiu um Bônus Especial de Desempenho para o perito do INSS por perícia realizada (valor de R$60,00) (PINHEIRO & GUEIROS, 2017, p. 320).

95 “Governo estima fazer 1,2 milhão de perícias em benefícios pagos pelo INSS; 226 mil auxílios-doença

já foram cortados”. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/governo-estima-fazer-12- milhao-de-pericias-em-beneficios-pagos-pelo-inss-226-mil-auxilios-doenca-ja-foram-cortados.ghtml>. Acesso em: 16 jan. 2018.

tão bem já refutada por Gentil (2006). Se aprovada, trará enormes retrocessos ao campo da Saúde do Trabalhador, tal como foram as sanções da Lei nº 13.429 de 31 de março de 2017 ampliando a terceirização e da Lei nº 13.467 de 11 de novembro de 2017 da reforma trabalhista.

Esta última, ao legitimar a precarização das condições gerais do mercado de trabalho, bem como o trabalho intermitente e a ampliação da terceirização que ocasionam aumento da rotatividade nos postos de trabalho e os tipos de exposição a situações adversas, sejam elas relacionadas ao ambiente, à organização ou à gestão do trabalho, traz também maiores dificuldades de se estabelecer a relação entre condições de trabalho e adoecimentos, gerando uma grave consequência de se ampliar a subnotificação já existente das doenças relacionadas ao trabalho nos registros oficiais.

Biavaschi (2017, p. 193) aponta que, no caso da reforma trabalhista, há ainda inequívoco objetivo de atingir, além das normas de proteção social ao trabalho, o sistema de fiscalização e a Justiça do Trabalho, instituída que foi para concretizar um direito profundamente social. Assim por exemplo, coloca obstáculos ao direito constitucional de acesso ao Judiciário, no caso, à Justiça do Trabalho, vilipendiando tal instituição com o argumento de que esta estimularia a litigiosidade. Dessa forma, impõe aos trabalhadores, por meio de regras processuais, os ônus de honorários de advogados e peritos, multas, com o objetivo de desestimular as demandas. Ou seja, atinge fortemente o Direito e as instituições públicas que atuam no mundo do trabalho, bem como impacta diretamenta nas condições do trabalho pericial, principalmente no que tange a precarização da remuneração tornando-a ainda mais flutuante e variável.

Quanto a reforma da previdência em curso, Fagnani (2017, p. 113) diz ser uma impropriedade inspirar a reforma brasileira em modelos de países igualitários devido ao abismo que separa os diferentes contextos históricos e as condições de vida existente entre no país e as nações dita avançadas. Por exemplo, o autor cita que estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS, 2001) apontam que no Brasil a probabilidade de “vida sem saúde”, no caso dos homens (20,2%), era mais que o dobro verificado na Itália (9,2%) e que a “expectativa de vida saudável” em nosso país (64 anos) é quase 10 anos menor que no referido país europeu (73 anos). Como também atualmente as doenças crônicas respondem por mais de 70% das causas de mortes no Brasil, além do que, tais ocorrências geram incapacidade e limitações para o trabalho96. Para Iasi (2016), tanto a

96 Comprova-se aqui a tese de Laurell (1982, p. 3-5) de que as sociedades que diferem em seu grau de

reforma trabalhista quanto a da previdência servem apenas aos grandes interesses econômicos da elite nacional com gana pela privatização da última, e não à classe trabalhadora.

Por fim, recorremos ao método histórico-dialético na confecção deste capítulo buscando proceder uma análise diacrônica e sincrônica sobre a gênese, desenvolvimento, fortalecimento e principalmente, consolidação do campo pericial no Brasil enquanto um campo de poder, lutas e tensões. Ou seja, enquanto um processo social e historicamente determinado, porém ainda em curso, em movimento constante de transformações no interior de suas contradições.

Com a atual fragilidade dos movimentos sindicais e sociais, aliada à postura pouco engajada da academia e o sucateamento crescente dos serviços públicos com o desenvolvimento de políticas reducionistas no que tangem direitos sociais conquistados historicamente pela classe trabalhadora, estabelece-se um cenário de enorme retrocesso no campo da Saúde do Trabalhador que nos dizeres de Lacaz (2007, p. 764) se faz urgente combater, de modo a se partir do resgate dos pressupostos do campo e da crítica aos reducionismos perpetrados pelo campo da Saúde Ocupacional, mesmo ainda notando a prevalência hegemônica de seu discurso no fazer pericial composto substancialmente pela classe médica em sua (quase) totalidade. Tal campo da Saúde Ocupacional, imbricado de ideologias conservadoras, contribui inclusive com os rumos políticos do país e cumpre o papel ao qual lhe foi demandado quando ainda de seu surgimento na sociedade brasileira: servir como apoio científico indispensável ao exercício do poder do Estado e de manutenção do status quo superestrutural da lógica do capital na esfera jurídico-sanitária.

condições coletivas de saúde em diferentes sociedades, no mesmo momento histórico, nos demonstra o caráter social da doença e nos permite um aprofundamento no entendimento sobre os determinantes sociais do perfil patológico de uma coletividade.