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A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO DE JULGAMENTO IMPLÍCITO

4 JULGAMENTOS IMPLÍCITOS: O ESBOÇO DE UMA TEORIA PARA A SUA

4.3. A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO DE JULGAMENTO IMPLÍCITO

Analisados os critérios que devem presidir à interpretação da sentença, temos agora que responder em definitivo à questão principal do presente trabalho: é

306

ROCCO, Alfredo. La Sentenza Civile. Milano: Giuffrè, 1962, p. 104

307

Ibidem, loc. cit.

308

MENDES, João de Castro. Limites Objetivos do Caso Julgado em Processo Civil. Lisboa: Edições Ática, 1968, p. 250.

admissível no processo civil a individualização e identificação de julgamentos implícitos na sentença?

Como vimos quando delimitamos o âmbito do problema (4.1.), a posição generalizada na doutrina e na jurisprudência é a de que não é admissível no nosso ordenamento jurídico-processual a existência de decisões implícitas. Fundamenta-se esta posição, essencialmente, na necessidade de proteger o princípio da segurança jurídica e o dever da motivação das decisões judiciais. Mas admitir decisões implícitas põe necessariamente em risco estes postulados?

Passamos agora a tentar demonstrar que não. E mais, tentaremos demonstrar que um processo civil que privilegia os princípios da efetividade, da economia processual e da justa composição da lide, tem, necessariamente, que admitir, em alguns casos, a existência de julgamentos implícitos na sentença, sob pena de se frustrarem os fins últimos do processo.

Para a construção de um conceito de julgamento implícito, partimos da posição defendida por ALBERTO DOS REIS na doutrina portuguesa, a quem se deveu a consagração legal do conceito no antigo Código de Processo Civil português de 1939, que previa, no § único do art. 660º, o seguinte: “consideram-se resolvidas as questões sobre que recair decisão expressa, como as que, dados os termos da causa, constituírem pressuposto ou consequência necessária do julgamento expressamente proferido.”309

Em face desta configuração do conceito, o próprio ALBERTO DOS REIS reconhecia que “o princípio é perigoso, pelo que a jurisprudência deve fazer dele uso prudente e moderado.”310 Mas defendia: “há-de convir-se em que não é razão bastante para condenar um princípio – se ele é justo e razoável – a circunstância de ser de aplicação difícil e melindrosa.”311

E daqui emerge, precisamente, a primeira nota importante a reter do conceito, a locução: dados os termos da causa. Como aponta ALBERTO DOS REIS, esta expressão introduz um limite importante ao princípio do julgamento implícito, esclarecendo que, com ela, para que se admitam julgamentos implícitos:

309

REIS, José Alberto dos. Comentário ao Código de Processo Civil. Reimpressão. Coimbra: Coimbra Editora, 1984, v. 5, p. 58-59.

310

Ibidem, p. 59.

311

Não basta que a questão, sobre a qual não recaiu decisão expressa, seja,

em face dos princípios, pressuposto necessário ou consequência lógica do

julgamento explícito; é indispensável que os próprios termos da causa estabeleçam esse nexo e autorizem essa ligação. Isto quer dizer que o julgamento implícito não pode estender-se a questões que não foram postas nem formuladas.

Esta nota é extremamente relevante para a definição do nosso conceito de julgamento implícito.

Em primeiro lugar, ela marca claramente, desde logo, a diferença entre este conceito e os outros conceitos de julgamento implícito referentes à extensão dos limites objetivos da coisa julgada. Enquanto nestes conceitos do que se trata, em rigor, é de uma ficção, estendendo-se os limites objetivos da coisa julgada a questões que podem ou não ter sido debatidas nos autos, no conceito de julgamento implícito constante do § único do art. 660º do antigo CPCp/39, este tem que corresponder necessariamente a uma questão posta ou formulada pelas partes. Ou seja, o julgamento implícito tem que resultar e ter correspondência nos limites da demanda fixados pelas partes.

Em segundo lugar, desta limitação do conceito resulta que ao mesmo nunca poderá ser apontado os vícios da sentença ultra ou extra petita, pois este emerge sempre dos termos em que a ação foi proposta e debatida, correspondendo, necessariamente, a um pedido formulado pelas partes, respeitando assim, rigorosamente, o princípio dispositivo.

Daqui resulta, como fica claro, que o julgamento implícito assim delineado não pode corresponder a todo e qualquer pressuposto ou consequência necessária do julgamento expressamente proferido, esta conexão entre os pronunciamentos judiciais tem que ficar estabelecida e demonstrada nos exatos termos da demanda proposta pelas partes.

Como se vê, esta primeira limitação já deixa claro que, para se puder individualizar e identificar um julgamento implícito no decisum, faz-se necessário que o mesmo resulte da interpretação do conjunto da sentença em conformidade com os fundamentos constantes na parte motivatória e os limites da demanda.

Por outro lado, ao limitar a possibilidade de individualização de julgamentos implícitos no dispositivo da sentença aos pressupostos e

consequências necessárias do julgamento expressamente proferido, o conceito delineado no § único do art. 660º do antigo CPCp/39, acolheu o pensamento de ALFREDO ROCCO, que, como vimos supra em 4.2.3., sustenta que pode o pensamento do juiz “su una questione desumersi soltanto dalla soluzione data ad un’altra questione, che presupponga necessariamente esaminata e risolta in modo unívoco la prima.”312 Segundo ALFREDO ROCCO, nos casos em que isto seja possível, da correta interpretação conjunta da sentença resulta, com suficiente clareza, que, ainda que implicitamente, o juiz examinou e decidiu o pedido formulado pela parte313.

Trata-se aqui, portanto, como já vimos acima, de interpretar a sentença em conformidade com os pedidos formulados pelas partes e com a natureza do objeto litigioso do processo, por forma a garantir a eficácia da decisão, preservando- se assim o seu conteúdo útil.

Perante o exposto, poderíamos desde já concluir pela nossa concordância com as premissas do conceito consagrado § único do art. 660º do antigo CPCp/39, haja vista a sua correspondência com os critérios de interpretação analisados no ponto anterior. Estas premissas, portanto, terão que compor o nosso conceito de julgamento implícito. Contudo, parece-nos que o conceito traçado pelo legislador português pecou num ponto, necessitando de ser complementado, pois ele não conseguiu restringir com exatidão qual o nexo que tem que existir entre as decisões judiciais (expressa e implícita) para que se possa autorizar a ligação entre elas.

A crítica ao dispositivo legal foi feita na doutrina portuguesa por PAULO CUNHA, para quem “quando se adoptasse a doutrina das decisões implícitas cumpria estabelecer com mais rigor e nitidez do que o consignado no § ún. do art. 660º qual o critério de conexão lógica entre as decisões implícitas e as decisões explícitas.”314

Parece-nos, de fato, que a crítica procede.

312

ROCCO, Alfredo. La Sentenza Civile. Milano: Giuffrè, 1962, p. 104

313

Ibidem, loc. cit.

314

CUNHA, Paulo. Da Marcha do Processo: Processo Comum de Declaração - apontamentos de

Artur Costa e Jaime de Lemos segundo as prelecções do Prof. Dr. Paulo Cunha ao curso de processo civil (4.º ano) na Fac. de Dir. da Univ. de Lisboa, ano lectivo de 1939-1940. Braga: Augusto

Para que se possa admitir a possibilidade de individualização de decisões implícitas no processo civil, não basta limitar estas situações às decisões que, dados os termos da causa, constituam pressuposto ou consequência necessária do julgamento expresso. Assim delimitado, o conceito de julgamento implícito pode, de fato, dar azo a alguma incerteza, o que viola os princípios da segurança jurídica e do próprio contraditório.

Neste sentido, faz-se necessário acrescentar mais uma nota a este conceito de julgamento implícito: definir o nexo lógico que une as decisões que pode legitimar a individualização e identificação de um julgamento implícito.

Para o efeito, tal como fizemos para os pedidos implícitos, vamos utilizar o conceito da cumulação aparente de pedidos, pois nestes casos, como já por diversas vezes referido ao longo da presente investigação, o autor, apesar da cumulação de pedidos, busca obter um único efeito substancial com a instauração da demanda, efeito este que, para ser obtido, exige do órgão jurisdicional a prolação de dois pronunciamentos de natureza distinta: um, declarativo; outro, condenatório.

Nestes casos, estes pronunciamentos judiciais, tal como os pedidos correspondentes que formam a cumulação aparente, encontram-se ligados por um estreito nexo de causalidade para a obtenção do efeito útil pretendido pelo autor, pelo que do julgamento expresso relativamente a apenas um dos pedidos pode-se, desde logo, deduzir a solução dada ao outro pedido, constitua esta o pressuposto ou a conseqüência necessária do julgamento expresso. Ou seja, ainda que a resposta não esteja expressamente contida no dispositivo da sentença, ela resulta claramente individualizada e identificada da correta interpretação da sentença, pelo que não se pode afirmar que o juiz sobre ela não se tenha debruçado e decidido, ainda que implicitamente.

Destarte, nos casos específicos em que o objeto litigioso do processo é composto por uma cumulação aparente de pedidos (pedido complexo), quando o dispositivo da sentença contiver expressamente apenas a decisão de um dos pedidos, pode da interpretação da sentença realizada em conformidade com os fundamentos da decisão e os pedidos formulados pelas partes, resultar a individualização e identificação clara de uma decisão implícita, precisamente aquela que corresponde ao pressuposto ou consequência necessária da decisão expressa, pois nestes casos, os pronunciamentos judiciais encontram-se ligados por um nexo

de causalidade que não deixa dúvidas quanto à resposta dada a ambas as questões.

Podemos assim concluir, ser admissível a figura do julgamento implícito quando, dados os termos da causa, este corresponda a um pressuposto ou conseqüência necessária do julgamento expressamente proferido sobre um determinado pedido que, com o implicitamente decidido, forme uma cumulação aparente de pedidos.

Assim delimitado, não nos parece que o conceito possa colocar em causa os postulados da segurança jurídica e da necessária motivação das decisões judiciais, pois da forma como o conceito foi restringido, fica claro que: a uma, a um julgamento implícito tem necessariamente que corresponder sempre um pedido formulado pela parte, pois só se admite julgamento implícito que, dados os termos

da causa, corresponda a um pressuposto ou consequência necessária do

julgamento expresso, pelo que, não se pode afirmar que esta decisão implícita surpreende e não foi prevista pelas partes; a duas, ao restringir o vínculo de conexão lógica entre as decisões à cumulação aparente de pedidos, resta claro que o nexo causal que une estas decisões, tendo elas que ser apreciadas, portanto, conjuntamente, faz com que à decisão implícita não possa ser imputada uma deficiente motivação da decisão judicial, pois toda a fundamentação constante na parte motivatória da sentença que permitiu proferir o julgamento expresso, se aplica, de igual modo, à decisão implícita.

Perante isto, não se pode assumir uma posição radical quanto à inadmissibilidade das decisões implícitas, como o vem fazendo a doutrina e a jurisprudência, negando a sua possibilidade em qualquer caso. A admissibilidade dos julgamentos implícitos tem que ser analisada sempre caso a caso, por forma a averiguar se, apesar de proferido implicitamente, o julgamento preenche os pressupostos de validade de qualquer decisão judicial, a saber: o respeito ao limites da demanda fixados pelas partes e a congruência da decisão.

Ao contrário, a admissibilidade de decisões implícitas, nos moldes do conceito apresentado, confere ao processo efetividade e economia processual, além de contribuir para a resolução efetiva do litígio, o que constitui o fim último do processo. A não admissibilidade, em absoluto, de julgamentos implícitos no dispositivo da sentença, implica a preferência por um excessivo rigor formal que, na

maior parte das vezes, frustrará os fins do processo, mantendo latente litígio que poderia ser resolvido de imediato.

Ressalte-se, ainda, que o conceito formulado acima de julgamento implícito, para ser admitido no ordenamento jurídico-processual civil pátrio, não carece de expressa previsão legal nesse sentido, pois ele configura, na verdade, a delimitação das hipóteses em que, aplicados os critérios interpretativos da sentença analisados acima, da reconstrução do verdadeiro sentido e alcance do dispositivo pode resultar, com suficiente clareza, a individualização e identificação de decisões implícitas.

Exemplo paradigmático disso, é o que ocorreu em Portugal após a revogação do referido § único do art. 660º do CPCp de 1939, onde a jurisprudência e a doutrina continuam a admitir a possibilidade de, através da interpretação da sentença, se poder reconhecer que a mesma contempla julgamentos implícitos.

Neste sentido, como afirmam LUSO SOARES, DUARTE MESQUITA E WANDA FERRAZ DE BRITO, “a supressão do parágrafo único do artigo 660º do Código de Processo Civil de 1939 não significa que, na interpretação da sentença, não se reconheça que a mesma contempla um julgamento implícito.”315

Concluímos, portanto, que assim delimitados, não existe qualquer razão lógico-jurídica que impossibilite que, da interpretação da sentença, resulte a individualização e identificação de um julgamento implícito no dispositivo do

decisum, ao contrário, nestes casos, este julgamento implícito corresponde a uma

decisão devidamente fundamentada e congruente, não podendo, deste modo, ser desconsiderada.

4.4. A RELAÇÃO ENTRE OS JULGAMENTOS IMPLÍCITOS E OS PEDIDOS