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2. O professor em formação inicial

2.2. A construção da identidade profissional

Num estudo sobre a construção do conhecimento e da identidade profissional na formação inicial, Ponte e Oliveira referem que ―o desenvolvimento da identidade profissional como professor envolve a capacidade de assumir os papéis, as normas e os valores fundamentais da profissão‖ (Ponte & Oliveira, 2002: 150)17

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Segundo Alarcão e Roldão, a construção e o desenvolvimento da identidade profissional processa-se no eixo do passado-presente-futuro, uma vez que ―é um processo individual, personalizado, único, com forte influência contextual, mobilizado por referentes do passado e expectativas referentes ao futuro‖ (Alarcão & Roldão, 2008: 34).

17Costa e Paixão utilizam a curiosa designação de ―alunos-professores‖ para se referirem aos estagiários que

―tendem a adoptar, durante o período em que desenvolvem a sua prática pedagógica, atitudes que os aproximam mais do papel de alunos do que do de professores que se pretende venham a ser a curto prazo‖. Referem ainda que são alunos no sentido mais tradicional do termo: ― alunos receptores do saber de outros e dele completamente dependentes; alunos pouco implicados na construção do seu saber, resultado possível do processo de escolarização a que foram sujeitos.‖ (Costa & Paixão, 2004: 82)

30 O passado projecta-se na identidade profissional do neófito ao contactar com uma realidade que lhe é simultaneamente familiar (porque já a experienciou como aluno) e estranha (porque vista do outro lado). Maria Assunção Flores chama a atenção para a peculiaridade desta situação: ―poucas profissões permitem um contacto tão intenso e directo com a futura profissão‖ (Flores, 2000: 48). Também Formosinho repara que os professores estão a ser formados ―desde a aprendizagem na escola enquanto alunos à aprendizagem na escola enquanto professores‖ (Formosinho, 2009a: 10). No entanto, muito embora aparentemente ―pacífica‖ – uma vez implicar o regresso a um contexto já conhecido – , esta reentrada na escola representa muito mais do que um mero salto para ―o lado de lá‖. Ou seja, ―subjacente à passagem de aluno a professor está, não apenas, uma mudança de contextos (universidade-escola) mas, também, uma mudança substancial nos papéis, estatuto, postura e funções desempenhadas‖ (Fernandes, 2003: 72).

O futuro também influi na construção da identidade profissional, uma vez que o jovem professor tem expectativas, realistas ou não, sobre a carreira, antecipando um futuro mais ou menos próximo. Desta forma, representações irrealistas podem aumentar o impacto do ―choque da realidade‖, conforme veremos na secção seguinte.

A identidade profissional do professor em formação inicial edifica-se igualmente a partir da forma como consegue fazer a ligação entre uma formação de índole essencialmente teórica e a sua aplicação prática no terreno18.

Assim, Saul Neves de Jesus considera que muitos professores ―sobrevalorizam a prática ou experiência profissional para a aprendizagem de competências pedagógicas‖ (Jesus, 2000: 306). Se acrescentarmos que ―raramente o professor se sente incompetente ao nível dos conteúdos programáticos a ensinar aos alunos (saber), ao contrário da falta de competências que muitas vezes percepciona no âmbito dos métodos pedagógico-didácticos (saber-fazer) e das relações interpessoais (saber-ser)‖ (Jesus, 2000: 307), então obtemos uma receita infalível para diminuir o auto-conceito do professor estagiário: ele sente-se incompetente justamente naquilo a que atribui mais importância – a vertente prática.

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João Formosinho chama ao processo de ―universitarização‖ de professores (transformar a formação de professores em ensino de nível superior) um processo de ―academicização‖, uma vez que, na lógica académica, o estatuto da instituição de professores está, geralmente, ligado a um afastamento das componentes profissionalizantes, de índole mais pragmáticas. Para este autor, esse processo transformou a formação inicial de professores numa formação teórica e afastada das preocupações dos práticos do terreno (Formosinho, 2009c e 2009d).

31 Um relatório do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP), datado de 2001, reconhece que a componente prática da formação sobreleva, de forma indesejável, a componente teórica, sendo os principais motivos os seguintes:

- Muitos estagiários enfrentam o meio escolar pela primeira vez. Os programas das disciplinas que vão leccionar, o ambiente mais ou menos adverso das turmas, (…) são um estranho mundo novo; - A orientação dos estagiários é realizada de forma mais directa pelos orientadores das Escolas onde o estágio tem lugar. Estes, pelas condições profissionais quotidianas, tendem a dar mais ênfase à busca de soluções para problemas imediatos do que à reflexão teórica sobre questões educativas; - A falta de reconhecimento institucional pelas funções de coordenação de estágio dos docentes universitários, provavelmente melhor preparados para fomentar a reflexão, é outra condicionante para uma deficiente articulação entre teoria e prática. (CRUP, 2001: 4-5)

O mesmo relatório transmite a opinião de que, por permitir a integração entre conhecimentos teóricos e procedimentos e a necessária aproximação às situações em que decorre o exercício profissional, o estágio é também imprescindível para a construção da identidade profissional do docente (CRUP, 2001). Ora, para ajudar a estabelecer a ponte entre a teoria e a prática de ensino, para transformar a prática em objecto de reflexão teórica, a actuação dos supervisores é fundamental na escolha das estratégias de formação:

Na formação inicial é necessário ajudar os alunos-professores a desmontarem eventuais estruturas modeladas e a tomarem consciência das relações que estabelecem entre o que pensam e o que fazem, entre as suas intenções e as suas realizações, aproximando a teoria da prática de ensino. (Costa & Paixão, 2004: 83)

Como refere Maria Alfredo Moreira, ―Também para a supervisão, uma boa teoria é essencial para conferir uma direcção significativa às práticas, ajudando a concretizar as potencialidades do humano‖ (Moreira, 2010: 106). Trata-se, pois, de integrar teoria e prática, o que parece ser o desejo dos professores:

Na nossa experiência na formação de professores de línguas (inicial, contínua e especializada), os professores cada vez mais se revelam ‗sedentos‘ de teoria – de boas teorias, de teorias que iluminem a sua prática, que confiram significado à acção, mas, mais ainda, que resgatem o seu profissionalismo e a sua autonomia profissional, fazendo-os recuperar alguma da esperança (muitas vezes perdida) na educação. (Moreira, 2010: 106)

Há ainda que levar em conta que, muitas vezes, as concepções de ensino emergentes chocam com outras, mais tradicionais, que subsistem. Assim, Isabel Alarcão e

32 Maria do Céu Roldão (2008) chamam a atenção para a nova concepção de profissionais que actuam em contextos socioculturais plurais, instáveis e complexos, nos quais desejam assumir-se como interventores reflexivos e críticos, o que exige novos modelos de formação e supervisão que eliminem as dicotomias que têm a ver com a coexistência dessas concepções inovadores e tradicionais. Com efeito, juntamente com o novo paradigma educacional, mantêm-se tendências ―ainda bem arreigadas, que privilegiam a cultura da transmissão do conhecimento e do praticismo‖ (Alarcão & Roldão, 2008: 68), o que põe à prova as opções identitárias dos professores estagiários, para saberem que profissionais querem ser.

Conforme referem os relatórios do projecto Supervisão e Desenvolvimento da Identidade Profissional, coordenado por Alarcão e Roldão, estratégias de tipo não- -directivo na formação de professores revelaram-se promotoras do desenvolvimento da identidade profissional. Por contraste, as estratégias directivas conduzem à submissão e à imitação acrítica (Alarcão & Roldão, 2008).

As autoras salientam ainda, da leitura que fizeram desses relatórios, os problemas referentes à articulação intercontextual de natureza interinstitucional, os quais revelam falta de sintonia e contradições i) entre as aprendizagens teóricas e a realidade; ii) entre a orientação dos programas de formação inicial e orientações e imperativos dos contextos de estágio; iii) entre discursos e práticas; entre o discurso dos supervisores e o dos orientadores; iv) entre o idealismo inovador e as práticas conservadoras (Alarcão & Roldão, 2008). De facto, seria desejável que instituições de ensino superior e escolas cooperantes articulassem práticas e sintonizassem discursos, para suavizarem o choque com a realidade:

O ―choque com a realidade‖, muito referido no âmbito dos estágios pedagógicos, mas pouco investigado, não resulta, segundo alguns estudos, de carências no domínio do conhecimento profissional mas sobretudo do confronto entre duas culturas profundamente diversas e, em muitos casos, conflituantes: a da instituição formadora e a dos contextos de trabalho. (Alarcão & Roldão, 2008: 38)

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