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Surgimento e institucionalização do campo pericial no Brasil: Do Império à Primeira República

CAPÍTULO 2. RESGASTE HISTÓRICO DO CAMPO PERICIAL NO BRASIL

2.1 Surgimento e institucionalização do campo pericial no Brasil: Do Império à Primeira República

Com vistas à perpetuação do ideário burguês por parte da classe dominante, o

ethos médico e o ethos jurídico surgem no Brasil como aparatos científicos

superestruturais compostos de saberes que tornar-se-iam indispensáveis ao exercício de poder do Estado enquanto agente regulador da organização positiva dos trabalhadores produzindo suas condições de vida e estabelecendo a possibilidade de um controle político individualizado ou coletivo exercido de forma contínua por meio da disseminação da norma como condição possível de normalização da sociedade.

Sob influência da medicina francesa preocupada com os perigos e riscos que determinados ambientes como as fábricas por exemplo, poderiam oferecer, a Medicina Social Brasileira por exemplo nasce preocupando-se com as cidades, de forma que, se tem todo um planejamento urbano nesse período com forte participação do profissional médico. Nunes (1989) descreve a existência, portanto de uma "polícia médica" encarregada de disciplinar o comércio, a alimentação pública, os portos, os alojamentos de forma a "medicalizar as instituições que representassem risco à segurança da cidade". Alguns dos textos em português datados dos séculos XVII e XVIII sobre a saúde no Brasil citados por Mendes e Waissmann (2013, p. 16), versavam sobre doenças infecciosas e a necessidade de manutenção da saúde dos escravos das lavouras do Nordeste e das minas de Minas Gerais de modo que se permitisse a continuidade da produção pela exploração da mão de obra escrava. Oliveira (1982) nos relembra que por boa parte do século XIX a SOMERJ - Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro posicionou-se no e pelo Estado enquanto instituição-aparelho componente da superestrutura jurídico-sanitária do capitalismo brasileiro e como uma das "faces" intelectuais da hegemonia das classes dominantes escravagistas e da coroa.

A manipulação político-ideológica de um grupo social através do discurso sanitário por meio da SOMERJ segundo Oliveira (1982) deu poderes a essa inclusive referente ao controle dos processos de entrada e permanência nas escolas médicas dos

profissionais afinados com sua ideologia em concomitância com a perseguição aos "curadores" não habilitados. França (2008, p. 57) destaca que o ensino médico no Brasil foi fundado em 18 de fevereiro de 1808, pelo conselheiro Dr. José Corrêa Picanço, brasileiro, natural de Goiana, Pernambuco, Cirurgião-Mor do Reino, mais tarde Barão de Goiana, que foi autor da proposta ao Príncipe Regente D. João VI que, em atendimento, instituiu no Hospital Real Militar da Bahia, por meio de Carta Régia, uma Escola Médico- Cirúrgica, a primeira fundada no Brasil. Diante disso, foi incumbido dessa missão o próprio Conselheiro Dr. José Corrêa Picanço, de dirigir as primeiras “instruções” para o funcionamento desse instituto a que ele denominou “Escola de Anatomia e Cirurgia” e a de nomear os primeiros professores da instituição.

Contudo, somente em 1814, em Minas Gerais, é que a primeira publicação médico-legal de caráter pericial viria a ser produzida no Brasil de autoria do médico e senador do Império, Gonçalves Gomide e fora intitulada "Impugnação analítica do exame

feito pelos clínicos: Antônio Pedro de Souza e Manuel Quintão da Silva, em uma rapariga que julgaram santa, próxima da Vila Nova da Rainha de Caeté, comarca de Sabará, oferecida ao Dr. Manuel Vieira da Silva". Curiosamente, a primeira perícia de que se tem

registro é a perícia da perícia com Gomide contestando o ato médico de seus colegas Souza e Silva.

Temos também a partir de 1830, com a promulgação do primeiro Código Criminal Brasileiro, o estabelecimento efetivo e obrigatório da participação de médicos em perícias, mesmo somente até então de natureza criminal. Como determinava o artigo 195 do referido Código: “O mal se julgará mortal a juízo dos facultativos”, ou seja, anterior à referida regulação, os magistrados brasileiros não se dispunham da figura do médico perito para consultarem antes de proferirem suas sentenças pois o ensino da Medicina Legal era ainda incipiente nas escolas médicas brasileira do começo do século XIX, fazendo com que as perícias se caracterizassem pela insuficiência de conhecimentos técnicos, o que as tornava geralmente inadequadas23.

Rojas (1984, p. 97) observa que, foi criado então oficialmente, o ensino da Medicina Legal, ligado à seção das Ciências Médicas com a transformação, pela Regência em 1832, das duas antigas Escolas Médico-Cirúrgicas, da Bahia e do Rio de Janeiro, em

23 Tal matéria passa a ser ensinada a partir do último quarto do século XIX em diante e, salienta-se neste

aspecto que, os peritos nomeados pelos magistrados logo após a promulgação do Código Criminal Brasileiro de 1830, ainda não possuíam conhecimento em Medicina Legal, e, na ausência de regulamento que disciplinasse a realização das perícias, os mesmos eram escolhidos de acordo com os interesses das partes, resultando em trabalhos precários e tendenciosos.

Faculdades de Medicina. Por sua vez, o Código de Processo Criminal de 1832 estabeleceu a perícia oficial, - de cunho penal e não trabalhista -, determinando regras a serem observadas nos exames de corpo de delito e nos autos respectivos.

Código de Processo Criminal de 1832

Promulga o Código do Processo Criminal de primeira instancia com disposição provisoria ácerca da administração da Justiça Civil. A Regencia, em Nome do Imperador o Senhor Dom Pedro II, faz saber a todos os Subditos do Imperio, que a Assembléa Geral Decretou, e Ella Sanccionou a Lei seguinte:

DA FORMAÇÃO DA CULPA

Art. 134. Formar-se-ha auto de corpo de delicto, quando este deixa vestigios que podem ser ocularmente examinados; não existindo, porém, vestigios, formar-se-ha o dito auto por duas testemunhas, que deponham da existencia do facto, e suas circumstancias.

Art. 135. Este exame será feito por peritos, que tenham conhecimento do objecto, e na sua falta por pessoas de bom senso, nomeadas pelo Juiz de Paz, e por elle juramentadas, para examinarem e descreverem com verdade quanto observarem; e avaliarem o damno resultante do delicto; salvo qualquer juizo definitivo a este respeito.

Art. 136. O Juiz mandará colligir tudo, quanto encontrar no lugar do delicto, e sua vizinhança, que possa servir de prova.

Art. 137. O auto de corpo de delicto será escripto pelo Escrivão, rubricado pelo Juiz, e assignado por este, peritos e testemunhas.

Contudo, somente em 1850 a partir do "Regulamento 737" baseado no direito português, é que a perícia é verdadeiramente tratada no Brasil. Em 1854 foram dados os primeiros passos no sentido de se regulamentar tal prática médico-pericial, quando o então Ministro da Justiça, Nabuco de Araújo, constituiu uma comissão presidida pelo Conselheiro Jobim, com esta finalidade. Durante a vigência da Regência Trina, foi expedido o Decreto nº. 1740, de 16 de abril de 1856, criando junto à Secretaria de Polícia da Corte, a Assessoria Médico-Legal, com dois lugares efetivos: (1) realização dos exames de “corpos de delito e; (2) quaisquer exames necessários para a averiguação dos crimes e dos fatos como tais suspeitados. Mas, apesar da polícia já dispor de seus médicos encarregados das perícias, os exames toxicológicos continuaram a ser realizados pelos professores das Faculdades de Medicinas, dentre elas as monitoradas pela SOMERJ e pela Escola Tropicalista Baiana24.

Estadistas que eram, o grupo de pensamento tecnopolítico que compunha a Escola Tropicalista Baiana propunha que o controle social deveria vir com a intervenção

24 A Escola, mais tarde se ampliaria e seria incorporada por professores da Faculdade de Medicina de

Salvador, de modo que, a Medicina Legal passou a concentrar, ela mesma, a Psiquiatria e a Medicina do Trabalho, apesar de a Psiquiatria, de acordo com Oliveira (1982) e Tambellini (1988) ser disciplina isolada no Brasil desde 1882.

do Estado na administração sanitária ao reconhecerem em suas críticas incansáveis aos governos brasileiro e baiano que "uma ação profilática ampla dependia muito mais do interesse do Estado em realizá-la do que propriamente dos avanços da ciência médica." (MENDES E WAISSMANN, 2013, p. 18). Então a saúde pública começa a ser considerada área de preocupação permanente do governo imperial a partir do Decreto 9.554 de 3 de fevereiro de 1886 que reorganiza o serviço sanitário do Brasil-Império e determina o envio de inspetores sanitários às províncias deliberando em seu Capítulo IV25

que dispõe sobre a Polícia Sanitária:

Art. 85. Quando, em qualquer fabrica, a autoridade sanitaria verificar que os processos industriaes empregados não são os mais convenientes para a saude dos operarios, aconselhará os que devam ser adoptados.

Blount (1972, p. 41) expõe que durante esta longa campanha sanitária que se sucedeu após o decreto de 1886, os principais argumentos apresentados eram puramente de cariz econômico: Por exemplo, o Estado de São Paulo dependia, quase exclusivamente, da produção de café; os fazendeiros precisavam de imigrantes; a região tinha que ser saudável para atrair colonos e mantê-los sadios. Em segundo lugar, a crença dos próprios paulistas, de que São Paulo era a mais dinâmica das regiões brasileiras e que deveria, portanto, adotar todos os progressos das civilizações mais desenvolvidas, como a Europa e os Estados Unidos, onde saúde pública era então assunto muito discutido, concorreu para também sustentar a campanha. Em contraposição ao zelo do inspetor sanitário e ao interesse de alguns políticos paulistas, havia, sob o regime imperial, alguns fatores negativos, como os conflitos pessoais devido às divisões de autoridade e à escassez de recursos econômicos, que dificultaram as primeiras tentativas de reforma26.

2.2 A experiência estatal jurídico-legislativa do serviço sanitário paulista em trabalho-