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2. O professor em formação inicial

2.3. A entrada na carreira e o choque com a realidade

Para descrever a dificuldade e o mal-estar do professor no início da carreira tem sido utilizado o conceito de ―choque com a realidade‖.

Este conceito foi popularizado por Veenman (citado por Flores, 1999), que lhe chamou "choque da realidade" ou "choque da praxis", e traduz, nas palavras deste autor holandês, "o colapso entre os ideais missionários elaborados durante a fase de formação e a crua e dura realidade da vida quotidiana da sala de aula". As causas deste choque são de ordem pessoal ou contextual, segundo este autor holandês: por exemplo, escolha equivocada da profissão, atitudes e características pessoais inadequadas, formação inadequada (muitas vezes, demasiado teórica e pouco relevante para a prática), uma situação escolar problemática, multiplicidade de funções e tarefas a desempenhar (Flores, 1999), desfasamento entre as expectativas e a realidade; concepções estereotipadas do que é a escola; personalidade frágil; questões atitudinais; elevado ritmo de trabalho; pouco tempo de contacto com outros professores fora do núcleo, especialmente se há um gabinete; dificuldade em trabalhar em equipa; problemas de disciplina com os alunos (Fernandes, 2003). Ou, como referido na secção anterior, pouca articulação e sintonia entre as duas instituições de formação inicial: a instituição de ensino superior e a escola.

Também a actuação das instituições de formação, que não souberam ajustar os seus programas de forma criar expectativas realistas19 que preparassem no estagiário a transição de estudante a professor, é muito criticada:

É neste período crucial, em que se espera que o indivíduo – numa determinada fase da sua vida, no decurso de uma história pessoal e influenciado por um ambiente sociocultural específico – prepare a importante transição que é a passagem de estudante a professor, que as instituições de formação acentuam a ambiguidade e imprecisão, sobretudo transmitindo conhecimentos inadequados através de programas pouco prestigiantes e desajustados, que não facilitam o desenvolvimento do professor, criando insegurança e constrangimento. (Simões, 1996:117)

Efectivamente, a fase de entrada na carreira é muito intensa a nível de aprendizagens e emoções. Como diz Marcelo, o período de formação inicial é ― (…) una etapa de tensiones y aprendizajes intensivos en contextos generalmente desconocidos,

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―O professor novato sente-se desarmado e desajustado ao constatar que a prática real do ensino não corresponde aos esquemas ideais em que obteve a sua formação (…)‖ (Esteve, 1995: 109).

34 durante la cual los profesores principiantes deben adquirir conocimiento profesional, además de conseguir mantener un cierto equilíbrio personal.‖ (Marcelo, 1999b: 103).

Neste período em que o professor ainda luta para estabelecer a sua própria identidade profissional e pessoal, não são, portanto, de estranhar sentimentos de insegurança e falta de confiança em si mesmo. Se há estagiários que encaram as dificuldades como um desafio, há outros para quem estas podem experimentar uma ou várias destas manifestações:

 queixas de excesso de trabalho, stress e sintomas ao nível físico e psicológico;  mudanças ao nível do comportamento e práticas de ensino, resultantes de um

conjunto de pressões externas contrárias às crenças do professor;

 mudanças de atitude, nomeadamente a passagem de um estilo mais aberto e progressista, em termos de métodos de ensino, para um estilo mais conservador;  mudanças na personalidade, geralmente na esfera emocional e no auto-conceito do

professor;

 nos casos mais extremos, abandono do ensino (ou do estágio) (Fernandes, 2003). Seja qual for o nível das desilusões vivenciadas, o choque sentido na entrada da carreira vai dificultar a socialização institucional e profissional do estagiário:

Em consequência, não só a dimensão sócio-emocional do estágio poderá ser afectada mas, também, as próprias aprendizagens do formando. Tais problemas têm implicações óbvias ao nível da sua identidade profissional, da qualidade do desempenho actual e futuro, e da forma como passará a ver e a estar na profissão docente. (Fernandes, 2003: 90)

2.4. Algumas conclusões

Ao longo desta secção abordou-se a questão da socialização profissional do professor, que consiste na criação e reformulação permanente dos modos de actuar do indivíduo na sua prática, acentuando as suas raízes na formação inicial.

Pensamos que ajudaria à socialização que o contacto com as escolas se fosse fazendo ao longo do curso, com observações no terreno, para que o ―regresso à escola‖ fosse feito de forma mais suave. A integração de saberes, num vaivém constante entre a

35 teoria e a prática que faz desenvolver essa teoria, traz benefícios mútuos. Como refere José Augusto Pacheco, ―urge retomar a teoria como forma de lançar a dúvida de uma forma sistematizada, de modo a que o entendimento que se tem a realidade educacional esteja alicerçado em argumentos conceptuais‖ (Pacheco, 2008: 5)

Para que tal aconteça a nível da formação inicial, devem ser estreitados os laços entre as instituições de ensino superior e as escolas onde se leva a cabo a prática pedagógica. Como assinala Fátima Braga, enquanto o trabalho dos orientadores de escola não for rigorosamente complementar do que se realiza na faculdade, ―a teoria e a prática continuarão, na melhor das hipóteses, independentes, e na pior em conflito – os estagiários, entre duas lógicas por vezes diferentes, sem que o saibam, continuarão a conjecturar eles próprios as conexões, ou pura e simplesmente abdicarão de as fazer‖ (Braga, 2001: 128).

A função do supervisor e do professor estagiário pode ser assim sintetizada:

Supervisionar deverá (…) ser um processo de interacção consigo e com os outros, devendo incluir processos de observação, reflexão e acção do e com o professor. Este, por sua vez, também deverá observar – o supervisor, a si próprio, os alunos –, deverá reflectir sobre o que observou, questionar o observado; receber feedback do supervisor e dos alunos; reflectir sobre esses dados, auto--avaliando-se constantemente de modo a corrigir e melhorar as práticas pedagógicas para poder promover o sucesso educativo dos seus alunos e o seu próprio sucesso profissional. Torna-se assim

agente de mudança: de si próprio, dos outros e da sociedade. (Amaral, Moreira& Ribeiro, 1996: 94)

Observar, reflectir, questionar, auto-regular, reformular… parecem, assim, ser ingredientes fundamentais nas trocas entre supervisor e professor estagiário. Na condição de crescer num ambiente democrático de problematização, incerteza, partilha, negociação, regulação, respeito pela (inter)subjectividade e postura crítica face aos contextos em que decorre a acção educativa, o professor em formação inicial tornar-se-á um agente de mudança.

Se a sociedade mudou e se o sistema educativo deve ser revisto para se adaptar a essas diferenças, então também a própria formação de professores tem que ser posta em causa e revista. A próxima secção irá, então, debruçar-se sobre mudanças nas concepções acerca da supervisão, nos modelos de formação e nos papéis atribuídos aos supervisores.

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3. A formação inicial de Francês da FLUP: modelos e contextos de formação,